Atualmente,
o colégio de Notre-Dame-de-Sainte-Croix dá para a rue Antoine de Saint-Exupéry,
situada no centro de Le Mans, anteriormente batizada rue des Vignes. Da
passagem do escritor, que entrou naquela escola de jesuítas em 7 de outubro de
1909, restam apenas tênues sinais. A escola iria mudar duas vezes antes que Antoine
a abandonasse definitivamente, em junho de 1915. O prédio gótico original foi
confiscado pelo Estado para ser transformado em caserna. O único vínculo
tangível com o passado é o edifício central, no qual Saint-Exupéry estudou e
que serviu algum tempo como sala de aula, na rue Prémartine. Esse prédio foi mais
tarde demolido e reconstruído no lugar atual.
Saint-Exupéry
penetrou no universo austero e exclusivamente masculino do colégio há mais de
oitenta anos, com o uniforme azul- marinho dos cadetes. Os padres que o
rodeavam eram missionários partidários de um catolicismo tradicional e
inflexível, que administravam um regime cotidiano baseado ao mesmo tempo no
espírito de sacrifício religioso e numa disciplina digna do exército. Na época
de Antoine, muitos alunos frequentavam o colégio para prestar concurso para
alguma academia militar. Mais de cinquenta nomes de oficiais de carreira mortos
durante as breves batalhas de 1940 e após a Libertação estão gravados no
monumento aos mortos erigido no pátio, provavelmente uma das mais elevadas
proporções de alunos entre todas as escolas francesas.
Hoje
em dia, Notre-Dame-de-Sainte-Croix continua sendo uma instituição católica
privada associada à Companhia de Jesus, porém o provedor é leigo, as classes
são mistas e o uniforme deixou de ser obrigatório há tempos. Embora os jesuítas
permaneçam sempre na primeira fila de batalha pela defesa da educação religiosa
contra a indiferença de uma república leiga, não existe em sua atitude nenhuma
medida em comum com a luta contra o Estado republicano, que se seguiu à derrota
da França contra a Prússia em 1870. Naquela época, o colégio tinha vocação
nacional para recrutar voluntários para uma verdadeira cruzada visando defender
a lei de seus ancestrais, que corria perigo com a proibição governamental de
ensinar religião em estabelecimentos públicos.
Os
jesuítas encarregavam-se de preparar os jovens para concursos nas grandes
escolas, militares ou não, que tinham se tornado bastiões anticlericais após a
Revolução. As famílias nobres e burguesas apoiaram vigorosamente o
empreendimento, e em 1939 os estudantes das grandes escolas eram
majoritariamente católicos fervorosos.
Quando
Antoine chegou a Le Mans, seu tio e padrinho, Roger de Saint-Exupéry, era uma
inesgotável fonte de casos sobre aquilo que equivalia a uma guerra santa contra
um Estado pagão. Ele entrara na escola em 1876, quatro anos depois de Jean, pai
de Antoine. Junto com outros nobres da região, os Saint-Exupéry patrocinavam o
colégio que fora, em 1870, um dos centros de resistência à invasão alemã.
Instalada na época num imponente prédio construído como uma abadia, a escola
fora transformada em guarnição para as tropas francesas, antes de tornar-se
hospital militar. Antes que o edifício fosse devolvido a seu uso habitual, os
regimentos de Bismarck ocuparam as salas de aula, usando-as como cavalariças. A
arrogância das tropas deixou amargas lembranças, que, mais tarde, convenceram a
família a enviar Antoine para um colégio na Suíça, a fim de protegê-lo durante
a Primeira Guerra Mundial.
Após
a guerra contra os prussianos, os jesuítas assumiram a direção do colégio. A
partir dessa época, Notre-Dame tornou-se mais um lugar de doutrinamento do que
instituição educativa, e os padres passaram a combater a república com a mesma
veemência que reservariam mais tarde para a luta contra o comunismo. Sangrentas
reminiscências da Comuna de 1871, durante a qual personalidades religiosas
foram executadas pelo governo revolucionário, eram cuidadosamente conservadas,
exatamente como os partidários da Comuna jamais esqueceriam os massacres
perpetrados pelo exército, apoiado pelos monarquistas e pelo clero.
Até
sua chegada a Le Mans, a educação formal de Antoine limitara-se a dois anos
passados numa escola católica de Lyon. Ao mesmo tempo em que era introduzido no
campo do sectarismo religioso, o colégio foi para ele uma iniciação tão cruel
quanto prematura à condição de adulto. Em 1909, o colégio ainda estava em seu
prédio gótico original, e o conflito entre os jesuítas e o Estado atingia seu ponto
alto. A discussão sobre o ensino privado deu origem a facções ainda mais vingativas
após o caso Dreyfus, quando a escola, sob a direção de Charles Maurras, transformou-se
num campo de recrutamento para o movimento antissemita e monarquista Action Française.
A
atmosfera do colégio era espartana. O financiamento privado era tão limitado
que não havia aquecimento no refeitório, onde os 250 rapazes engoliam sua ração
de sopa morna sem tirar os sobretudos. As refeições eram feitas em silêncio,
tendo ao fundo leituras religiosas que refletiam as opiniões conservadoras dos
pais dos alunos. A maioria dos colegas de Antoine provinha de grandes famílias,
com fortes tradições monarquistas. Não era raro que dez ou doze irmãos, nobres
ou burgueses, estivessem espalhados em diversas salas de aula. O recorde parece
ter sido batido pelas famílias De Romanet e De Maury, cada uma delas com dezenove
membros.
A
única mudança pedagógica notável ocorrida desde a época em que o pai de Antoine
frequentara a escola era o latim não ser mais a principal língua de ensino. O
horário continuava obedecendo a padrões medievais, embora Antoine, na qualidade
de aluno externo, fosse beneficiado com um regime levemente menos rigoroso que
os internos, que tinham de se levantar às 5h30.
Sua
mãe o matriculou na escola e passou a viver uma parte do ano com Antoine, que,
em companhia de François, morava na casa do avô, uma residência burguesa,
cinzenta e triste, no número 39 da rue Pierre-Bellon, a meia hora de caminhada
do colégio. A casa de Fernand era espaçosa em comparação com a alugada por
Marie de Saint-Exupéry, no número 21 da rue Clos-Margot, para ficar com seus
filhos quando vinha a Le Mans. O resto do tempo ela ia ter com as filhas em
Lyon ou Saint-Maurice, enquanto Antoine e François eram deixados sob a guarda
de uma tia, Anais de Saint-Exupéry, dama de honra da duquesa de Vendôme, da
família real francesa.
Uma
foto da classe de Antoine mostra-o de pé, o olhar estoico, no meio dos alunos,
que parecem em estado de choque diante dos sacrifícios que se espera dessas
crianças de 9 anos. Outro externo, Paul Gaultier, colega de classe e futuro
jornalista, evocou esses rigores na revista que celebrou o centenário da
escola, em 1971. Todos os rapazes tinham de assistir à missa das 7h30, seis
dias por semana, e à missa solene das 8h30, no domingo. Os cursos acabavam às 19
horas, e os alunos podiam passar só a tarde do domingo em casa. Tinham de lutar
constantemente contra o frio, com frequência a água congelava nas jarras e
muitos sofriam de frieiras, mas o pior era o medo das sanções. A mais temida
era a privação de saída, que podia ser aplicada nos períodos de repouso da quinta-feira
ou no domingo à tarde. No dia do Senhor, a manhã era prolongada por uma hora de
instrução religiosa após a missa solene, e o período de lazer era frequentemente
substituído por estudos suplementares, para punir a turbulência, a falta de
atenção em classe ou a falta de entusiasmo em instrução religiosa.
As
atividades do pátio eram severamente vigiadas e as menores faltas imediatamente
reprimidas pelos padres que desempenhavam o papel de bedéis. As punições
consistiam em fazer os alunos correrem cinco ou seis vezes em volta da quadra
de esportes, ou ficarem de pé perto de uma árvore durante todo o recreio.
Algumas faltas mais graves eram punidas com chicote.
As
relações individuais eram proibidas e as saídas sempre efetuadas em grupos. A
maioria das excursões limitava-se a peregrinações religiosas. Numa carta que
escreveu à mãe em 1910, Antoine descreveu uma das saídas do início do ano,
quando foi visitar a abadia beneditina de Notre-Dame-du-Chêne, em Solesmes, num
veículo abarrotado, puxado por cavalos. O tom da carta era humorístico e não
continha recriminações; só diversos anos depois Antoine evocaria o sofrimento
que sentia em Le Mans, sem a presença da mãe, quando ela estava em Lyon e não
podia protegê-lo.
Em
1922, ano em que estava prestando serviço militar, escrevia-lhe: “É verdade que
esta tarde estou triste, a ponto de chorar. É verdade que a senhora é o único
consolo quando estou triste. Quando era criança, ao regressar com minha grande
mochila nas costas, soluçando por ter sido castigado — a senhora se lembra, em
Le Mans —, com o seu beijo eu me esquecia de tudo. A senhora era um apoio
todo-poderoso contra os bedéis e os padres encarregados da disciplina. Sentíamo-nos
seguros em sua casa, estávamos seguros em sua casa, só pertencíamos à senhora,
era bom.”
Nos
dias anteriores às férias de verão, a disciplina abrandava-se e os alunos
podiam ir tomar banho no rio vizinho. No entanto, o esporte sempre era um
violento e vigoroso esforço de equipe. André Dunant, outro antigo aluno,
recorda que os jogos geralmente eram “muito viris”. Nas partidas de futebol
enfrentavam-se dois times de cinquenta rapazes, com duas bolas e sem regras
muito estritas. A maioria dos jogos, conhecidos como balle au chasseur, balle au
camp e épervier, possuía algum
elemento de tática militar, particularmente o jogo dos boucliers (escudos). As
classes eram divididas em duas equipes que se batiam com a ajuda de bolas,
tentando capturar a bandeira do adversário.
“Mais
tarde fui cadete na academia militar de Saint-Cyr e não consigo ver nenhuma
diferença entre a disciplina militar e a educação em
Notre-Dame-de-Sainte-Croix”, lembra-se André Dunant.
Esse
regime estrito, acompanhado de sérios estudos religiosos, tinha a intenção de
preparar muitos alunos para a vida de renúncia do sacerdócio, e um dos colegas
de Saint-Exupéry, de uma classe mais adiantada, tornou-se bispo de Le Mans.
Com
exceção das cartas à mãe, existem poucas referências a Le Mans nos escritos de
Saint-Exupéry; mais tarde confessou a amigos que lá raramente fora feliz. Para
uma natureza tão sensível quanto a sua, a atmosfera de intolerância, sobretudo
estando separado da mãe, devia ser uma verdadeira tortura, à qual ele reagia
com uma mal-humorada passividade. Suas notas de comportamento, ordem e limpeza
geralmente eram medíocres. Sem dúvida, os primeiros meses foram os mais
difíceis, porém os anos escolares mais desastrosos foram os de 1913 e 1914. Até
então ele sofrera em silêncio, demonstrando um elevado nível de resignação, e
seus primeiros boletins escolares evidenciam uma perfeita civilidade.
Entre
1913 e 1914, a avaliação de sua civilidade desceu para “e”, enquanto sua
aplicação e comportamento recebiam o conceito “ei”, considerado uma péssima
nota. Essa revolta era mais grave do que a insolência habitual da adolescência,
pois Antoine corria o risco de ser expulso. Cada “e” era punido com duas horas
de castigo de retenção. Como Antoine obteve seis “ei” e seis “i”, durante os
três meses anteriores às férias de verão de 1914, o que era ainda pior, isso
significa que sacrificou a maior parte do seu tempo livre. Não esteve presente
no primeiro trimestre do outono de 1914 e, quando regressou para fazer os dois
últimos trimestres do ano 1914-1915, seu comportamento não melhorou de forma
alguma, mas pelo menos não chegou a ser sancionado por impertinência.
É
provável que a origem do problema estivesse num desentendimento com o avô,
Fernand. Na infância, Antoine aceitara a autoridade incontestável dessa figura
patriarcal com barba branca. É possível reencontrar a admiração juvenil
suscitada pelo imponente ancião diante de um livro enorme em O Pequeno
Príncipe, onde se pode reconhecer no geógrafo uma caricatura do ancestral. Sem
dúvida, a casa do avô, na rue Pierre-Bellon, não podia ser comparada com o castelo
de Saint-Maurice, mas possuía uma enorme biblioteca com uma coleção de livros
raros iniciada pelo pai de Fernand. Alguns desses preciosos volumes foram
mostrados a Antoine, particularmente um livro de astronomia com capa de couro
que o impressionou suficientemente para comentá-lo com prioridade em
Saint-Maurice nas férias de verão de 1911.
À
medida que Antoine crescia, suas relações com o avô tornavam-se mais tensas. A
autoridade deste como presidente do conselho de família entrava em contradição
com as atitudes liberais de Marie de Saint-Exupéry. Havia tanto um conflito de
personalidades quanto de autoridades, e Antoine tinha mais afinidade com as
opiniões maternas. A universitária americana Helen Crane ficou sabendo por meio
de Charlotte Churchill, prima de Antoine, que este frequentemente discordava do
avô. Ela atribuía o fato a seu temperamento meridional expansivo, explicando
que os dois eram muito loquazes. Marie tolerava em Antoine uma tendência à
discussão, enquanto Fernand de Saint-Exupéry considerava que rapazinhos bem-educados
deveriam contentar-se em escutar.
Na
sua opinião, o neto não passava de uma criança superprotegida que tinha de ser
endurecida por uma estrita disciplina física. Durante uma conversa com Simone,
em 1912, Antoine revelou que sua tia Anais o chicoteava quando se mostrava
insolente.
Os alunos do padre Auguste Launay em Le Mans, 1913. Antoine de Saint-Exupéry é o segundo em pé, à direita. (Collège de Saint-Croix) |
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