terça-feira, 4 de julho de 2017

CORREIO SUL - 12

IX

            — Nada. Não é nada... Deixe-me... Ah! Já?

            Bemis está de pé. No sonho, seus gestos eram pesados, como se puxasse uma sirga. Gesto de um apóstolo que nos traz à luz do fundo de nós próprios. Todos os seus passos eram cheios de sentido, como os de um dançarino. “O! Meu amor..."

            Anda de um lado para outro: é ridículo.

            Essa janela está manchada pela aurora; à noite, era azul-escuro. À luz da lâmpada, adquiria uma profundidade de safira. Nesta noite, projetava-se até as estrelas. Sonhamos. Imaginamos estar na proa de um navio.

            Geneviève encolhe os joelhos, sente-se de uma carne balofa, como pão malcozido. 0 coração bate descompassadamente e a incomoda. Assim acontece num expresso. O barulho dos eixos marca a fuga, batendo como um coração. Encosta a cabeça na vidraça e a paisagem corre: negras massas que o horizonte afinal recolhe e cerca progressivamente com sua paz, doce como a morte.

            Ela quereria gritar a Bemis: “Segure-me!" Os braços do amor nos encerram com nosso presente, passado e futuro, os braços do amor nos reúnem...

            — Não. Deixe-me.

             Geneviève se levanta.



             X

            “Essa decisão", pensava Bemis, “essa decisão foi tomada contra a nossa vontade. Tudo acontecera sem troca de palavras”. O regresso estava, a seu ver, de antemão convencionado. Com Geneviève assim doente, não se podia cogitar em prosseguir. Verá-se tudo mais tarde. Numa ausência tão breve, com Herlin longe, tudo se arranjará. Bemis admirava-se de as coisas surgirem assim tão fáceis. Estava ciente de que não era verdade. Eles é que podiam agir sem esforço.

            Aliás, duvidava de si mesmo. Estava certo de que também cedera às imagens. Porém, de que profundeza elas vêm? Esta manhã, ao despertar, pensara imediatamente olhando o teto baixo e fosco: “Sua casa era um navio. Passava as gerações de uma margem à outra. Aqui ou além, a viagem não tem sentido; mas que segurança nos domina por termos nosso bilhete, a cabine e as malas de couro amarelo. Por estarmos a bordo!...”

            Não sabia se sofria por seguir um declive ou porque o futuro vinha até ele sem que tivesse de ir ao seu encalço. Quando nos abandonamos, não sofremos. Quando nos abandonamos, mesmo à tristeza, não sofremos mais. Sofreria mais tarde, ao confrontar algumas imagens. Pressentiu que representavam facilmente essa segunda parte de sua vida, porque isso estava previsto em qualquer parte neles mesmos. Pensava nessas coisas consertando o motor que não funcionava bem. Chegariam, porém. Agora seguiam por um declive. Sempre esta imagem do declive.

            Perto de Fontainebleau, Geneviève teve sede. Começaram a reconhecer cada pormenor da paisagem que se instalava tranquilamente e dava-lhes serenidade. Era um quadro necessário que surgia à luz.

            Numa taverna à beira da estrada, serviram-lhes leite. Para que se apressar? Ela bebia o leite em pequenos goles. Para que se apressar? Tudo o que se passava vinha necessariamente a eles: sempre esta imagem de necessidade.

            Ela estava meiga. Era-lhe grata por muitas coisas. Sua ligação era agora muito mais livre do que ontem. Sorria, apontava um pássaro que procurava alimento em frente à porta. Seu rosto pareceu-lhe novo — onde vira aquele rosto?

            Nos viajantes. Nos viajantes que a vida, dentro de alguns segundos, afastará de nossa existência. No cais. Esse rosto já pode sorrir, viver de fervores desconhecidos.

            Bemis ergueu novamente os olhos. De perfil, inclinada, ela sonhava. Ele pensou então que a perderia se ela virasse um pouco a cabeça.

            Certamente, Geneviève continuava a amá-lo; porém, não se devia pedir muito a uma jovem tão fraca. Evidentemente, ele não podia dizer: “Devolvo-lhe a liberdade”, nem qualquer outra frase igualmente absurda; falou, porém, do que tencionava fazer, de seu futuro; na vida que planejava, ela não era prisioneira. Para agradecer-lhe, Geneviève pousou sua mãozinha sobre o braço dele: "Você é todo... todo o meu amor..." E era, na verdade; contudo, ele distinguiu bem, através daquelas palavras, que eles não eram feitos um para o outro.

            Doce e obstinada. Tão pronta a ser dura, cruel, injusta, mas sem o saber. Tão pronta a defender, a todo custo, algum bem obscuro. Tranquila e doce, assim era Geneviève.

            Ela também não era feita para Herlin. E ele sabia. A vida que ela planejava recomeçar sempre a magoara. Para que realizá-la, então? Ela parecia não sofrer.

            Puseram-se a caminho. Bemis voltou-se um pouco para a esquerda. Tinha perfeita consciência de que ele também já não sofria; havia, porém, dentro dele, algum animal ferido, cujas lágrimas eram inexplicáveis.


            Nenhum tumulto em Paris: quase nada se alterara.


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