IX
—
Nada. Não é nada... Deixe-me... Ah! Já?
Bemis
está de pé. No sonho, seus gestos eram pesados, como se puxasse uma sirga. Gesto
de um apóstolo que nos traz à luz do fundo de nós próprios. Todos os seus
passos eram cheios de sentido, como os de um dançarino. “O! Meu amor..."
Anda
de um lado para outro: é ridículo.
Essa
janela está manchada pela aurora; à noite, era azul-escuro. À luz da lâmpada,
adquiria uma profundidade de safira. Nesta noite, projetava-se até as estrelas.
Sonhamos. Imaginamos estar na proa de um navio.
Geneviève
encolhe os joelhos, sente-se de uma carne balofa, como pão malcozido. 0 coração
bate descompassadamente e a incomoda. Assim acontece num expresso. O barulho
dos eixos marca a fuga, batendo como um coração. Encosta a cabeça na vidraça e
a paisagem corre: negras massas que o horizonte afinal recolhe e cerca
progressivamente com sua paz, doce como a morte.
Ela
quereria gritar a Bemis: “Segure-me!" Os braços do amor nos encerram com
nosso presente, passado e futuro, os braços do amor nos reúnem...
—
Não. Deixe-me.
Geneviève se levanta.
X
“Essa
decisão", pensava Bemis, “essa decisão foi tomada contra a nossa vontade.
Tudo acontecera sem troca de palavras”. O regresso estava, a seu ver, de
antemão convencionado. Com Geneviève assim doente, não se podia cogitar em
prosseguir. Verá-se tudo mais tarde. Numa ausência tão breve, com Herlin longe,
tudo se arranjará. Bemis admirava-se de as coisas surgirem assim tão fáceis.
Estava ciente de que não era verdade. Eles é que podiam agir sem esforço.
Aliás,
duvidava de si mesmo. Estava certo de que também cedera às imagens. Porém, de
que profundeza elas vêm? Esta manhã, ao despertar, pensara imediatamente
olhando o teto baixo e fosco: “Sua casa era um navio. Passava as gerações de
uma margem à outra. Aqui ou além, a viagem não tem sentido; mas que segurança
nos domina por termos nosso bilhete, a cabine e as malas de couro amarelo. Por
estarmos a bordo!...”
Não
sabia se sofria por seguir um declive ou porque o futuro vinha até ele sem que
tivesse de ir ao seu encalço. Quando nos abandonamos, não sofremos. Quando nos
abandonamos, mesmo à tristeza, não sofremos mais. Sofreria mais tarde, ao
confrontar algumas imagens. Pressentiu que representavam facilmente essa
segunda parte de sua vida, porque isso estava previsto em qualquer parte neles
mesmos. Pensava nessas coisas consertando o motor que não funcionava bem.
Chegariam, porém. Agora seguiam por um declive. Sempre esta imagem do declive.
Perto
de Fontainebleau, Geneviève teve sede. Começaram a reconhecer cada pormenor da
paisagem que se instalava tranquilamente e dava-lhes serenidade. Era um quadro
necessário que surgia à luz.
Numa
taverna à beira da estrada, serviram-lhes leite. Para que se apressar? Ela
bebia o leite em pequenos goles. Para que se apressar? Tudo o que se passava
vinha necessariamente a eles: sempre esta imagem de necessidade.
Ela
estava meiga. Era-lhe grata por muitas coisas. Sua ligação era agora muito mais
livre do que ontem. Sorria, apontava um pássaro que procurava alimento em
frente à porta. Seu rosto pareceu-lhe novo — onde vira aquele rosto?
Nos
viajantes. Nos viajantes que a vida, dentro de alguns segundos, afastará de
nossa existência. No cais. Esse rosto já pode sorrir, viver de fervores
desconhecidos.
Bemis
ergueu novamente os olhos. De perfil, inclinada, ela sonhava. Ele pensou então
que a perderia se ela virasse um pouco a cabeça.
Certamente,
Geneviève continuava a amá-lo; porém, não se devia pedir muito a uma jovem tão
fraca. Evidentemente, ele não podia dizer: “Devolvo-lhe a liberdade”, nem
qualquer outra frase igualmente absurda; falou, porém, do que tencionava fazer,
de seu futuro; na vida que planejava, ela não era prisioneira. Para
agradecer-lhe, Geneviève pousou sua mãozinha sobre o braço dele: "Você é
todo... todo o meu amor..." E era, na verdade; contudo, ele distinguiu
bem, através daquelas palavras, que eles não eram feitos um para o outro.
Doce
e obstinada. Tão pronta a ser dura, cruel, injusta, mas sem o saber. Tão pronta
a defender, a todo custo, algum bem obscuro. Tranquila e doce, assim era
Geneviève.
Ela
também não era feita para Herlin. E ele sabia. A vida que ela planejava
recomeçar sempre a magoara. Para que realizá-la, então? Ela parecia não sofrer.
Puseram-se
a caminho. Bemis voltou-se um pouco para a esquerda. Tinha perfeita consciência
de que ele também já não sofria; havia, porém, dentro dele, algum animal
ferido, cujas lágrimas eram inexplicáveis.
Nenhum
tumulto em Paris: quase nada se alterara.
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