quarta-feira, 26 de julho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 22


            Saint-Exupéry abandonou o Liceu em 1920 sem qualquer projeto para o futuro. Matriculou-se em arquitetura na Escola de Belas Artes de Paris, mais por entusiasmo súbito que por verdadeira vocação. Os ansiosos parentes encarregados de sua vigilância decidiram dar-lhe um período de liberdade para se iniciar nos prazeres dos cafés e cabarés. Não havia razão alguma para impedir que, como seus ancestrais, ele se casasse com uma rica herdeira de boa família antes de regressar a Saint-Maurice para ajudar a mãe a administrar a propriedade.
           
            Durante boa parte de 1920, Antoine residiu no hotel de La Louisiane, em Saint-Germain-des-Prés. Mais tarde, esse hotel ficaria famoso graças a seus dois hóspedes existencialistas, Simone de Beau- voir e Jean-Paul Sartre. É provável que as primeiras experiências sexuais de Antoine tenham ocorrido nesse período, embora em seu romance autobiográfico, Correio Sul, expresse abertamente o desprezo que sentia pelos encontros casuais no La Coupole, estabelecimento conhecido pela espírito libertino da clientela.
           
            A liberação dos hábitos estudantis, imediatamente após o término da Primeira Guerra Mundial, não foi diferente da que ocorreu após 1945. Saint-Exupéry passava um tempo considerável escrevendo nas mesas de café e freqüentava boates. No entanto, essa vida boêmia era artificial. Recebia uma mesada da mãe e sempre tinha a possibilidade de saciar a fome fazendo-se convidar às recepções oferecidas pó1' algum parente rico. Um grandioso apartamento sobre o cais Malaquais, que dava para o Sena, propriedade de uma prima de sua mãe, Yvonne de Lestrange, era um confortável refúgio.
           
            Passava bastante tempo tentando encontrar uma forma de superar a oposição da família à uma carreira na aviação. A ocasião propícia surgiu quando foi convocado para seus dois anos de serviço militar, em 1921. Antoine de Saint-Exupéry, descendente de numerosas gerações de oficiais do rei, decidiu entrar na aeronáutica na qualidade de mecânico no solo. Em 9 de abril, foi destinado a uma esquadrilha de caça, em Estrasburgo, com o grau de soldado de segunda classe.
           
            Para obter autorização para voar, um recruta geralmente tinha de assinar um contrato de três anos numa escola de oficiais, porém Saint-Exupéry encontrara uma escapatória. Um soldado raso também podia aspirar a uma formação de piloto se tivesse experiência como aviador civil. Alguns dias após sua chegada à base, ele colocou em andamento a primeira parte de seu plano.
           
            Numa bela manhã de abril de 1921, Saint-Exupéry apresentou-se no aeroporto Neuhof, de Estrasburgo, e pediu que um piloto civil da Transaérienne de 1’Est o levasse a passeio sobre a Alsácia, em troca de 50 francos. Após dez minutos de vôo, pediu uma segunda volta. Dois meses depois, voltou para ter aulas de pilotagem.
           
            O monitor, Robert Aéby, aprendera seu ofício na aviação alemã em 1918, antes que a Alsácia fosse devolvida à França. Era um homem meticuloso e recordava com exatidão a data em que Saint-Exupéry começou o treinamento, 18 de junho de 1921, bem como o tipo e o número do avião utilizado, um Farman F40, F-CTEB. Sem saber, viu-se envolvido no que a família denominou “o complô de Estrasburgo”, que permitiu a Saint-Exupéry receber formação de piloto pela quantia de 2.000 francos, com a concordância secreta do comandante da base. O instrutor teve de jurar não revelar a ninguém que Saint-Exupéry, seu primeiro aluno, estava tendo aulas.
           
            O diário de bordó de Aéby foi confiscado em 1940 pelos alemães, mas ele possuía uma cópia do mesmo. Suas anotações destroem a versão romanceada contada por Saint-Exupéry sobre o primeiro vôo que realizou sozinho. Segundo essa versão, repetida por ele a diversos amigos, pegara um aparelho sem permissão e quase o derrubara quando suas calças pegaram fogo. A história ganharia novos e ricos detalhes a cada repetição e, finalmente, o comandante da base acabava assistindo pessoalmente à aterrissagem e afirmando ao piloto que certamente ele nunca morreria num acidente aéreo, depois daquele dia.
           
            Havia um fundo de verdade nessa história; as anotações de Aéby o demonstram. Após três semanas e onze aulas de vôo num aparelho com duplo comando, o instrutor mandou Antoine dar uma volta de dez minutos antes de aterrissar. Naquela ocasião, estava utilizando pela primeira vez um biplano Sopwith, dotado de um “temperamento” bastante particular. Ao chegar à pista de aterrissagem, Antoine calculou mal a altura e acelerou para fazer uma nova tentativa. Sua reação foi muito brusca, e o carburador pegou fogo; o fogo penetrou no cockpit e chamuscou suas polainas.
           
            Aéby felicitou Antoine pela presença de espírito, pois a primeira tentativa frustrada de aterrissagem foi seguida de um pouso perfeito. O erro inicial, num avião desconhecido, era desculpável, disse ele, e depois disso Saint-Exupéry reagira perfeitamente bem. Ele considerava que o aluno era muito capaz, dispondo de bons reflexos e de uma avaliação segura.
            No entanto, Aéby não sucumbiu ao charme de Saint-Exupéry e nunca deixou de considerá-lo um esnobe. Embora tivesse adotado posteriormente uma atitude mais democrática, Saint-Exupéry não hesitava em usar seu título e relações sociais para obter mordomias na aeronáutica. Aéby o chamava de “senhor conde”, e recorda que houve muitas influências e pressões que finalmente permitiram a Saint-Exupéry eludir o regulamento e obter permissões especiais para ter aulas.
           
            Durante anos, Aéby ficou magoado com ele. Após ter voado sozinho pela primeira vez, Saint-Exupéry não ofereceu a tradicional taça de champanhe a seu instrutor. Os dois homens reconciliaram-se num encontro casual, num café de Vichy, dezessete anos mais tarde. Saint-Exupéry, que convalescia de um acidente que quase lhe custara a vida na Guatemala, pagou uma rodada para todos. A tarde terminou com gargalhadas, quando Antoine contou que se sentira tão feliz naquele primeiro vôo desacompanhado que, se tivesse tido suficiente combustível, teria prosseguido indefinidamente.
           
            Além das precisões biográficas relativas ao início de sua carreira de piloto, o episódio de Estrasburgo revela traços interessantes da personalidade de Saint-Exupéry. A primeira impressão que causou em Aéby foi a de um soldado desordenado e mal-arrumado. Durante toda a vida, a incapacidade de Antoine de encontrar vestimentas que lhe caíssem bem e o fizessem parecer elegante foi objeto de troças.
           
            Nesse período também adquiriu o hábito de solicitar ajuda financeira da mãe para os cursos de pilotagem e para o aluguel de um quarto na cidade, sem se preocupar com as possíveis dificuldades pecuniárias de Marie. Mas ele tinha poucos motivos para pensar que ela estivesse arruinada. A mãe tinha acabado de herdar o castelo de Saint-Maurice-de-Rémens de tia Gabrielle e, sua irmã, uma importante quantia de dinheiro. Saint-Exupéry recebeu uma pequena doação do avô Fernand de Saint-Exupéry, cujas propriedades, inclusive uma casa e terrenos em Tours, foram vendidas após sua morte. Todos os netos receberam sua parte, e a casa da rue Pierre-Bellon, em Le Mans, na qual Antoine residira na infância, permaneceu no patrimônio familiar.
           
            Antoine podia considerar também que os parentes ricos da mãe constituíam uma fonte inesgotável de apoio material. A idéia de que a família estava unida por uma corrente de dinheiro, que bastava acionar em caso de necessidade, não estava longe da realidade. No ambiente em que vivia, ninguém tinha escrúpulos para pedir ajuda, pois raramente a fortuna fora fruto do esforço, mas resultado de casamentos astutos ou inevitáveis sucessões.
           
            Uma crítica justificada do caráter de Saint-Exupéry refere-se a sua indiferença pelos receios da mãe, angustiada pela idéia de perder num acidente o único filho que lhe restava. A apreensão dela se traduziu inicialmente na proibição de navegar após a morte de Fran- çois, mas Antoine parecia determinado a seguir o destino dos irmãos Salvez, ao passo que a mãe precisava dele para administrar Saint- Maurice. Essa incapacidade de entender a reação feminina diante de seu pacto com o perigo arruinaria seu primeiro namoro e prejudicaria seu casamento.
           
            Marie cedeu às suas bajulações e súplicas porque nunca conseguia negar-lhe nada, mas talvez tenha se sentido como se estivesse assinando sua sentença de morte ao enviar a autorização para pagar as aulas de pilotagem em Estrasburgo. Estas causaram-lhe vinte anos de angústia, que acabaram com a perda inevitável do filho.
           
            Durante sua estada em Estrasburgo, Antoine percebeu que não era fácil abandonar os privilégios de seu meio. O fato de pedir à mãe uma mesada, equivalente a cerca de 6.000 francos atuais, mostrava que não estava a fim de compartilhar a vida precária dos outros soldados. Enquanto estes tinham de se adaptar à experiência igualitária do serviço militar em quartos superlotados, Saint-Exupéry hospedou-se num quarto em Estrasburgo onde podia tomar banho, fazer chá ou café e dedicar-se tranqüilamente a escrevei'. Se acrescentarmos a isso os cursos de pilotagem e os ocasionais vôos de reconhecimento, sua vida de soldado de segunda classe foi surpreendentemente agradável, sobretudo se não esquecermos que ela durou apenas quatro meses.
           
            Em agosto de 1921, cinco semanas após ter atingido a maioridade, começava a verdadeira carreira militar de Saint-Exupéry. Graças às suas onze aulas de piloto civil, foi considerado suficientemente experiente para ser transferido para uma unidade de caça no protetorado francês de Marrocos como estagiário, tendo obtido seu diploma de piloto qualificado em 23 de dezembro de 1921. As regras de recrutamento eram menos severas nos territórios ultramarinhos, e ele acumulou horas de vôo suficientes para ser depois enviado a uma escola de oficiais cadetes em Avord, no centro da França. Isso aconteceu um ano após sua primeira aula com Robert Aéby, porém só foi admitido na escola depois de prestar um concurso, no qual ficou em 672 lugar entre 68 candidatos.
           
            Em 20 de outubro de 1922, foi promovido a subtenente e transferido para o principal aeroporto de Paris, Le Bourget, no 34a regimento de aviação. Menos de seis semanas mais tarde, um decreto separava o exército do ar do exército de terra, criando um serviço independente, mas para Saint-Exupéry o acontecimento mais importante ocorreu em janeiro do ano seguinte. Seu avião espatifou-se na beira do campo de aviação de Bourget, e ele foi levado ao hospital com fratura de crânio.
           
            Comprovou-se assim que a angústia da mãe com relação aos riscos que seu filho corria era plenamente justificada. Saint-Exupéry rejeitou a proposta de uma carreira no novo exército do ar e assumiu um emprego burocrático numa empresa parisiense. A preocupação de Marie pela segurança do filho não desempenhou nenhum papel nessa decisão. Ele abandonou sua ambição devoradora porque tinha se apaixonado.


Saint-Exupéry durante o Serviço Militar

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