quinta-feira, 13 de julho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 9

            Se os sermões do padre Montessuy, geralmente intermináveis e de estilo floreado, contituíam uma espécie de tortura dominical para os jovens Saint-Exupéry, em compensação eram a substância espiritual vital para a mãe, a quem a fé católica seria fonte constante de inspiração até sua morte, em 1972, aos 97 anos. A profunda devoção de Marie a transformava aos olhos do padre numa espécie de freira leiga, e havia entre eles a cumplicidade de um casal, na qual os dois membros estavam destinados ao celibato: por escolha, no caso do padre; e em razão das circunstâncias, para Marie. Tia Gabrielle, persuadida de que o sacerdote tinha mais influência que ela sobre sua sobrinha-neta, confiara um dia ao padre sua preocupação por vê-la colocar em risco a saúde devido à sua infatigável abnegação. As crianças da aldeia eram convidadas ao castelo pelo menos uma vez por semana, para tomar um lanche acompanhado por brincadeiras, porém tia Gabrielle considerava que Marie ia longe demais ao projetar um piquenique com as meninas do coral. O que faltava na propriedade era um homem, dissera ela ao padre Montessuy.
           
            Marie manifestava amplitude de espírito em matéria de cultura, particularmente no tocante a música e pintura contemporâneas, o que para o padre representava uma atração a mais, pois, criado num ambiente culto de cidade, ficava exposto às superstições, preconceitos e rivalidades mesquinhas de uma comunidade aldeã retirada. Assim, ao assegurar o conforto espiritual de uma corajosa viúva, bem determinada a transmitir aos filhos suas convicções religiosas, dava um sentido à sua missão sacerdotal, pelo menos de abril até outubro, quando o castelo estava ocupado.
           
            O marido de Marie de Saint-Exupéry morreu quando ela tinha 28 anos, após oito anos de casamento. Ela estava esperando seu quinto filho, e o desaparecimento do marido representaria para ela apenas a primeira de uma série de provações pessoais que reforçariam sua fé, baseada numa total aceitação da autoridade espiritual do Evangelho e numa profunda convicção do amor de Deus. Ela exerceu influência determinante sobre a vida de Antoine, e deve ter sofrido mais ao vê-lo abandonar a religião que por sabê-lo exposto aos perigos de sua profissão de piloto.
            É impossível compreender as hesitações de Saint-Exupéry e suas opções às vezes desastradas sem levar em consideração a influência da mãe, que ele algumas vezes tentou contornar, sem nunca poder romper. Sem dúvida reconhecera nela qualidades humanas que ele não possuía e a capacidade de contato com uma deidade benevolente que ele não conseguia atingir. Embora não tenha se sujeitado à compreensível oposição da mãe à sua perigosa carreira, embora tenha rejeitado os projetos de matrimônio que ela tentou arranjar para ele, embora exigisse dinheiro constantemente, mesmo quando a fortuna da família já tinha se esgotado, a afeição entre mãe e filho nunca acabou. A única recriminação que poderia ser feita a Marie seria a de ter representado involuntariamente para seu filho um modelo de perfeição feminina que ele não reencontrou em nenhuma outra mulher.
           
            Podia-se apreciar nela até mesmo o caráter absolutista e sarcástico. Ela não se reconhecia nessas famílias mais preocupadas em gerenciar suas finanças e fazer fortuna para os descendentes do que em aproveitar a existência. Cada vez que dispunha de um pouco de dinheiro, ela o gastava em roupas, preferindo a admiração dos filhos à aprovação dos parentes mais escrupulosos.
           
            As cartas publicadas de Antoine para a mãe demonstram claramente, até o último dia, sua constante sede da afeição e do incentivo maternos, não desmentidos de forma alguma pelas suas recordações das férias em Saint-Maurice ou das visitas ao castelo de La Môle nas colinas do interior de Saint-Tropez, onde Marie passara a infância. A última mensagem de Antoine, redigida alguns dias antes da sua morte, e recebida por ela diversos meses mais tarde, terminava com a súplica: “Mamãe, beije-me como eu a beijo do fundo do meu coração”. Essa carta continha um eco de quarenta anos daquilo que Antoine sempre considerara a pior das punições para sua contínua indisciplina: ser mandado para a cama sem o beijo materno. Seus pedidos desesperados de reconciliação antes de dormir nunca ficavam sem resposta.
           
            A necessidade da afeição de sua petite mama, sentida a vida inteira, está intimamente vinculada às felicidades da infância e a seu talento para evocar o abençoado passado em termos simples. Em 1964, com cerca de 90 anos, Marie de Saint-Exupéry, em solteira Boyer de Fonscolombe, publicou suas recordações do castelo familiar de La Môle numa compilação de ensaios intitulada J’Écoute Chanter mon Arbre. Seu amor pela música, pela natureza e pela literatura, que se evidenciam na evocação de uma infância idílica em companhia de seus três irmãos e da irmã mais nova, sem dúvida foi transmitido ao filho.
            

Marie Boyer De Fonscolombe, 
mãe de Antoine De Saint-Exupéry


Nenhum comentário:

Postar um comentário