sexta-feira, 28 de julho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 24


            Os meses transcorridos entre o outono de 1923, após a fuga de Louise, e novembro de 1926, quando Saint-Exupéry começou sua carreira de piloto de linha em tempo integral, foram mais importantes do que parecem à primeira vista. Durante esse período em que foi sucessivamente empregado de escritório e caixeiro-viajante, na verdade Antoine realizou sua aprendizagem de escritor. O tédio total de um trabalho rotineiro, junto com o esforço necessário para viver decentemente com um insignificante salário de funcionário, era compensado pela possibilidade e o prazer das discussões literárias com seus amigos.

            Desde que abandonara a aeronáutica, Antoine aludia frequentemente a um romance que estava escrevendo. Quando o esboço do que depois seria o Correio Sul apareceu sob a forma de conto em abril de 1926, Antoine chegara à conclusão de que detestava escritores que se esforçavam para obter um efeito estilístico abstrato. A única razão válida para escrever era “ter alguma coisa para dizer”, escrevia a um amigo. Abandonou a poesia romântica. As teorias sem sentido que ele divulgara na época de seus estudos foram substituídas pelo desejo de observar e de interpretar a vida real.

            Na época, seu principal derivativo era a volumosa correspondência com a mãe e as irmãs. Suas cartas eram extraordinárias, tanto do ponto de vista do estilo quanto do conteúdo. A maioria delas era escrita no papel que tinha à mão, inclusive uma conta do alfaiate. Quase todas estavam cobertas de desenhos, sendo que alguns deles eram precursores dos que apareceriam em O Pequeno Príncipe, enquanto outros representavam caricaturas de pessoas que encontrara.

            Saint-Exupéry adota um estilo especial e até mesmo uma caligrafia diferente a cada carta, segundo a personalidade de seu correspondente. Dirige-se à irmã Marie-Madeleine com uma ternura toda especial, enquanto trata Simone mais como uma companheira. A maioria das cartas parece a continuação das conversas iniciadas na infância, em Saint-Maurice.

            Também inundava seus amigos com detalhes relativos à morosidade de sua vida no escritório, rindo com humor e escárnio de si mesmo. As duas pessoas que mais apreciavam sua prosa eram Charles Sallès e Renée de Saussine, irmã de um colega de internato da escola Bossuet. Sallès recebeu as descrições mais deprimentes da vida de Antoine nos escritórios da sede social da fábrica de telhas Boiron, na rue du Faubourg Saint-Honoré, perto da Place de la Concorde. Saint-Exupéry escrevia como se fosse prisioneiro de uma masmorra, na qual literalmente contava os minutos que faltavam para sua libertação.

            “O ponteiro dos segundos é minha única alegria”, escrevia. “Bocejar, este é um maravilhoso consolo!” A carta era tão comprida que evidentemente ele nada tinha a fazer, embora se supusesse que deveria calcular as margens de lucro do último produto da fábrica de telhas. A hora do almoço era saudada com um “Hip! Hip! Hip! Hurra!”, seguido da frase: “É medonho. São 2h05 e estou de volta ao escritório.”

            A rotina não diminuiu de forma alguma sua determinação de se tornar escritor. Uma carta a Sallès, em julho de 1924, alude a seu método de escrever, quando Saint-Exupéry conta que anota trechos para seu romance em pedaços esparsos de papel, perguntando-se depois em que ordem deve juntar as peças do quebra-cabeça. Avisa Sallès que não poderá evitar “corveia do romance” quando vier a Paris. Em outras palavras, terá de submeter-se à audição do texto, tarefa que Saint-Exupéry impôs durante toda a vida aos amigos, da mesma forma que obrigava seu irmão e suas irmãs a escutarem suas histórias e poemas a qualquer hora do dia ou da noite, na sua infância em Saint-Maurice.

            Sua contínua necessidade de reconhecimento foi frequentemente saciada por Renée de Saussine, que ele chamava de assessora literária. Durante um longo período de amizade, Antoine lhe enviou numerosas cartas de todos os países do mundo, prosseguindo assim as discussões literárias iniciadas no salão parisiense dos pais da moça ou nos cafés da Rive Gaúche. Ela recorda seu gesto mais característico quando se entusiasmava com uma discussão literária: segurava um cigarro apagado e acendia todos os fósforos da caixa até encher o cinzeiro.

            A necessidade de escrever a amigos fraternos, geralmente com o objetivo de marcar um encontro, tomou-se ainda mais premente quando abandonou seu emprego no escritório para tornar-se representante comercial de Saurer, um fabricante de caminhões. A melhor lembrança desse emprego, que ocupou durante cerca de dois anos, foram os meses de aprendizagem nas oficinas da sociedade em Suresnes, um subúrbio parisiense. Embora sempre tivesse tido dificuldade para levantar-se cedo, Saint-Exupéry não vacilava em partir às 6 horas da manhã pelo simples prazer de ir trabalhar com motores.

            Depois, ao volante de um Zedal Sigma de boa aparência, carro destinado por Saurer aos vendedores que percorriam o interior, abandonou finalmente o atroz apartamento mobiliado no hotel Titania, no número 70 do Boulevard de Ornano, que alugara por dois anos, apesar das frequentes alusões a seu efeito deprimente nas cartas à mãe.

            No entanto, seu âmbito de atuação conseguia lhe oferecer apenas um consolo limitado. Tinha de percorrer centenas de quilômetros para cobrir três regiões agrícolas — Allier, Cher e Creuse —, sentindo-se ao mesmo tempo divertido e repugnado com a vida monótona desses povoados provincianos. Nas noites passadas em pequenos hotéis dedicava-se a escrever a Renée de Saussine, e essa assídua correspondência aguçava suas capacidades de observação, revelando um estilo cada vez mais conciso. Ele resumiu essa existência em duas frases: “Minha vida é feita de curvas que passo o mais rapidamente possível e de hotéis que se parecem uns com os outros. Não tenho ânimo”.

            Sempre que podia, Antoine regressava a Paris para lançar-se numa apaixonante vida social. Passava uma parte do tempo com Yvonne de Lestrange, prima da mãe, cujo apartamento do cais Malaquais era um dos pontos de encontro da elite cultural parisiense. Ela era uma mulher imensamente rica, cujo casamento com o duque de Trévise fora anulado. De inteligência excepcional e grande abertura de espírito, era uma anfitriã pouco convencional. Com relação a Saint-Exupéry, que só tinha alguns anos menos que ela, comportava-se como uma irmã mais velha, aceitando com indulgência sua atitude frequentemente excêntrica, como uma vez, por exemplo, em que ele dormiu no banho e inundou uma parte do apartamento.

            Na residência do cais Malaquais, perto do Institute de France, o estilo de vida era notavelmente aristocrático. Havia criados de libré, e um fluxo incessante de visitantes influentes que compareciam aos frequentes jantares. Saint-Exupéry freqüentava tanto a casa que estabelecera seu quartel-general justamente embaixo, no café Jarras. Viu-se privado do apoio de Yvonne de Lestrange na maior parte de 1925, pois ela se ausentou para realizar uma missão científica no Congo francês, encarregada pelo Instituto Pasteur de testar uma vacina numa tribo de pigmeus africanos. No início da expedição, Yvonne foi acompanhada por André Gide e Marc Allégret, então um jovem cineasta.

            Durante os jantares no cais Malaquais, Yvonne de Lestrange levava muito em consideração a determinação de Antoine de tornar-se escritor, falando a diversos autores da primeira novela do primo: A Evasão de Jacques Bernis. Como o mundo literário que gravitava na Rive Gaúche era muito limitado, a notícia chegou aos ouvidos de Jean Prévost, que acabara de ser nomeado diretor de uma nova revista literária: Le Navire d’Argent.

            Prévost, tão forte que quebrou o polegar de Ernest Hemingway durante uma luta de boxe, já tivera alguns textos publicados pela La Nouvelle Revue Française, dirigida por André Gide e Gaston Gallimard, todos eles frequentadores da residência Lestrange. Devido à antiguidade de Prévost no mundo literário, Saint-Exupéry sempre o tratou como irmão mais velho, embora na verdade o mais velho fosse ele.

            Prévost iniciou Antoine nos encontros da rue du Odeon, onde as duas livrarias conhecidas no mundo inteiro eram administradas por uma americana e por uma francesa. Num lado estava a loja de Sylvia Beach, Shakespeare and Company, e seus visitantes, como Scott Fitzgerald, Hemingway e James Joyce. Do outro lado da rua, Adrienne Monnier animava a Maison des Amis du Livre, frequentada por Gide, André Breton, Guillaume Appolinaire, Louis Aragon e Paul Valéry.

            Em 1926, Adrienne Monnier era uma robusta solteirona de 43 anos, calorosamente maternal, cuja paixão pela literatura era tão devastadora que seu pai, carteiro, entregou-lhe todas suas economias para fundar a livraria em 1915. Ao longo dos anos, esta se transformou em ponto de encontro para as crias da editora Gallimard e, em 1925, Adrienne decidiu investir seus poucos lucros na edição de uma revista mensal intitulada Le Navire d’Argent, sob a direção de Prévost.

            Apesar de um leque de colaboradores célebres, Le Navire d’Argent estava destinada ao fracasso, que sobreveio depois de um ano, obrigando Adrienne Monnier a liquidar todo seu estoque para pagar dívidas. A revista apresentou Hemingway ao público francês (Gallimard imediatamente ofereceu-lhe um contrato) e incentivou diversos escritores jovens, entre os quais, segundo as palavras utilizadas por Adrienne Monnier, “o mais glorioso dos nossos debutantes: Antoine de Saint-Exupéry”.

            A Evasão de Jacques Bernis foi publicada, numa versão resumida, em Le Navire d’Argent com o título mais simples de O Aviador, o que suprimiu em parte o espírito essencial da novela. Na verdade, a evasão de Jacques Bernis possui um duplo significado. Na história, ele se livra das obrigações de uma vida tediosa atingindo a magia do céu e, mais tarde, dos laços da existência num acidente aéreo.

            Embora não existisse o elemento sentimental, a novela era precursora de Correio Sul pelo seu tom fatalista. As embriagadoras sensações experimentadas por Bernis ao sobrevoar um campo de aviação precedem inevitavelmente uma morte violenta, numa fábula tão velha quanto a de Ícaro. Graças a uma irônica manipulação do destino, Jacques Bernis só é ressuscitado em Correio Sul para morrer no deserto, ao transportar o correio para a África ocidental. Assim, a novela e o romance concederam a esse herói uma oportunidade única na literatura, fazendo-o morrer duas vezes, em dois lugares diferentes, por decisão de seu criador.

            A melancolia e a indiferença a uma morte eventual manifestadas pelo personagem Jacques Bernis podiam ser reconhecidas nos sentimentos pessoais de Saint-Exupéry. Em 1926, quando escreveu essa história, estava sofrendo com a contradição entre a tediosa rotina de seu trabalho como representante comercial e o sentimento de liberdade oferecido pelo céu, quando realizava os voos em Orly para cumprir suas obrigações de oficial da reserva da aeronáutica. Cada voo era vivido por ele como uma recriminação, como a lembrança de sua renúncia à ambição de se tornar piloto profissional.

            Do alto de seu pedestal de autor reconhecido, Prévost apresentou Saint-Exupéry aos leitores de sua revista como um especialista em mecânica e aviação que encontrara na casa de uma amiga. Expressava sua admiração pela “força e delicadeza com que ele descrevia suas impressões” e acrescentava que Saint-Exupéry possuía um dom verdadeiramente surpreendente para um iniciante. Embora esses elogios tenham sido escritos enquanto Saint-Exupéry trabalhava em outras novelas, não se tornou a ouvir falar do novo escritor no mundo editorial até seu regresso, em 1929, após meses de serviço como piloto civil na África ocidental. Os três anos de 1926 a 1929 foram marcados por diversas provações pessoais, porém Antoine sairia vitorioso delas, como um homem que renasce

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