Os últimos meses que
Saint-Exupéry passou como representante comercial deprimiram-no tanto que ele
escreveu uma longa carta repleta de lamentações à irmã Marie-Madeleine: “Levo
uma vida terrivelmente solitária, sempre na estrada. Pareço-me com o judeu errante:
nunca durmo dois dias na mesma cidade. Delas só conheço quartos mobiliados. Não
acontece nada na minha vida. Levanto-me, ando de carro, almoço, janto. Não
penso em nada. É triste”.
É provável que Marie de
Saint-Exupéry influenciou para terminar com essa existência frustrante,
solicitando ao abade Sudour que ajudasse seu filho a fazer carreira na aviação.
O sacerdote, que era provedor da escola Bossuet, onde Antoine estivera interno,
permanecera em contato com muitos dos ex-alunos.
Era amigo de Beppo de Massimi, diretor-geral
da companhia de aviação Latécoère, oficial italiano voluntário, que servira na
aeronáutica francesa. Mais tarde, Massimi enviou o filho para a escola Bossuet.
A pedido do abade Sudour, o aviador italiano teve uma entrevista com
Saint-Exupéry em seu escritório, nos Champs-Élysées, em 12 de outubro de 1926;
primeiramente ofereceu-lhe um emprego administrativo, mas depois cedeu à sua
súplica: “Senhor, eu quero voar... apenas voar”.
Durante a Grande Guerra, Massimi servira
como oficial de observação com Didier Daurat, que, em 1919, com 28 anos, entrou
na nova companhia aérea Latécoère, mais tarde conhecida pelo nome de
Aéropostale. Diretor executivo da companhia postal cujas linhas
com destino à África partiam de Toulouse,
Daurat escolhia pessoalmente seus pilotos, e Massimi telefonou-lhe para pedir
que deixasse Saint-Exupéry fazer um teste. Esse telefonema marcou o início de
cinco anos felizes da vida de Saint-Exupéry, representando o mais longo período
de realização pessoal e de calma interior de uma existência cuja metade já
tinha sido vivida.
As preocupações mesquinhas e
mundanas do representante comercial, do parisiense melancólico e do escritor
frustrado literalmente desapareceram de um dia para o outro. Saint-Exupéry
entrou no mundo real da aviação como um templário para dele emergir purificado
em pensamentos e em espírito. Seus anos de vôo pela África do Norte e pela
América do Sul foram extremamente importantes para sua evolução literária.
Entre 1926 e 1931, ele colheu a essência daquilo que alimentaria sua futura
obra. Os longos períodos de solidão passados no céu ou em um clima exótico
abriram-lhe novos horizontes de criação. A confiança e a estima nele depositadas
restituíram-lhe a dignidade, enquanto a camaradagem e a abnegação
forneceram-lhe os fundamentos de sua filosofia existencial.
Apenas dois dias após seu encontro
com Massimi, Saint-Exupéry já estava atravessando o campo de aviação deserto e
enlameado de Montaudran, o quartel-general das linhas aéreas Latécoère, e entrava
em contato com o núcleo central da aviação pioneira. Lá encontraria inspiração
para seus retratos de homens, cuja bravura e façanhas teriam poucos
equivalentes na literatura do mundo inteiro.
Em poucas linhas ele transforma um
simples nome, como o de Bury ou de Lécrivain, num personagem digno de tomar
assento em volta da Távola Redonda. Em Vôo Noturno, que evoca seu período
latino-americano, as qualidades de chefe intransigente de Didier Daurat
passaram à posteridade sob o pseudônimo de Rivière, para serem mostradas como
exemplo a todos os homens. Alguns pilotos, como Henri Guillaumet, que hoje só
existiríam nas memórias dos fanáticos pela história da aviação, foram elevados
ao status de modelo moral em sua busca de coragem e generosidade.
De outro ponto de vista é possível
notar que Saint-Exupéry rejeitou implicitamente todos os homens que normalmente
desempenhariam um papel central em seus livros se houvesse escrito relatos mais
clássicos, pois ignorou todos aqueles que não correspondiam a seu ideal de
sacrifício e bravura. Entre esses homens esquecidos figurava Pierre-Georges
Latécoère, audacioso homem de negócios, fundador de uma empresa que se tornou
parte integrante
da política expansionista francesa entre as
duas guerras. Sua ambição era comparável à dos mercadores e armadores dos
séculos XV ou XVI, porém essa comparação deixava Saint-Exupéry indiferente.
Em O Pequeno Príncipe, ele não
oculta seu desprezo por esses capitães da indústria que nem sequer têm tempo de
aproveitar seu dinheiro, enquanto passam de um empreendimento para outro. O
homem de negócios de O Pequeno Príncipe é uma imagem compósita, porém um dos
modelos pode ter sido Pierre-Georges Latécoère. Proveniente de uma rica família
provinciana que fez fortuna com o comércio de madeira, Latécoère havia feito
seus estudos na École Cen- trale. Em fotografias tiradas na época do seu
encontro com Saint-Exupéry, aparece um personagem pouco agradável, com óculos
sem aros e um pequeno bigode bem cuidado. Na memória dos seus pilotos deixou
uma imagem de patrão autoritário e frio, que fez fortuna com o comércio de
armas durante a Primeira Guerra Mundial, antes de passar para o ramo dos aviões
em 1917. Distinguia-se dos outros industriais que enriqueceram com a
carnificina dos campos de batalha pela visão do que aconteceria no pós-guerra.
Um ano após o armistício, estava utilizando seus aviões para fins pacíficos, ao
inaugurar o primeiro serviço postal entre a França e a África do Norte. Cartas
que antes levavam uma semana para chegar ao protetorado francês do Marrocos
passaram a chegar por vôo regular em trinta horas.
A ambição de Latécoère foi vista
como uma perigosa jogada de pôquer pelos seus concorrentes. Em 1919, poucos aviões
possuíam um raio de ação superior a 500 quilômetros e uma velocidade máxima de
100 quilômetros por hora. O piloto voava ao ar livre e, freqüentemente, tinha
de sondar o solo em busca de pontos de referência ou de pistas para
aterrissagens de emergência. Os biplanos Bréguet, que inauguraram a linha em
1919, tinham sido construídos para uma breve vida útil em condições de guerra.
As falhas mecânicas deviam ser compensadas pela dedicação temerária dos
pilotos. A maioria dos pioneiros no serviço postal tinha sido aviador durante a
Primeira Guerra Mundial e não se assustava com o elevado número de acidentes.
Mais de 120 pilotos encontraram a morte no lançamento das linhas da companhia
Latécoère, rumo à África do Norte e do Oeste, e mais tarde à América do Sul.
Essa taxa de acidentes não era capaz de comover um fabricante de armas, porém
Latécoère precisava de alguém que pudesse incentivar os calejados pilotos,
forçando-os a retirar o máximo de suas máquinas primitivas. O homem escolhido
para essa tarefa foi Didier Daurat.
De acordo com o retrato traçado por
Saint-Exupéry, Daurat era um líder nato, um super-homem “nietzscheano”, capaz
de transformar homens comuns em verdadeiros heróis pela simples força de sua
personalidade. Como Saint-Exupéry escreveu um romance exaltando as qualidades
de seu chefe, dando-lhe o nome fictício de Ri- vière, e além do mais
dedicou-lhe Vôo Noturno, é provável que ele represente o duplo personagem do
pai e do herói que faltou ao escritor. Daurat nunca podia se equivocar, mesmo
se às vezes parecesse injusto. A percepção que Saint-Exupéry tinha dos
princípios e do temperamento de seu chefe tornou-se o centro de sua filosofia
pessoal, tal como aparece em Cidadela, quando um chefe berbere exerce o poder
absoluto graças à sua força de caráter e à sabedoria nascida da experiência.
Daurat pôde retribuir em parte a
homenagem literária de Saint- Exupéry, ao escrever em 1954 um pequeno livro, Saint-Exupéry,
Tel Que Je l’Ai Connu, do qual foram impressos apenas 51 exemplares. Nele
Daurat diz que o autor de O Pequeno Príncipe atribuía o valor da vida a “tudo
aquilo que faz a glória e a dignidade do homem, isto é, a dedicação e o
sacrifício, o dom de si mesmo”.
Se Saint-Exupéry tivesse podido
redigir o epitáfio de Daurat após sua morte em 1969, com 79 anos, certamente teria
se expressado nos mesmos termos. A admiração e reverência de um jovem criado no
heroísmo da Primeira Guerra eram inevitáveis. Em 1926, a estatura dos heróis da
Grande Guerra não deixara de crescer e Daurat, homenzinho bem cuidado e de
aparência totalmente militar, podia ser incluído entre os bravos dos bravos. Ao
sair da escola de relojoaria e mecânica de Paris, entrara no exército e fora
ferido em Verdun. Após seu restabelecimento, apresentara-se como voluntário na
aeronáutica, onde formou equipe com Massimi para realizar vôos de observação
dos movimentos inimigos. A mais importante façanha de Daurat como piloto de
reconhecimento foi a descoberta do Gros- se Bertha, o canhão alemão de longo
alcance, cujos obuses tinham provocado a evacuação do Liceu Saint-Louis em
1918.
Em 1- de setembro de 1919, Daurat
enriqueceu ainda mais sua reputação de herói ao ligar pela primeira vez
Toulouse a Rabat, abrindo assim a primeira linha postal para Latécoère. Os
pilotos que, depois dele, cruzaram os Pirineus para atingir os traiçoeiros céus
da Espanha e da África do Norte, compartilharam a mesma devoção a um ideal
abstrato que consistia em assegurar o transporte do correio, fosse qual fosse o
preço a ser pago em vidas humanas.
Ao chegar a Toulouse sete anos após o feito de
Daurat, era inevitável que Saint-Exupéry experimentasse certa humildade à sombra
dos soldados veteranos, embora os aviões utilizados e os riscos corridos não
tivessem mudado de forma alguma desde 1919. O respeito e a estima que Daurat
lhe inspirava foram abertamente expostos em Vôo Noturno, porém alguns pilotos
achavam que Saint-Exupéry minimizara os defeitos do chefe e que seu retrato não
correspondia à realidade. Os outros pilotos pareciam mais conscientes da frieza
de Daurat e de sua falta de sentimentos, em grande parte fruto de sua
experiência na Grande Guerra, na qual a vida humana não tinha praticamente
valor algum. Daurat transferira sua teoria da superação dos limites humanos do
campo de batalha para o transporte aventureiro do correio.
Ao servir como modelo ao nobre
personagem Rivière, os motivos pessoais e os princípios de Daurat eram fruto da
invenção romanesca de Saint-Exupéry, disposto a ver idealismo onde outros
detectavam apenas uma resoluta consciência profissional. Ninguém conseguiu
aproximar-se suficientemente do chefe para derrubar as barreiras
intransponíveis que construíra em volta de si mesmo, graças a tal autoritarismo
e severidade que mesmo seus melhores pilotos nunca o chamavam pelo nome.
Saint-Exupéry não era uma exceção à regra. Na dedicatória de Vôo Noturno,
dirige-se respeitosamente ao seu herói com o nome de “Monsieur Didier Daurat”.
A admiração que Saint-Exupéry começou
a sentir pelo chefe após chegar a Toulouse não era recíproca. Recordando seu
primeiro encontro, Daurat esclareceu que duvidou bastante das capacidades de
seu novo recruta. O currículo de Saint-Exupéry como aviador era bastante
limitado, com exceção das 350 horas de vôo de treinamento realizadas havia três
anos. Daurat também não ficara bem impressionado com o acanhamento e os gestos
desajeitados de Saint-Exupéry, tendo tido a impressão de que Antoine receava
não estar à altura da situação porque “até então não vencera em nada na vida”.
É provável que Daurat tenha sido influenciado pela opinião pouco lisonjeira de
Massimi, após a entrevista em Paris; o italiano guardava a lembrança de “um
grande rapaz tímido, que parecia incomodado pelo seu tamanho e pelo fato de
ocupar demasiado espaço na poltrona”.
Em Terra dos Homens, as lembranças
pessoais de Saint-Exupéry de sua chegada ao aeródromo de Toulouse Montaudran
têm um toque de espanto e humildade, como se ainda não pudesse acreditar em sua
sorte ao descrever o acontecimento doze anos mais tarde.
Muito antes de sua primeira decolagem, já era
transportado para além da experiência dos mortais comuns, na atmosfera
excitante e única da aventura. Sem dúvida ele era o único piloto da base que anteriormente
tivera um emprego tão monótono e rotineiro. As histórias sobre o tempo passado
entre esses heróicos oficiais relatadas por Saint-Exupéry fazem ressurgir o
passado legendário de Ambé- rieu. O clima do hotel do Grand Balcon em Toulouse,
onde os aviadores se hospedavam, é semelhante ao do hotel do Lion d’Or.
Os pilotos provinham de todos os
ambientes, sem distinção de categoria nem classe social. Estavam juntos numa
cruzada comum: o correio deveria ser transportado, fosse qual fosse o preço. Um
simples cartão-postal destinado a uma mocinha de Rabat era mais importante que
o avião ou seu piloto. A única recompensa válida era a estima dos outros
aviadores.
Ao lado de trechos que misturam
humildade e sentido de grandeza, Saint-Exupéry também expressa em seus livros o
alívio de fi- nalmente estar fazendo um trabalho útil. No entanto, não faz qualquer
alusão ao recente pesar causado pela morte da irmã mais velha, Marie-Madeleine,
que durante boa parte da vida sofrera de epilepsia. Foi enterrada perto do pai
e do irmão François no jazigo da família, em Saint-Maurice.
Em suas cartas de Toulouse,
Saint-Exupéry fazia projetos para a mãe vir visitá-lo durante as férias,
consciente de que ela havia ficado praticamente sozinha. Gabrielle estava
casada há três anos e morava em Agay, na costa mediterrânea, enquanto Simone se
preparava para partir para a Indochina como arquivista. Contudo, sua mãe estava
muito ocupada com obras de caridade, ajudando a reconstrução das aldeias do
norte da França devastadas pela guerra. O fato de ela não vir correndo para vê-lo
revela uma vontade de romper a dependência dos laços afetivos da infância,
projeto muitas vezes adiado. Nos anos seguintes, houve diversos reencontros
breves entre os filhos sobreviventes e a mãe, porém o espírito da conspiração
familiar de Saint- Maurice estava prestes a desaparecer.
Pouco tempo após ter sido empregado
por Latécoère, Saint-Exupéry escreveu a Simone: “Agora nos dispersamos como os
filhos de Babel”. Ele se perguntava se realmente tinha vivido a infância que
ela lembrava numa das cartas. “Pensam que não tenho coração porque não
demonstro nada, mas poderia morrer de melancolia pelo passado destruído, por
todos esses passados destruídos”, acrescentava.
Os mistérios de Saint-Maurice seriam
substituídos por nuvens que assumiriam a forma de castelos e dragões e
por extensões desertas que ele coloriría com sonhos e fábulas. Vinte anos se
passariam antes que as lembranças românticas da infância se confundissem com a
vida angustiada de adulto para produzir a melancolia desorientada de O Pequeno
Príncipe.
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