sábado, 29 de julho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 25


            Os últimos meses que Saint-Exupéry passou como representante comercial deprimiram-no tanto que ele escreveu uma longa carta repleta de lamentações à irmã Marie-Madeleine: “Levo uma vida terrivelmente solitária, sempre na estrada. Pareço-me com o judeu errante: nunca durmo dois dias na mesma cidade. Delas só conheço quartos mobiliados. Não acontece nada na minha vida. Levanto-me, ando de carro, almoço, janto. Não penso em nada. É triste”.

            É provável que Marie de Saint-Exupéry influenciou para terminar com essa existência frustrante, solicitando ao abade Sudour que ajudasse seu filho a fazer carreira na aviação. O sacerdote, que era provedor da escola Bossuet, onde Antoine estivera interno, permanecera em contato com muitos dos ex-alunos.

            Era amigo de Beppo de Massimi, diretor-geral da companhia de aviação Latécoère, oficial italiano voluntário, que servira na aeronáutica francesa. Mais tarde, Massimi enviou o filho para a escola Bossuet. A pedido do abade Sudour, o aviador italiano teve uma entrevista com Saint-Exupéry em seu escritório, nos Champs-Élysées, em 12 de outubro de 1926; primeiramente ofereceu-lhe um emprego administrativo, mas depois cedeu à sua súplica: “Senhor, eu quero voar... apenas voar”.

            Durante a Grande Guerra, Massimi servira como oficial de observação com Didier Daurat, que, em 1919, com 28 anos, entrou na nova companhia aérea Latécoère, mais tarde conhecida pelo nome de Aéropostale. Diretor executivo da companhia postal cujas linhas

             com destino à África partiam de Toulouse, Daurat escolhia pessoalmente seus pilotos, e Massimi telefonou-lhe para pedir que deixasse Saint-Exupéry fazer um teste. Esse telefonema marcou o início de cinco anos felizes da vida de Saint-Exupéry, representando o mais longo período de realização pessoal e de calma interior de uma existência cuja metade já tinha sido vivida.

            As preocupações mesquinhas e mundanas do representante comercial, do parisiense melancólico e do escritor frustrado literalmente desapareceram de um dia para o outro. Saint-Exupéry entrou no mundo real da aviação como um templário para dele emergir purificado em pensamentos e em espírito. Seus anos de vôo pela África do Norte e pela América do Sul foram extremamente importantes para sua evolução literária. Entre 1926 e 1931, ele colheu a essência daquilo que alimentaria sua futura obra. Os longos períodos de solidão passados no céu ou em um clima exótico abriram-lhe novos horizontes de criação. A confiança e a estima nele depositadas restituíram-lhe a dignidade, enquanto a camaradagem e a abnegação forneceram-lhe os fundamentos de sua filosofia existencial.

            Apenas dois dias após seu encontro com Massimi, Saint-Exupéry já estava atravessando o campo de aviação deserto e enlameado de Montaudran, o quartel-general das linhas aéreas Latécoère, e entrava em contato com o núcleo central da aviação pioneira. Lá encontraria inspiração para seus retratos de homens, cuja bravura e façanhas teriam poucos equivalentes na literatura do mundo inteiro.

            Em poucas linhas ele transforma um simples nome, como o de Bury ou de Lécrivain, num personagem digno de tomar assento em volta da Távola Redonda. Em Vôo Noturno, que evoca seu período latino-americano, as qualidades de chefe intransigente de Didier Daurat passaram à posteridade sob o pseudônimo de Rivière, para serem mostradas como exemplo a todos os homens. Alguns pilotos, como Henri Guillaumet, que hoje só existiríam nas memórias dos fanáticos pela história da aviação, foram elevados ao status de modelo moral em sua busca de coragem e generosidade.

            De outro ponto de vista é possível notar que Saint-Exupéry rejeitou implicitamente todos os homens que normalmente desempenhariam um papel central em seus livros se houvesse escrito relatos mais clássicos, pois ignorou todos aqueles que não correspondiam a seu ideal de sacrifício e bravura. Entre esses homens esquecidos figurava Pierre-Georges Latécoère, audacioso homem de negócios, fundador de uma empresa que se tornou parte integrante

             da política expansionista francesa entre as duas guerras. Sua ambição era comparável à dos mercadores e armadores dos séculos XV ou XVI, porém essa comparação deixava Saint-Exupéry indiferente.

            Em O Pequeno Príncipe, ele não oculta seu desprezo por esses capitães da indústria que nem sequer têm tempo de aproveitar seu dinheiro, enquanto passam de um empreendimento para outro. O homem de negócios de O Pequeno Príncipe é uma imagem compósita, porém um dos modelos pode ter sido Pierre-Georges Latécoère. Proveniente de uma rica família provinciana que fez fortuna com o comércio de madeira, Latécoère havia feito seus estudos na École Cen- trale. Em fotografias tiradas na época do seu encontro com Saint-Exupéry, aparece um personagem pouco agradável, com óculos sem aros e um pequeno bigode bem cuidado. Na memória dos seus pilotos deixou uma imagem de patrão autoritário e frio, que fez fortuna com o comércio de armas durante a Primeira Guerra Mundial, antes de passar para o ramo dos aviões em 1917. Distinguia-se dos outros industriais que enriqueceram com a carnificina dos campos de batalha pela visão do que aconteceria no pós-guerra. Um ano após o armistício, estava utilizando seus aviões para fins pacíficos, ao inaugurar o primeiro serviço postal entre a França e a África do Norte. Cartas que antes levavam uma semana para chegar ao protetorado francês do Marrocos passaram a chegar por vôo regular em trinta horas.

            A ambição de Latécoère foi vista como uma perigosa jogada de pôquer pelos seus concorrentes. Em 1919, poucos aviões possuíam um raio de ação superior a 500 quilômetros e uma velocidade máxima de 100 quilômetros por hora. O piloto voava ao ar livre e, freqüentemente, tinha de sondar o solo em busca de pontos de referência ou de pistas para aterrissagens de emergência. Os biplanos Bréguet, que inauguraram a linha em 1919, tinham sido construídos para uma breve vida útil em condições de guerra. As falhas mecânicas deviam ser compensadas pela dedicação temerária dos pilotos. A maioria dos pioneiros no serviço postal tinha sido aviador durante a Primeira Guerra Mundial e não se assustava com o elevado número de acidentes. Mais de 120 pilotos encontraram a morte no lançamento das linhas da companhia Latécoère, rumo à África do Norte e do Oeste, e mais tarde à América do Sul. Essa taxa de acidentes não era capaz de comover um fabricante de armas, porém Latécoère precisava de alguém que pudesse incentivar os calejados pilotos, forçando-os a retirar o máximo de suas máquinas primitivas. O homem escolhido para essa tarefa foi Didier Daurat.

             De acordo com o retrato traçado por Saint-Exupéry, Daurat era um líder nato, um super-homem “nietzscheano”, capaz de transformar homens comuns em verdadeiros heróis pela simples força de sua personalidade. Como Saint-Exupéry escreveu um romance exaltando as qualidades de seu chefe, dando-lhe o nome fictício de Ri- vière, e além do mais dedicou-lhe Vôo Noturno, é provável que ele represente o duplo personagem do pai e do herói que faltou ao escritor. Daurat nunca podia se equivocar, mesmo se às vezes parecesse injusto. A percepção que Saint-Exupéry tinha dos princípios e do temperamento de seu chefe tornou-se o centro de sua filosofia pessoal, tal como aparece em Cidadela, quando um chefe berbere exerce o poder absoluto graças à sua força de caráter e à sabedoria nascida da experiência.

            Daurat pôde retribuir em parte a homenagem literária de Saint- Exupéry, ao escrever em 1954 um pequeno livro, Saint-Exupéry, Tel Que Je l’Ai Connu, do qual foram impressos apenas 51 exemplares. Nele Daurat diz que o autor de O Pequeno Príncipe atribuía o valor da vida a “tudo aquilo que faz a glória e a dignidade do homem, isto é, a dedicação e o sacrifício, o dom de si mesmo”.

            Se Saint-Exupéry tivesse podido redigir o epitáfio de Daurat após sua morte em 1969, com 79 anos, certamente teria se expressado nos mesmos termos. A admiração e reverência de um jovem criado no heroísmo da Primeira Guerra eram inevitáveis. Em 1926, a estatura dos heróis da Grande Guerra não deixara de crescer e Daurat, homenzinho bem cuidado e de aparência totalmente militar, podia ser incluído entre os bravos dos bravos. Ao sair da escola de relojoaria e mecânica de Paris, entrara no exército e fora ferido em Verdun. Após seu restabelecimento, apresentara-se como voluntário na aeronáutica, onde formou equipe com Massimi para realizar vôos de observação dos movimentos inimigos. A mais importante façanha de Daurat como piloto de reconhecimento foi a descoberta do Gros- se Bertha, o canhão alemão de longo alcance, cujos obuses tinham provocado a evacuação do Liceu Saint-Louis em 1918.

            Em 1- de setembro de 1919, Daurat enriqueceu ainda mais sua reputação de herói ao ligar pela primeira vez Toulouse a Rabat, abrindo assim a primeira linha postal para Latécoère. Os pilotos que, depois dele, cruzaram os Pirineus para atingir os traiçoeiros céus da Espanha e da África do Norte, compartilharam a mesma devoção a um ideal abstrato que consistia em assegurar o transporte do correio, fosse qual fosse o preço a ser pago em vidas humanas.

             Ao chegar a Toulouse sete anos após o feito de Daurat, era inevitável que Saint-Exupéry experimentasse certa humildade à sombra dos soldados veteranos, embora os aviões utilizados e os riscos corridos não tivessem mudado de forma alguma desde 1919. O respeito e a estima que Daurat lhe inspirava foram abertamente expostos em Vôo Noturno, porém alguns pilotos achavam que Saint-Exupéry minimizara os defeitos do chefe e que seu retrato não correspondia à realidade. Os outros pilotos pareciam mais conscientes da frieza de Daurat e de sua falta de sentimentos, em grande parte fruto de sua experiência na Grande Guerra, na qual a vida humana não tinha praticamente valor algum. Daurat transferira sua teoria da superação dos limites humanos do campo de batalha para o transporte aventureiro do correio.

            Ao servir como modelo ao nobre personagem Rivière, os motivos pessoais e os princípios de Daurat eram fruto da invenção romanesca de Saint-Exupéry, disposto a ver idealismo onde outros detectavam apenas uma resoluta consciência profissional. Ninguém conseguiu aproximar-se suficientemente do chefe para derrubar as barreiras intransponíveis que construíra em volta de si mesmo, graças a tal autoritarismo e severidade que mesmo seus melhores pilotos nunca o chamavam pelo nome. Saint-Exupéry não era uma exceção à regra. Na dedicatória de Vôo Noturno, dirige-se respeitosamente ao seu herói com o nome de “Monsieur Didier Daurat”.

            A admiração que Saint-Exupéry começou a sentir pelo chefe após chegar a Toulouse não era recíproca. Recordando seu primeiro encontro, Daurat esclareceu que duvidou bastante das capacidades de seu novo recruta. O currículo de Saint-Exupéry como aviador era bastante limitado, com exceção das 350 horas de vôo de treinamento realizadas havia três anos. Daurat também não ficara bem impressionado com o acanhamento e os gestos desajeitados de Saint-Exupéry, tendo tido a impressão de que Antoine receava não estar à altura da situação porque “até então não vencera em nada na vida”. É provável que Daurat tenha sido influenciado pela opinião pouco lisonjeira de Massimi, após a entrevista em Paris; o italiano guardava a lembrança de “um grande rapaz tímido, que parecia incomodado pelo seu tamanho e pelo fato de ocupar demasiado espaço na poltrona”.

            Em Terra dos Homens, as lembranças pessoais de Saint-Exupéry de sua chegada ao aeródromo de Toulouse Montaudran têm um toque de espanto e humildade, como se ainda não pudesse acreditar em sua sorte ao descrever o acontecimento doze anos mais tarde.

             Muito antes de sua primeira decolagem, já era transportado para além da experiência dos mortais comuns, na atmosfera excitante e única da aventura. Sem dúvida ele era o único piloto da base que anteriormente tivera um emprego tão monótono e rotineiro. As histórias sobre o tempo passado entre esses heróicos oficiais relatadas por Saint-Exupéry fazem ressurgir o passado legendário de Ambé- rieu. O clima do hotel do Grand Balcon em Toulouse, onde os aviadores se hospedavam, é semelhante ao do hotel do Lion d’Or.

            Os pilotos provinham de todos os ambientes, sem distinção de categoria nem classe social. Estavam juntos numa cruzada comum: o correio deveria ser transportado, fosse qual fosse o preço. Um simples cartão-postal destinado a uma mocinha de Rabat era mais importante que o avião ou seu piloto. A única recompensa válida era a estima dos outros aviadores.

            Ao lado de trechos que misturam humildade e sentido de grandeza, Saint-Exupéry também expressa em seus livros o alívio de fi- nalmente estar fazendo um trabalho útil. No entanto, não faz qualquer alusão ao recente pesar causado pela morte da irmã mais velha, Marie-Madeleine, que durante boa parte da vida sofrera de epilepsia. Foi enterrada perto do pai e do irmão François no jazigo da família, em Saint-Maurice.

            Em suas cartas de Toulouse, Saint-Exupéry fazia projetos para a mãe vir visitá-lo durante as férias, consciente de que ela havia ficado praticamente sozinha. Gabrielle estava casada há três anos e morava em Agay, na costa mediterrânea, enquanto Simone se preparava para partir para a Indochina como arquivista. Contudo, sua mãe estava muito ocupada com obras de caridade, ajudando a reconstrução das aldeias do norte da França devastadas pela guerra. O fato de ela não vir correndo para vê-lo revela uma vontade de romper a dependência dos laços afetivos da infância, projeto muitas vezes adiado. Nos anos seguintes, houve diversos reencontros breves entre os filhos sobreviventes e a mãe, porém o espírito da conspiração familiar de Saint- Maurice estava prestes a desaparecer.

            Pouco tempo após ter sido empregado por Latécoère, Saint-Exupéry escreveu a Simone: “Agora nos dispersamos como os filhos de Babel”. Ele se perguntava se realmente tinha vivido a infância que ela lembrava numa das cartas. “Pensam que não tenho coração porque não demonstro nada, mas poderia morrer de melancolia pelo passado destruído, por todos esses passados destruídos”, acrescentava.

            Os mistérios de Saint-Maurice seriam substituídos por nuvens que assumiriam a forma de castelos e dragões e por extensões desertas que ele coloriría com sonhos e fábulas. Vinte anos se passariam antes que as lembranças românticas da infância se confundissem com a vida angustiada de adulto para produzir a melancolia desorientada de O Pequeno Príncipe. 

            
  
             

Nenhum comentário:

Postar um comentário