domingo, 16 de julho de 2017

CORREIO SUL - 14

XIII

            Ela teme esse homem silencioso. À noite, quando acorda ao lado dele, que ainda dorme, tem a impressão de estar abandonada numa praia deserta.

            — Aperte-me em seus braços!

            Experimenta, no entanto, êxtases de ternura... mas a estranha vida encerrada neste corpo, os sonhos desconhecidos, sob o resistente osso da fronte! Deitada neste peito, sente a respiração do homem aumentar e diminuir como uma onda, semelhante à angústia de uma travessia. Com o ouvido colado ao corpo, escutando o forte bater do coração — motor em marcha ou machado do lenhador —, experimenta o sentimento de uma fuga rápida e incompreensível. E este silêncio, quando pronuncia uma palavra que o desperta. Conta os segundos entre as palavras e a resposta, como numa trovoada — um... dois... três... Ele está para além dos campos. Se Bemis fecha os olhos, ela pega sua cabeça, pesada como a de um cadáver, como uma pedra, e a embala. “Meu amor, que solidão..."

            Misterioso companheiro de viagem.

            Os dois estendidos e mudos. Sente-se a vida que os percorre como um rio. Uma fuga vertiginosa. O corpo: esta canoa deitada ao mar...

            — Que horas são?

             Faz-se uma pausa: viagem esquisita. "Meu amor!" Ela se aconchega a ele, com a cabeça caída, os cabelos revoltos, como se tivesse sido tirada das águas. A mulher emerge do sono ou do amor, com a mecha de cabelos colada ao rosto desfeito, como saída dos mares.

            — Que horas são?

            Ah! Por quê? As horas passam como pequenas estações de província — meia-noite, uma, duas horas — deixadas para trás, perdidas. Alguma coisa que não se pode reter flui por entre os dedos. Envelhecer não significa nada.

            — Imagino-o muito bem, já com cabelos brancos e eu a seu lado, cheio de juízo, como sua amiga...

            Envelhecer não significa nada.

            Mas este segundo desperdiçado, esta calma diferente, ainda um pouco mais longa, é isso que fatiga!

            — Me fala do seu país?

            — Além         

            Bernis sabe que é impossível. Cidades, mares, pátrias: tudo a mesma coisa. Às vezes, assumem um aspecto efêmero, que se adivinha sem compreender, que não se traduz.

            Acaricia o ventre dessa mulher, o lugar onde a carne é indefesa. Mulher: a mais nua das carnes vivas e a que brilha como a mais suave. Ele pensa nesta vida misteriosa que a anima e a aquece como um sol, como um clima interior. Bemis não diz que ela é tenra ou bela, mas morna. Morna como um animal Viva. E o coração batendo sempre, fonte diferente da sua e encerrada naquele corpo.

            Sonha com a excitação que escapou dele, por alguns segundos: pássaro louco que bate as asas e morre. Mas agora...

            Agora, na janela, o céu treme. A mulher, após o amor, sente-se aniquilada e despojada do desejo do homem. Lançada entre as estrelas frias. As paisagens do coração transformam-se tão depressa... Superado o desejo, superada a ternura, cruzado o rio de fogo. Agora puro, livre, à vontade com o corpo, ele se sente como na proa de um navio, no alto-mar.




             XIV

            Esta sala arrumada parece um cais. Em Paris, Bemis padece horas desertas à espera do momento em que o expresso partirá. Com a cabeça encostada à vidraça, observa a multidão em trânsito. É ultrapassado por este rio. Cada homem faz um projeto, apressa-se. Intrigas encadeiam-se e desencadeiam-se, alheias a ele. Esta mulher, que ali vai, dá apenas dez passos e desaparece no tempo. Esta multidão era a matéria viva que nos nutria de lágrimas e sorrisos; mas agora, aí está ela, identificando-se com multidão dos povos mortos.


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