quinta-feira, 27 de julho de 2017

VOO NOTURNO - 16


           

            A mulher de Fabien telefonou.

            Na noite de cada regresso, ela calculava o andamento do correio da Patagônia: “Está decolando em Trelew...”. Em seguida, voltava a dormir. Um pouco mais tarde: “Deve estar se aproximando de San Antonio e vendo suas luzes...”. Então, levantava-se, abria as cortinas e observava o céu: “Todas estas nuvens o atrapalham...”. Por vezes, a lua caminhava como um pastor. Então, a jovem voltava a se deitar, tranquilizada pela lua e pelas estrelas; essas milhares de presenças ao redor do marido. Por volta de uma hora ela o sentiu próximo: “Não deve estar muito longe, já deve estar vendo Buenos Aires...” Então, levantou-se e lhe preparou uma refeição, com um café bem quente: “Faz tanto frio lá em cima...” Sempre o recebia como se descesse do pico de uma montanha coberta de neve:

            — Não está com frio?

            — Não!

            — Aqueça-se de qualquer maneira...

             Por volta de uma hora e quinze estava tudo pronto. Então, ela telefonou.

            Naquela noite, como nas outras, ela pediu a informação:

            — Fabien já aterrissou?

            O secretário que a atendeu se atrapalhou um pouco:

            — Quem fala?

            — Simone Fabien.

            — Ah! Um minuto...

            O secretário não ousou dizer nada, passou o telefone para o chefe do escritório.

            — Ah! O que a senhora deseja, madame?

            — Meu marido já aterrissou?

            Houve um silêncio que pareceu inexplicável; em seguida, responderam simplesmente:

            — Não.

            — Está atrasado?

            — Sim...

            Houve um novo silêncio.

            — Sim... houve um atraso.

            — Ah!

            Foi um “Ah” de carne ferida. Um atraso não quer dizer nada... não quer dizer nada... Mas quando ele se prolonga...

            — E a que horas chegará?

            — Nós... Nós não sabemos.

            Ela se defrontou agora com uma espécie de muro à sua frente. Obtinha apenas o eco de suas próprias perguntas.

            — Eu lhe suplico, responda-me! Onde ele está?

            — Onde ele está? Espere...

            Essa inércia lhe fazia mal. Alguma coisa estava acontecendo lá, atrás daquele muro.

            Decidiram-se:

             — Ele decolou de Comodoro às dezenove e trinta.

            — E depois?

            — Depois?... Muito atrasado... Muito atrasado por causa do mau tempo...

            — Ah! O mau tempo...

            Que injustiça, quanta falsidade naquela lua exposta lá, ociosa sobre Buenos Aires! Repentinamente, a jovem se lembrou de que duas horas eram suficientes para ir de Comodoro a Trelew.

            — Faz seis horas que ele está voando em direção a Trelew! Mas ele envia mensagens para vocês! O que ele diz?

            — O que ele diz? Naturalmente, com um tempo desses... você entende... não é possível ouvir as mensagens.

            — Um tempo desses?

            — Fica combinado assim, nós lhe telefonaremos assim que soubermos alguma coisa.

            — Ah! Vocês não sabem nada...

            — Até logo, senhora...

            — Não, não! Quero falar com o diretor!

            — O diretor está muito ocupado, senhora, ele está em uma conferência...

            — Pouco importa! Isso, realmente, não me interessa! Quero falar com ele!

            O chefe do escritório enxugou o suor:

            — Um minuto...

            Empurrou a porta de Rivière:

            — A senhora Fabien deseja falar com o senhor.

            "Pronto”, pensou Rivière, “eis o que eu temia. Os elementos afetivos do drama começaram a se mostrar”. Ele pensou inicialmente em recusá-los: as mães e as mulheres não entram nas salas de operação. Também nos navios em perigo fazem com que as emoções se calem, pois elas não ajudam a salvar os homens. No entanto, aceitou:

            — Ligue para o meu escritório.

            Ele escutou aquela voz frágil, longínqua, trêmula e, imediatamente, compreendeu que não poderia responder-lhe. O encontro seria totalmente estéril para os dois.

            — Senhora, eu lhe suplico que se acalme. No nosso ofício é muito comum esperarmos um longo tempo por notícias.

            Tinha chegado a essa fronteira em que se coloca não a questão de uma mísera angústia particular, mas a da própria ação. Diante de Rivière, erguia-se, não a mulher de Fabien, mas um outro sentido da vida. Rivière não podia fazer nada além de ouvir e compadecer-se daquela voz, daquele canto tão triste, mas inimigo. Pois nem a ação, nem a felicidade individual admitem a partilha: estão em conflito. Aquela mulher também falava em nome de um mundo absoluto, dos seus direitos e deveres. O mundo da claridade de uma lâmpada sobre a mesa da noite, de uma carne que reclamava sua carne, de uma pátria de esperanças, de ternuras, de lembranças. Exigia sua fortuna e tinha razão. E ele, Rivière, também tinha razão, mas não havia nada o que pudesse opor à verdade daquela mulher. Sob a luz de uma humilde lâmpada doméstica, ele descobria sua própria verdade: inexprimível e desumana.

            — Senhora...

            Ela não escutava mais. Teve a impressão de que, depois de esgotar a força de seus frágeis punhos contra o muro, ela tinha caído quase a seus pés.

           
Houve um dia em que, enquanto se debruçavam sobre um ferido, em uma ponte em construção, um engenheiro disse a Rivière:

             — Esta ponte vale o preço de um rosto esmagado?

            Nenhum camponês, para quem a ponte está sendo construída,

            teria aceitado mutilar aquele rosto de forma tão pavorosa, para evitar um desvio através da ponte seguinte. E, no entanto, pontes são construídas. O engenheiro acrescentou:

            — O interesse geral é feito de interesses particulares: não justifica mais nada.

            No entanto, Rivière lhe disse mais tarde:

            — Embora a vida humana não tenha preço, sempre agimos como se qualquer coisa ultrapassasse, em valor, a vida humana. . . mas, por quê?

            Imaginando a tripulação, Rivière sentiu o coração apertado. A ação, mesmo aquela de construir pontes, despedaça felicidades; ele já não podia deixar de se perguntar: “Em nome de quê?”.

            “Esses homens, que talvez desapareçam, poderiam ter vivido felizes”, pensava. Via rostos pendurados no santuário de ouro das lâmpadas noturnas. “Em nome de quê eu os tirei dali? Em nome de que os arranquei da felicidade individual? A lei primordial não é a de proteger essas felicidades? Mas ela mesmo as destrói.” E, no entanto, um dia, fatalmente, os santuários dourados desaparecem como miragens. A velhice e a morte, mais impiedosas do que eles mesmos, destroem-nos. Talvez exista qualquer coisa mais durável para ser salva. Será para salvar essa parte do homem que Rivière trabalha? Caso contrário, a ação não se justifica.

           
“Amar, amar somente, que impasse!” Rivière teve o obscuro sentimento de um dever maior do que o de amar. Ou talvez se tratasse também de uma ternura, mas tão diferente das outras. Uma frase voltou-lhe à mente: “Trata-se de torná-los eternos...” Onde ele teria lido isso? “O que procuramos vai morrendo dentro de nós.” Lembrou-se de um templo em honra ao deus do Sol, construído pelos antigos incas no Peru. Aquelas pedras erguidas sobre a montanha. Sem elas, o que restaria de uma civilização poderosa que pesava com força proporcional à daquelas pedras, sobre os homens de hoje, como um remorso? “Em nome de qual rigor, ou de que estranho amor, o condutor dos povos de outros tempos obrigou multidões a construírem aquele templo sobre as montanhas, impondo-lhes, então, a tarefa de construir a sua eternidade?” Rivière voltou a ver, também em sonho, as multidões das pequenas cidades que passeavam à noite ao redor dos seus coretos: “Esse tipo de felicidade, essa proteção...”, refletia. Se o condutor de povos de outros tempos não sentiu compaixão pelo sentimento dos homens, sentiu uma pena imensa pela morte deles. Não pela morte individual, mas pela espécie que o mar de areia apagaria. E conduzia seu povo a erguer ao menos pedras, que o deserto não poderia sepultar.



CAPITULO XV

            Aquele papel dobrado em quatro talvez pudesse salvá-lo:

            Fabien o desdobrou com os dentes cerrados.

            “Impossível comunicar-me com Buenos Aires. Não posso nem sequer manipular os comandos, eles estão soltando faíscas nos meus dedos.”

            Irritado, Fabien quis responder, mas quando suas mãos deixaram os comandos para escrever, uma espécie de onda muito forte penetrou em seu corpo: os redemoinhos levantavam-no, com suas cinco toneladas de metal, e sacudiam-no. Ele desistiu de escrever.

            Suas mãos se fecharam novamente sobre a onda e a reduziram.

            Fabien respirou profundamente. Se o telegrafista recolhesse a antena por medo da tempestade, quebrar-lhe-ia a cara quando chegasse. Era preciso entrar em contato com Buenos Aires a qualquer preço, como se, a mais de mil e quinhentos quilômetros de distância, fosse possível lançar-lhe uma corda nesse abismo. Na falta de uma luz, trêmula que fosse, de uma quase inútil lanterna de pousada, mas que, como um farol, teria provado a existência da terra, ele precisava ao menos de uma voz, uma apenas, vinda de um mundo que já não existia mais. O piloto levantou e balançou o punho, naquela luz avermelhada, para que o colega atrás dele pudesse compreender a trágica verdade, mas o companheiro, debruçado sobre o espaço devastado, de vilas sepultadas, de luzes mortas, não a reconheceu.

            Fabien teria seguido todos os conselhos, desde que lhe fossem gritados. Pensava: “Se me pedirem para girar em círculos, giro em círculos, se me disserem para voar em direção ao Sul...”. Em alguma parte, essas terras de paz existiam, tranquilas sob suas grandes sombras de luar. Lá embaixo, seus companheiros, instruídos como sábios, debruçados sobre mapas todo-poderosos, ao abrigo de lâmpadas belas como flores, conheciam sua existência. E o que sabia ele, além dos redemoinhos e da noite que lhe lançava sua torrente negra com a rapidez de um desabamento? Dois homens não podiam ser abandonados entre as nuvens, em meio a trombas d’água e chamas. Não podiam fazer isso. Ordenariam a Fabien: “Comando a duzentos e quarenta...”. E ele comandaria a duzentos e quarenta. Mas estava sozinho.

           

            Pareceu-lhe que a matéria também se revoltava. A cada mergulho o motor vibrava tão forte que todo o avião era tomado por um estremecimento, como se estivesse em cólera. Fabien usava suas forças para dominá-lo; a cabeça enterrada na carlinga; tinha a face voltada para o horizonte do giroscópio, pois, lá fora, ele não distinguia mais a massa do céu da massa da terra; estava perdido em uma sombra onde tudo se misturava; uma sombra vinda da origem do mundo. As agulhas dos indicadores de posição oscilavam cada vez mais rápido, o que tornava difícil segui-las. Já o piloto, que elas enganavam, debatia-se com dificuldade, perdia altitude e, pouco a pouco, enterrava-se nessa sombra. Checou a altitude: “quinhentos metros”. Era o nível das colinas. Sentiu as ondas vertiginosas lançarem-se na sua direção. Percebeu também que todas as massas do solo, das quais a menor o teria esmagado, eram como que arrancadas do seu suporte, desparafusadas e começavam a girar, embriagadas, em torno dele. Uma dança profunda começava a se desenrolar ao seu redor, uma dança que o cercava cada vez mais.

            Tomou uma decisão. Mesmo correndo o risco de se espatifar, aterrissaria não importava em que lugar. E, para evitar ao menos as colinas, lançou seu único foguete luminoso. O foguete inflamou-se, rodopiou, iluminou uma planície e se apagou: era o mar.

            Pensou rapidamente: “Perdido. Quarenta graus de correção. De qualquer maneira, estive à deriva. É um ciclone, onde está a Terra?” Seguiria para o Oeste. Pensou: “Sem foguete, agora, estou certo de que me mato”. Isso tinha de acontecer um dia. E seu colega, ali atrás...

            “Seguramente, ele recolheu a antena.” Mas já não se ressentia com ele por isso. Se ele próprio abrisse as mãos, a vida dos dois logo se escoaria por elas, como uma poeira inútil. Tinha, em suas mãos, o coração palpitante do colega e o seu próprio. E, repentinamente, suas mãos assustaram-no.

            Dentro daqueles redemoinhos que desferiam golpes de aríete, para amortecer as sacudidelas do volante - que teriam feito com que os cabos de comando se rompessem - agarrou-se a ele com todas as forças. E assim permaneceu. E eis que nem sentia mais suas mãos de tão adormecidas pelo esforço. Quis mexer os dedos: não soube se eles lhe obedeciam. Os dedos eram alguma coisa estranha onde terminavam os seus braços. Um saco de pele oco e mole. Pensou: “Tenho de imaginar que aperto com força...”. Não sabia dizer se o pensamento chegara às suas mãos. Apenas percebeu as sacudidelas do volante pelas dores nos ombros e pensou: “O volante me escapará. Minhas mãos vão se abrir...”. Mas assustou-se por se permitir tais palavras, pois acreditou que, dessa vez, estava sentindo suas mãos obedecerem à obscura força da imagem e abrirem-se lentamente, nas sombras, para entregá-lo.

            Ainda poderia lutar, tentar a sorte. A fatalidade exterior não existe. Mas existe uma fatalidade interior: chega um momento em que nos sentimos vulneráveis; então, os erros nos atraem como uma vertigem.

            E foi em um desses minutos que, em uma fenda da tempestade, algumas estrelas brilharam sobre sua cabeça, como uma isca fatal no fundo de uma armadilha.

            Ele pensou que realmente tratava-se de uma armadilha: vemos três estrelas dentro de um buraco, subimos em direção a elas, depois não é mais possível descer, permanecemos lá, mordendo as estrelas...


            Mas sua fome de luz era tamanha que ele subiu.


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