segunda-feira, 31 de julho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 28


            Terra dos Homens não proporciona uma idéia clara da carreira de piloto de Saint-Exupéry, pois a obra passa sem ordem cronológica da França à África do Norte e depois à América do Sul, retornando depois à África. Ele se dedica mais a descrever suas sensações e estados de espírito que os detalhes dos aviões ou das viagens. A ausência de descrições factuais intensifica a qualidade lírica de sua prosa. As aterrissagens parecem regressos de uma viagem purifica­dora, evocando o reencontro da esperança, a imagem de um planeta colorido coberto de flores e povoado de pessoas sorridentes. Os aeródromos são percebidos como o centro de universos otimistas, cujas fronteiras seriam o auxílio mútuo, a amizade e a satisfação do dever cumprido. Algumas horas de vôo eram suficientes para em­briagá-lo e fazê-lo esquecer o tédio na terra.

            Montaudran inspirava-lhe um sentimento de orgulho que nunca experimentara antes, e teria achado desleal e de mau gosto descrever a cena com suas cores verdadeiras, um pouco deprimentes. Feliz­mente, a paixão epistolar de Saint-Exupéry compensou em grande parte a falta de detalhes de sua obra literária. Daurat e Massimi, bem como diversos outros pioneiros de Latécoère, também escreve­ram memórias que proporcionam imagens mais exatas de uma vida penosa e esgotadora, da qual o tédio e a rotina não estavam ausentes.

            O aeródromo de Latécoère, em Toulouse, não tão sedutor quan­to o apresenta Saint-Exupéry, era uma pista de cimento rodeada de hangares de concreto e de um conjunto de construções dispersas. A base era tão mal equipada quanto na época em que Latécoère, em tempos de guerra, construíra vagões de estrada de ferro. Para virem do hotel do Grand Balcon, onde ficavam hospedados, os aviadores tomavam um antigo ônibus Ford que ia buscar os pilotos em serviço às 4 horas da manhã. Segundo as regras inflexíveis estabelecidas por Daurat, nem o tempo, nem a fraqueza humana, nem os incidentes mecânicos representavam obstáculos para o transporte do correio durante a viagem de cerca de 5.000 quilômetros que separava a cidade francesa do sudoeste do porto colonial africano de Dacar, no Senegal. Saint-Exupéry descreveu o regime imposto por Daurat em Mantau- dran como “uma espécie de guerra”. Esse é o clima que recriou em Terra dos Homens, no trecho em que Antoine, a bordo do velho ônibus que o leva para a base, fica sabendo da morte de Émile Lécrivain, um dos pilotos mais valentes da companhia.

            O sacrifício humano que se esperava das tripulações era explicado em parte pela correlação existente entre os itinerários aéreos e a expansão colonial. O primeiro apoio influente de Latécoère veio do marechal Louis Lyautey, que “pacificou” o protetorado francês do Marrocos, antes e depois da Primeira Guerra Mundial, e que compreendeu a importância das comunicações rápidas com os novos territórios africanos.

            A França estava competindo diretamente com a Espanha pelo controle do Saara ocidental. Na África do Norte, a Legião Estran­geira francesa, junto com outros regimentos regulares, estava envol­vida em combates aparentemente incessantes contra tribos do deserto e grupos rebeldes que rejeitavam o domínio francês. Entre os oficiais da artilharia figurava Louis de Bonnevie, o antigo colega de Fribur- go, que morreu de tifo no Marrocos, em 1927. Esse foi outro acon­tecimento trágico que afetou Saint-Exupéry, porém não figura em seus escritos publicados.

            Só por sorte Saint-Exupéry não morreu antes do amigo. Sua primeira viagem à África foi um simples vôo de rotina como pas­sageiro num cockpit aberto, repleto de sacolas de correio, mas, em sua viagem inaugural no comando de um aparelho, o tempo estava particularmente desfavorável. O transporte do correio para Casablan­ca era feito em duas etapas. O primeiro piloto fazia escala em Bar­celona e Alicante, antes de confiar o aparelho a outro aviador, que chegava ao Marrocos em duas etapas. A viagem de ida de Saint-Exupéry até Alicante ocorreu sem problemas; no regresso, porém, perto de Carcassone, uma neblina baixa na hora do crespúsculo obri­gou-o a fazer uma aterrissagem forçada num campo. Durante toda a noite esperou um carro que viesse socorrê-lo.

            Às vezes era obrigado a percorrer sozinho as quatro etapas da viagem. Durante um vôo, pensou que os comandos tinham enguiçado, quando o avião despencou rumo ao solo após ter passado por uma turbulência. Em outra ocasião, após ter abandonado um Bréguet em estado calamitoso em Rabat, teve de enfrentar os 2.000 quilômetros de regresso a Toulouse através de uma tempestade que durou nove horas e o fez saracotear como uma bola de tênis. Depois dessa experiência escreveu a uma amiga, Lucie-Marie Decour, admi­rando-se que um avião pudesse suportar esse teste. Após ter supe­rado um segundo temporal, Saint-Exupéry chegou a Alicante, onde foi informado de que um passageiro do vôo anterior tinha morrido ejetado, pois a correia de seu assento arrebentara.

            Saint-Exupéry não se referiu muito a essas viagens aterrorizantes em suas obras, por duas razões: a primeira delas era a modéstia. Suas proezas parecem comuns ao lado das façanhas de alguns dos seus colegas em Latécoère, como Jean Mermoz, o mais célebre de todos os aviadores franceses do período anterior à guerra, que mor­reu três anos antes da publicação de Terra dos Homens. A outra razão, sem dúvida, era que a aventura pura não era tão propícia à elevação espiritual quanto certas experiências que ele reavivou e embelezou mais tarde.

            Entre essas lembranças distingue-se o período que passou na qualidade de diretor da base Latécoère em cabo Juby, uma escala na África ocidental na linha de Dacar. Esse retiro isolado e desértico às margens do oceano deixou profundas marcas em Terra dos Homens, O Pequeno Príncipe e Cidadela. A solidão, mesclada com breves pe­ríodos de camaradagem, deixaria Saint-Exupéry em estado de graça. Anos mais tarde, seu pesar por ter abandonado o retiro solitário do Saara incitou-o a preencher o vazio com um idealismo simplista. Na atmosfera libertina e egocêntrica do ambiente parisiense que freqüentou na maior parte dos anos 30, a saudade da pureza de cabo Juby levava-o a acreditar que a civilização européia estava prestes a perder seus princípios e deveria recuperar seus valores morais.

            O tempo tinha transformado totalmente sua percepção desse paraíso desolado, e ele tinha consciência desse fato. Para explicar essa distorção, Saint-Exupéry tinha de admitir que a mais deprimente ro­tina pode gradualmente parecer sublime. Numa carta a Charles Sallès, na qual relembra um sobrevoo sobre os desertos do sul do Marrocos, Saint-Exupéry comentava que essa experiência dava “uma idéia exata do nada”, acrescentando: “Passei dias de sinistra depressão dentro de uma barraca podre, mas agora recordo apenas uma vida cheia de poesia”.

             Encontramos uma descrição mais precisa desses “dias de depressão” numa carta a Simone de Saint-Exupéry, na qual descreve os mouros como “ladrões, mentirosos, bandidos, falsos e cruéis”. Embora tivesse chegado a cabo Juby cheio de ilusões humanitárias, já estava começando a julgá-los com menos benevolência. “Matam homens como se fossem galinhas, porém cuidam de seus piolhos”, lembra-se, em 1928. No entanto, escrevia 10 anos depois, em Wind, Sand and Stars, a versão inglesa ampliada de Terra dos Homens, que à primeira vista ficara encantado com o deserto, impactado pela nobreza do homem que desempenhava um drama secreto num Saara aparentemente vazio.

            Numa carta a Louise de Vilmorin, datada de 1928, apresenta sua vida em cabo Juby como “uma aventura mágica”, acrescentando: “Sentia que estava pronto para entender melhor essa areia, essa mi­ragem e esse surpreendente silêncio. Pode imaginar isso? Antes que nada, o Saara mostra-me uma perspectiva”.

            Cabo Juby não tinha nada de nobre. Geograficamente, fazia parte das possessões espanholas de Rio de Oro, ao sul do Marrocos, abandonadas pela Espanha em 1976. O território foi anexado à força por Rabat após a partida dos espanhóis, porém as mesmas tribos nômades, que tinham se revoltado contra a dominação colonial du­rante os anos 30, uniram-se em 1976 para formar a Frente Polisária e opor-se ao regime marroquino. Em 1928, quando Saint-Exupéry foi nomeado responsável pelo campo de aterrissagem após mais de um ano de vôo pelas linhas da África do Norte e do Oeste, a Espanha desconfiou das intenções francesas. Séculos de rivalidade entre Paris e Madri tinham criado dificuldades para os acordos precários de vôo sobre a Espanha, que na época não escondia suas simpatias pró-alemãs. Os espanhóis tinham sido derrotados na região de Rif, ao norte do Marrocos, e 20 mil soldados tinham sido mortos numa batalha contra os rebeldes liderados por Abdel Krim. Os franceses aproveitaram a derrota para estabelecer seu domínio no territóxio enviando o marechal Philippe Pétain ao Marrocos, em 1926, com uma força expedicionária de mais de 100 mil homens para aniquilar o exército rebelde de Rif.

            As tribos nômades do sul do Saara, conhecidas pelo nome de mouros, resistiram à tentativa francesa de dominar integralmente a Áfiica ocidental, e suas guerrilhas atacaram de forma encarniçada e pitoresca a Legião Estrangeira francesa e o corpo de soldados montados em camelos. A luta atingira seu ponto culminante quando Saint-Exupéry chegou a cabo Juby em 1928, e os aviões da Aéropostale serviam regularmente de isca enquanto sobrevoavam os campos árabes ao longo da costa atlântica.

            No enclave de Rio de Oro, pequenas guarnições espanholas ocupavam postos isolados, e seu abastecimento dependia das ilhas Canárias, outra possessão espanhola. Evitavam enfrentamentos com as tribos nômades e mantinham a paz por meio de pactos provisórios e de oferecimento de asilo a saqueadores, salvando-os das represálias francesas. Com essa estratégia estabelecia-se uma rede de intrigas imperialistas européias, na qual o território desértico de Rio de Oro não passava de um mero peão. Mas sem a autorização para sobrevoar essa longa faixa de deserto desabitada, a ambição de Latécoère de abrir a rota do Atlântico, de Dacar até a América do Sul, não teria podido se concretizar.

            Enquanto se desencadeava uma batalha diplomática com relação ao direito de sobrevoar territórios espanhóis, Daurat decidiu enviar Saint-Exupéry a cabo Juby, com a esperança de estabelecer melhores relações com o governador espanhol da localidade. “Ele logo me pareceu o mais natural dos nossos embaixadores, um homem que, pelas suas indiscutíveis qualidades, parecia capaz de acalmar susce­tibilidades”, dizia Daurat.

            Antoine não falava espanhol, porém seus antecedentes aristocráticos pesavam muito em suas relações com a Espanha, que, na época, estava sob o domínio de uma ditadura militar dirigida pelo marquês Miguel Primo de Rivera.

            Essa transferência para um posto em pleno deserto não apre­sentava perspectivas muito atraentes. Significava o abandono do am­biente excitante do transporte do correio, rico em emoção e ca­maradagem, em troca de uma função solitária e sedentária. Em compensação, o chefe da base tinha a possibilidade de tomar inicia­tivas. Como um dos seus papéis principais era ajudar os pilotos em dificuldade no deserto, Saint-Exupéry teve pela primeira vez na vida a oportunidade de demonstrar suas qualidades de comando.

            Apesar desses eventuais consolos, deve ter se sentido angustiado ao chegar a cabo Juby. Meses de solidão o aguardavam, interrom­pidos apenas pelos contatos por rádio com as bases da Aéropostale no Marrocos ou na Mauritânia e pela passagem das equipes que lá faziam escala. Ele aterrissara diversas vezes em cabo Juby em 1927, ao ir de Casablanca a Dacar, um périplo de 2.000 quilômetros de deserto. Na chegada a cabo Juby, sobrevoava-se uma imponente for­taleza vetusta, cujas muralhas brancas encostavam no Atlântico. À frente estendia-se o deserto a perder de vista, com exceção de um conjunto de construções rodeadas de arame farpado, que desempe­nhavam o papel de aeroporto. No solo, a vista era ainda mais sinistra. O forte ficava ao lado de uma colônia penitenciária. A guarnição da Legião Estrangeira espanhola, comandada por um coronel, não tinha nada a fazer senão esperar o improvável ataque de um inimigo árabe invisível, cujos espiões estavam instalados num acampamento situado ao pé das muralhas da fortaleza.

            O tempo passava de maneira imutável, pontuado a cada quarto de hora pelo grito dos sentinelas que faziam a ronda, vigiando a chegada de um inimigo que nunca aparecia. Joseph Kessel visitou cabo Juby e escreveu que os soldados praticamente não se distin­guiam dos prisioneiros que guardavam. Passavam semanas sem se lavar e seus uniformes estavam em farrapos. A solidão deprimia tan­to os oficiais quanto os recrutas. Kessel passou uma hora com os oficiais no forte, e o único barulho que ouvia era o dos dados que rolavam em cima da mesa. Na sua opinão, cabo Judy hospedava fantasmas.

            Apesar dos anos passados em hotéis e pensões sem conforto, Saint-Exupéry não estava preparado para a rusticidade do alojamento destinado a acolher o representante da companhia Latécoère. Os desconfiados espanhóis não queriam o novo diretor da base nem seus três mecânicos no centro da fortaleza, e estes foram então ob­rigados a ocupar uma choça construída na parede norte, diante do oceano. À noite ficavam à mercê dos nômades ou dos saqueadores, e tiveram de criar um sistema rudimentar de segurança: um fio elé­trico ligado a um gerador a hélice amarrado ao trinco da porta de entrada, que dava um choque no intruso.

            No longo silêncio da noite, perturbado apenas pelo ruído das ondas quebrando na areia, Saint-Exupéry escrevia e reescrevia Correio Sul à luz de um lampião de querosene, aperfeiçoava seus truques de baralho e redigia relatórios para Latécoère; alguns deles chegaram até o Ministério das Relações Exteriores francês e a seus especialistas em colônias. Sua principal tarefa consistia em atender os aviões que transportavam o correio, provenientes do norte e do sul, e que ater­rissavam a cada três dias, tentando manter em boas relações com o governador espanhol e as tribos locais. Embora mais tarde tivesse a oportunidade de relatar apaixonantes expedições de socorro em bus­ca de aviadores em perigo, às vezes sob o fogo inimigo, suas primei­ras impressões ao chegar foram profundamente deprimentes. Em 1928, escrevia à mãe que o cenário lhe parecia “cada vez mais ab­surdo”. Seu canto do Saara, dizia, estava povoado de 200 soldados espanhóis que se agarravam há trinta anos no forte e cujos únicos visitantes eram os árabes mais piolhentos.

            “Esses bastidores do Saara, enfeitados com alguns figurantes, aborrecem-me como um subúrbio sujo”, praguejava, ao descrever uma paisagem que mais tarde exaltaria em Terra dos Homens.

Antoine de Saint-Exupéry em Cap Juby, com o coronel de la Peña, 1928.
Ao fundo se pode ver o forte espanhol


            

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