Terra
dos Homens não proporciona uma idéia clara da carreira de piloto de
Saint-Exupéry, pois a obra passa sem ordem cronológica da França à África do
Norte e depois à América do Sul, retornando depois à África. Ele se dedica mais
a descrever suas sensações e estados de espírito que os detalhes dos aviões ou
das viagens. A ausência de descrições factuais intensifica a qualidade lírica
de sua prosa. As aterrissagens parecem regressos de uma viagem purificadora,
evocando o reencontro da esperança, a imagem de um planeta colorido coberto de
flores e povoado de pessoas sorridentes. Os aeródromos são percebidos como o
centro de universos otimistas, cujas fronteiras seriam o auxílio mútuo, a
amizade e a satisfação do dever cumprido. Algumas horas de vôo eram suficientes
para embriagá-lo e fazê-lo esquecer o tédio na terra.
Montaudran
inspirava-lhe um sentimento de orgulho que nunca experimentara antes, e teria
achado desleal e de mau gosto descrever a cena com suas cores verdadeiras, um
pouco deprimentes. Felizmente, a paixão epistolar de Saint-Exupéry compensou
em grande parte a falta de detalhes de sua obra literária. Daurat e Massimi,
bem como diversos outros pioneiros de Latécoère, também escreveram memórias
que proporcionam imagens mais exatas de uma vida penosa e esgotadora, da qual o
tédio e a rotina não estavam ausentes.
O
aeródromo de Latécoère, em Toulouse, não tão sedutor quanto o apresenta
Saint-Exupéry, era uma pista de cimento rodeada de hangares de concreto e de um
conjunto de construções dispersas. A base era tão mal equipada quanto na época
em que Latécoère, em tempos de guerra, construíra vagões de estrada de ferro.
Para virem do hotel do Grand Balcon, onde ficavam hospedados, os aviadores
tomavam um antigo ônibus Ford que ia buscar os pilotos em serviço às 4 horas da
manhã. Segundo as regras inflexíveis estabelecidas por Daurat, nem o tempo, nem
a fraqueza humana, nem os incidentes mecânicos representavam obstáculos para o
transporte do correio durante a viagem de cerca de 5.000 quilômetros que
separava a cidade francesa do sudoeste do porto colonial africano de Dacar, no
Senegal. Saint-Exupéry descreveu o regime imposto por Daurat em Mantau- dran
como “uma espécie de guerra”. Esse é o clima que recriou em Terra dos Homens,
no trecho em que Antoine, a bordo do velho ônibus que o leva para a base, fica
sabendo da morte de Émile Lécrivain, um dos pilotos mais valentes da companhia.
O
sacrifício humano que se esperava das tripulações era explicado em parte pela
correlação existente entre os itinerários aéreos e a expansão colonial. O
primeiro apoio influente de Latécoère veio do marechal Louis Lyautey, que
“pacificou” o protetorado francês do Marrocos, antes e depois da Primeira
Guerra Mundial, e que compreendeu a importância das comunicações rápidas com os
novos territórios africanos.
A
França estava competindo diretamente com a Espanha pelo controle do Saara
ocidental. Na África do Norte, a Legião Estrangeira francesa, junto com outros
regimentos regulares, estava envolvida em combates aparentemente incessantes
contra tribos do deserto e grupos rebeldes que rejeitavam o domínio francês.
Entre os oficiais da artilharia figurava Louis de Bonnevie, o antigo colega de
Fribur- go, que morreu de tifo no Marrocos, em 1927. Esse foi outro acontecimento
trágico que afetou Saint-Exupéry, porém não figura em seus escritos publicados.
Só
por sorte Saint-Exupéry não morreu antes do amigo. Sua primeira viagem à África
foi um simples vôo de rotina como passageiro num cockpit aberto, repleto de
sacolas de correio, mas, em sua viagem inaugural no comando de um aparelho, o
tempo estava particularmente desfavorável. O transporte do correio para
Casablanca era feito em duas etapas. O primeiro piloto fazia escala em Barcelona
e Alicante, antes de confiar o aparelho a outro aviador, que chegava ao
Marrocos em duas etapas. A viagem de ida de Saint-Exupéry até Alicante ocorreu
sem problemas; no regresso, porém, perto de Carcassone, uma neblina baixa na
hora do crespúsculo obrigou-o a fazer uma aterrissagem forçada num campo. Durante
toda a noite esperou um carro que viesse socorrê-lo.
Às
vezes era obrigado a percorrer sozinho as quatro etapas da viagem. Durante um
vôo, pensou que os comandos tinham enguiçado, quando o avião despencou rumo ao solo
após ter passado por uma turbulência. Em outra ocasião, após ter abandonado um Bréguet
em estado calamitoso em Rabat, teve de enfrentar os 2.000 quilômetros de
regresso a Toulouse através de uma tempestade que durou nove horas e o fez
saracotear como uma bola de tênis. Depois dessa experiência escreveu a uma
amiga, Lucie-Marie Decour, admirando-se que um avião pudesse suportar esse
teste. Após ter superado um segundo temporal, Saint-Exupéry chegou a Alicante,
onde foi informado de que um passageiro do vôo anterior tinha morrido ejetado,
pois a correia de seu assento arrebentara.
Saint-Exupéry
não se referiu muito a essas viagens aterrorizantes em suas obras, por duas
razões: a primeira delas era a modéstia. Suas proezas parecem comuns ao lado
das façanhas de alguns dos seus colegas em Latécoère, como Jean Mermoz, o mais
célebre de todos os aviadores franceses do período anterior à guerra, que morreu
três anos antes da publicação de Terra dos Homens. A outra razão, sem dúvida,
era que a aventura pura não era tão propícia à elevação espiritual quanto
certas experiências que ele reavivou e embelezou mais tarde.
Entre
essas lembranças distingue-se o período que passou na qualidade de diretor da
base Latécoère em cabo Juby, uma escala na África ocidental na linha de Dacar. Esse
retiro isolado e desértico às margens do oceano deixou profundas marcas em Terra
dos Homens, O Pequeno Príncipe e Cidadela. A solidão, mesclada com breves períodos
de camaradagem, deixaria Saint-Exupéry em estado de graça. Anos mais tarde, seu
pesar por ter abandonado o retiro solitário do Saara incitou-o a preencher o
vazio com um idealismo simplista. Na atmosfera libertina e egocêntrica do
ambiente parisiense que freqüentou na maior parte dos anos 30, a saudade da
pureza de cabo Juby levava-o a acreditar que a civilização européia estava
prestes a perder seus princípios e deveria recuperar seus valores morais.
O
tempo tinha transformado totalmente sua percepção desse paraíso desolado, e ele
tinha consciência desse fato. Para explicar essa distorção, Saint-Exupéry tinha
de admitir que a mais deprimente rotina pode gradualmente parecer sublime.
Numa carta a Charles Sallès, na qual relembra um sobrevoo sobre os desertos do
sul do Marrocos, Saint-Exupéry comentava que essa experiência dava “uma idéia exata
do nada”, acrescentando: “Passei dias de sinistra depressão dentro de uma
barraca podre, mas agora recordo apenas uma vida cheia de poesia”.
Encontramos uma descrição mais precisa desses
“dias de depressão” numa carta a Simone de Saint-Exupéry, na qual descreve os
mouros como “ladrões, mentirosos, bandidos, falsos e cruéis”. Embora tivesse
chegado a cabo Juby cheio de ilusões humanitárias, já estava começando a julgá-los
com menos benevolência. “Matam homens como se fossem galinhas, porém cuidam de
seus piolhos”, lembra-se, em 1928. No entanto, escrevia 10 anos depois, em Wind, Sand and Stars, a versão inglesa
ampliada de Terra dos Homens, que à primeira vista ficara encantado com o
deserto, impactado pela nobreza do homem que desempenhava um drama secreto num
Saara aparentemente vazio.
Numa
carta a Louise de Vilmorin, datada de 1928, apresenta sua vida em cabo Juby
como “uma aventura mágica”, acrescentando: “Sentia que estava pronto para
entender melhor essa areia, essa miragem e esse surpreendente silêncio. Pode
imaginar isso? Antes que nada, o Saara mostra-me uma perspectiva”.
Cabo
Juby não tinha nada de nobre. Geograficamente, fazia parte das possessões
espanholas de Rio de Oro, ao sul do Marrocos, abandonadas pela Espanha em 1976.
O território foi anexado à força por Rabat após a partida dos espanhóis, porém
as mesmas tribos nômades, que tinham se revoltado contra a dominação colonial
durante os anos 30, uniram-se em 1976 para formar a Frente Polisária e opor-se
ao regime marroquino. Em 1928, quando Saint-Exupéry foi nomeado responsável
pelo campo de aterrissagem após mais de um ano de vôo pelas linhas da África do
Norte e do Oeste, a Espanha desconfiou das intenções francesas. Séculos de
rivalidade entre Paris e Madri tinham criado dificuldades para os acordos
precários de vôo sobre a Espanha, que na época não escondia suas simpatias
pró-alemãs. Os espanhóis tinham sido derrotados na região de Rif, ao norte do
Marrocos, e 20 mil soldados tinham sido mortos numa batalha contra os rebeldes
liderados por Abdel Krim. Os franceses aproveitaram a derrota para estabelecer
seu domínio no territóxio enviando o marechal Philippe Pétain ao Marrocos, em
1926, com uma força expedicionária de mais de 100 mil homens para aniquilar o
exército rebelde de Rif.
As
tribos nômades do sul do Saara, conhecidas pelo nome de mouros, resistiram à
tentativa francesa de dominar integralmente a Áfiica ocidental, e suas
guerrilhas atacaram de forma encarniçada e pitoresca a Legião Estrangeira
francesa e o corpo de soldados montados em camelos. A luta atingira seu ponto
culminante quando Saint-Exupéry chegou a cabo Juby em 1928, e os aviões da Aéropostale
serviam regularmente de isca enquanto sobrevoavam os campos árabes ao longo da
costa atlântica.
No
enclave de Rio de Oro, pequenas guarnições espanholas ocupavam postos isolados,
e seu abastecimento dependia das ilhas Canárias, outra possessão espanhola.
Evitavam enfrentamentos com as tribos nômades e mantinham a paz por meio de
pactos provisórios e de oferecimento de asilo a saqueadores, salvando-os das
represálias francesas. Com essa estratégia estabelecia-se uma rede de intrigas
imperialistas européias, na qual o território desértico de Rio de Oro não
passava de um mero peão. Mas sem a autorização para sobrevoar essa longa faixa
de deserto desabitada, a ambição de Latécoère de abrir a rota do Atlântico, de Dacar
até a América do Sul, não teria podido se concretizar.
Enquanto
se desencadeava uma batalha diplomática com relação ao direito de sobrevoar
territórios espanhóis, Daurat decidiu enviar Saint-Exupéry a cabo Juby, com a
esperança de estabelecer melhores relações com o governador espanhol da
localidade. “Ele logo me pareceu o mais natural dos nossos embaixadores, um
homem que, pelas suas indiscutíveis qualidades, parecia capaz de acalmar suscetibilidades”,
dizia Daurat.
Antoine
não falava espanhol, porém seus antecedentes aristocráticos pesavam muito em
suas relações com a Espanha, que, na época, estava sob o domínio de uma
ditadura militar dirigida pelo marquês Miguel Primo de Rivera.
Essa
transferência para um posto em pleno deserto não apresentava perspectivas
muito atraentes. Significava o abandono do ambiente excitante do transporte do
correio, rico em emoção e camaradagem, em troca de uma função solitária e
sedentária. Em compensação, o chefe da base tinha a possibilidade de tomar
iniciativas. Como um dos seus papéis principais era ajudar os pilotos em
dificuldade no deserto, Saint-Exupéry teve pela primeira vez na vida a
oportunidade de demonstrar suas qualidades de comando.
Apesar
desses eventuais consolos, deve ter se sentido angustiado ao chegar a cabo
Juby. Meses de solidão o aguardavam, interrompidos apenas pelos contatos por
rádio com as bases da Aéropostale no Marrocos ou na Mauritânia e pela passagem
das equipes que lá faziam escala. Ele aterrissara diversas vezes em cabo Juby
em 1927, ao ir de Casablanca a Dacar, um périplo de 2.000 quilômetros de
deserto. Na chegada a cabo Juby, sobrevoava-se uma imponente fortaleza vetusta, cujas muralhas brancas
encostavam no Atlântico. À frente estendia-se o deserto a perder de vista, com
exceção de um conjunto de construções rodeadas de arame farpado, que desempenhavam
o papel de aeroporto. No solo, a vista era ainda mais sinistra. O forte ficava
ao lado de uma colônia penitenciária. A guarnição da Legião Estrangeira
espanhola, comandada por um coronel, não tinha nada a fazer senão esperar o
improvável ataque de um inimigo árabe invisível, cujos espiões estavam
instalados num acampamento situado ao pé das muralhas da fortaleza.
O
tempo passava de maneira imutável, pontuado a cada quarto de hora pelo grito
dos sentinelas que faziam a ronda, vigiando a chegada de um inimigo que nunca
aparecia. Joseph Kessel visitou cabo Juby e escreveu que os soldados
praticamente não se distinguiam dos prisioneiros que guardavam. Passavam
semanas sem se lavar e seus uniformes estavam em farrapos. A solidão deprimia
tanto os oficiais quanto os recrutas. Kessel passou uma hora com os oficiais
no forte, e o único barulho que ouvia era o dos dados que rolavam em cima da
mesa. Na sua opinão, cabo Judy hospedava fantasmas.
Apesar
dos anos passados em hotéis e pensões sem conforto, Saint-Exupéry não estava
preparado para a rusticidade do alojamento destinado a acolher o representante
da companhia Latécoère. Os desconfiados espanhóis não queriam o novo diretor da
base nem seus três mecânicos no centro da fortaleza, e estes foram então obrigados
a ocupar uma choça construída na parede norte, diante do oceano. À noite
ficavam à mercê dos nômades ou dos saqueadores, e tiveram de criar um sistema
rudimentar de segurança: um fio elétrico ligado a um gerador a hélice amarrado
ao trinco da porta de entrada, que dava um choque no intruso.
No
longo silêncio da noite, perturbado apenas pelo ruído das ondas quebrando na
areia, Saint-Exupéry escrevia e reescrevia Correio Sul à luz de um lampião de
querosene, aperfeiçoava seus truques de baralho e redigia relatórios para
Latécoère; alguns deles chegaram até o Ministério das Relações Exteriores
francês e a seus especialistas em colônias. Sua principal tarefa consistia em
atender os aviões que transportavam o correio, provenientes do norte e do sul,
e que aterrissavam a cada três dias, tentando manter em boas relações com o
governador espanhol e as tribos locais. Embora mais tarde tivesse a
oportunidade de relatar apaixonantes expedições de socorro em busca de
aviadores em perigo, às vezes sob o fogo inimigo, suas primeiras impressões ao
chegar foram profundamente deprimentes. Em 1928, escrevia à mãe que o cenário
lhe parecia “cada vez mais absurdo”. Seu canto do Saara, dizia, estava povoado
de 200 soldados espanhóis que se agarravam há trinta anos no forte e cujos
únicos visitantes eram os árabes mais piolhentos.
“Esses
bastidores do Saara, enfeitados com alguns figurantes, aborrecem-me como um
subúrbio sujo”, praguejava, ao descrever uma paisagem que mais tarde exaltaria
em Terra dos Homens.
Antoine de Saint-Exupéry em Cap Juby, com o coronel de la Peña, 1928. Ao fundo se pode ver o forte espanhol |
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