segunda-feira, 17 de julho de 2017

PILOTO DE GUERRA - 14

XIII

            É como se queimassem todas as vilas do norte, sem atrasar, nem mesmo por meio dia, com tal destruição, o avanço alemão. E, no entanto, essa provisão de vilas, essas velhas igrejas, essas velhas casas, e toda a sua carga de lembranças, e seus belos pisos de nogueira encerada, e os belos enxovais em seus armários, e as rendas de suas janelas, que duraram até hoje, sem estragar — eis que, de Dunquerque até a Alsácia, eu as vejo queimar.



            Queimar é uma expressão exagerada quando se observa a dez mil metros, pois, nas cidades, como nas florestas, há apenas uma fumaça imóvel, uma espécie de geleia esbranquiçada. O fogo não passa de uma digestão secreta. Na escala dos dez mil metros, o tempo é como que refreado, já que não há mais movimento. Não há mais chamas crepitantes, vigas que estralam, turbilhões de fumaça preta. Somente esse leite acinzentado fixado no âmbar.

            Essa floresta será curada? Essa cidade será curada? Observado de onde estou, o fogo rói com a lentidão de uma doença.

             Aqui ainda há muito a dizer. “Não vamos poupar vilas." Ouvi a palavra. E a palavra era necessária. Uma vila, durante uma guerra, não é um nó de tradições. Nas mãos do inimigo, há só um ninho de ratos. Tudo muda de sentido. Assim, certas árvores, com trezentos anos de idade, abrigavam a tua antiga casa familiar. Mas atrapalham o campo de tiro de um tenente de vinte e dois anos. Ele expede então uma quinzena de homens para aniquilar, em tua morada, a obra do tempo. Ele consome, numa ação de dez minutos, trezentos anos de paciência e de sol, trezentos anos de religião da casa, e de noivados ao sombreiro do parque. Tu lhe dizes:

            — Minhas árvores!

            Ele não te escuta. Ele faz a guerra. Ele tem razão.

            Mas eis que queimam as vilas para jogar o jogo da guerra, assim como desmantelam os parques e sacrificam as tripulações, assim como engajam a infantaria contra os tanques. E reina um inexprimível mal-estar. Pois nada mais adianta.

            O inimigo reconheceu uma evidência e a explora. Os homens ocupam pouco lugar na imensidão das terras. Seriam necessários cem milhões de soldados para erguer uma muralha contínua. Então, entre as tropas há brechas. Tais buracos são anulados, em princípio, pela mobilidade das tropas, mas, do ponto de vista da máquina blindada, um exército oponente pouco motorizado fica como imóvel As brechas constituem, então, verdadeiros buracos. Daí essa regra simples de emprego tático: “A divisão blindada deve agir como água. Ela deve pressionar levemente o bloqueio do adversário e avançar somente onde não encontrar resistência".

             Os tanques pressionam, então, o bloqueio. Sempre há brechas. Eles sempre passam.

            Todavia, essas incursões de tanques que circulam à vontade, por falta de carros que se oponham, acarretam consequências irreparáveis, ainda que só operem destruições aparentemente superficiais (tais como capturas de Estados-Maiores locais, rupturas de linhas telefônicas, incêndios de vilas). Eles fazem o papel de agentes químicos que destruiriam não o organismo, mas os nervos e os gânglios. No território que varreram como um raio, todo o exército, mesmo que pareça quase intacto, perdeu o caráter de exército. Transformou-se em grumos independentes. Onde existia um organismo, resta apenas uma soma de órgãos cujas ligações estão rompidas. Depois, entre os grumos — tão combativos quanto o forem os homens —, o inimigo avança como quer. Um exército deixa de ser eficaz quando não passa de uma soma de soldados.

            Não se fabrica um material em quinze dias. Nem mesmo... A corrida aos armamentos só podia sair perdedora. Nós éramos quarenta milhões de agricultores diante de oitenta milhões de industriais.

            Nós opomos ao inimigo um homem contra três. Um avião contra dez ou vinte e, a partir de Dunquerque, um tanque contra cem. Não nos damos ao luxo de meditar sobre o passado. Assistimos ao presente. O presente é este. Nenhum sacrifício, jamais, em nenhum lugar, é suscetível de retardar o avanço alemão.

            Assim reina, da cúpula à base das hierarquias civis e militares, do encanador ao ministro, do soldado ao general, uma espécie de má consciência que não sabe nem ousa em suas cento e sessenta divisões, zomba de nossos incêndios e de nossos mortos.

            É preciso que o significado do incêndio da vila equilibre o significado da vila. Entretanto, o papel da vila queimada não passa de um papel caricatural.




            É preciso que o significado da morte equilibre a morte. Os homens batalham bem ou mal? É a própria questão que não tem sentido! Sabemos que a defesa teórica de um vilarejo aguentará três horas! Os homens, todavia, têm ordem de resistir. Sem meios para combater, solicitam eles mesmos ao inimigo que destrua essa vila, a fim de que sejam respeitadas as regras do jogo da guerra. Como o amável adversário de xadrez: “Você esqueceu-se de pegar o peão...”.

            Desafiaremos então o inimigo:

            — Somos os defensores desta vila. Vocês são os assaltantes. Ataquem!

            A questão foi compreendida. Uma esquadrilha, numa pisada, esmaga a vila.

            — Pois bem!




            Há, decerto, homens inertes, mas a inércia é uma forma frusta do desespero. Há, decerto, também, homens que fogem. O comandante Alias mesmo, duas ou três vezes, ameaçou com seu revólver esfarrapados mórbidos, reencontrados nas estradas, que respondiam de través a suas perguntas. A gente tem tanta vontade de ter nas mãos o responsável por um

             desastre e, suprimindo-o, salvar tudo! Os homens em fuga são responsáveis pela fuga, pois não haveria fuga sem homens em fuga. Se brandirmos o revólver, tudo dará certo... Mas seria enterrar doentes para suprimir a doença. O comandante Alias, no fim das contas, recolhia o revólver, revólver esse que, a seus próprios olhos, tomara um aspecto pomposo demais, como um sabre de ópera cômica. Alias sentia que os soldados mórbidos eram efeitos do desastre e não suas causas.

            Alias bem sabe que aqueles homens são os mesmos, exatamente os mesmos que, alhures, hoje ainda, aceitam morrer. Cento e cinquenta mil, há quinze dias, aceitaram. Mas há cabeças-duras que exigem que lhes forneçam um bom pretexto.

            É difícil formular.

            O corredor vai correr a corrida de sua vida contra corredores de sua classe. Mas ele vê, desde a partida, que arrasta no pé um ferro de condenado. Os concorrentes estão leves como asas. A luta não significa mais nada. 0 homem se abandona:

            — Isso não vale!

            — Vale sim! Vale sim!

            O que inventar para convencer o homem a engajar tudo de si mesmo numa corrida que já não é uma corrida?

            Alias bem sabe o que pensam os soldados. Eles pensam assim:

            — Isso não conta...

            Alias guarda seu revólver e procura uma boa resposta.

            Só há uma boa resposta. Uma única. Desafio qualquer um a encontrar outra:

            — Sua morte não mudará nada. A derrota está consumada.

             Mas convém que uma derrota se manifeste por mortos. Tem de ser um luto. Vocês estão a serviço para desempenhar o papel.

— Positivo, Comandante.




            Alias não despreza os fugitivos. Ele sabe muito bem que sua resposta certa sempre bastou. Ele mesmo aceita a morte. Todas as suas tripulações aceitam a morte. Bastou, para nós também, essa boa resposta, mal disfarçada:

            — É muito chato... Mas eles fazem questão, no Estado- Maior. Querem mesmo... É assim...

            — Positivo, Comandante.




            Eu creio muito simplesmente que aqueles que estão mortos servem de caução aos outros.


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