Terceira parte
I
A
Europa, a África preparavam-se quase simultaneamente para a noite, liquidando
aqui e ali as últimas tempestades do dia. A de Granada se acalmou e a de Málaga
se resolveu com chuva. Em certos lugares, a neve agarrava-se ainda aos ramos
das árvores como às cabeleiras.
Depois
de despachar o correio, Toulouse, Barcelona e Alicante arrumaram seus
acessórios, recolheram os aviões e fecharam os hangares. Málaga, que o esperava
durante o dia, não precisava se prevenir do fogo. Aliás, o correio nem
aterrissaria. Continuaria muito baixo, sem dúvida, em direção a Tânger. Seria
necessário, mais uma vez, atravessar o estreito a vinte metros, sem ver a costa
da África, guiado pela bússola. Um vento de oeste, potente, cavava o mar. As
ondas esmagadas tomavam-se brancas. Com a proa ao vento, cada navio ancorava trabalhando
a pleno vapor, como se estivesse em alto- mar. A leste, o rochedo inglês cavava
uma depressão, onde chovia torrencialmente. A oeste, as nuvens subiram um
andar. Do outro lado do mar, Tânger esfumava-se numa chuva tão abundante que
encharcava a cidade. No horizonte, provisões de nuvens. Entretanto, para os
lados de Larache, o céu estava limpo.
Casablanca
respirava a céu aberto. Veleiros na praia marcavam o porto como depois de uma
batalha. Na superfície do mar, que a tempestade lavrara, havia simplesmente
ondulações regulares que se abriam em leque. Os campos tomaram-se de um verde
mais vivo ainda, profundos como a água, ao sol poente. A cidade luzia, aqui e
ali, nos lugares ainda batidos pela chuva. Na barraca do grupo eletrogêneo, os
eletricistas esperavam, desocupados. Os de Agadir jantavam na cidade, pois
ainda tinham quatro horas livres. Os de Port-Étienne, Saint-Louis, Dacar podiam
dormir.
Às
oito horas da noite, o rádio de Málaga comunicou:
Correio passou sem aterrissar.
E
Casablanca experimentou os refletores. A rampa de balizamento recortou em
vermelho um pedaço da noite, um retângulo negro. Uma lâmpada falhava aqui e
ali, como um dente. Depois um segundo interruptor espalhou as luzes.
Derramou-se a claridade no meio do campo, como uma poça de leite. Faltava o
ator de music-hall.
Deslocou-se
um refletor. O facho invisível atingiu uma árvore molhada, brilhando como um
cristal. Depois, uma barraca branca, que adquire enorme importância, gira na
sombra e desaparece depois. Enfim, o facho de luz toma a descer, encontra seu
lugar e ilumina aquele leito branco onde pousará o avião.
—
Bem — disse o chefe —, apague.
Subiu
ao escritório, examinou os últimos papéis e observou seriamente o telefone, com
o espírito vazio. Rabat chamaria logo. Tudo estava preparado. Os mecânicos
sentavam-se sobre latas e caixas.
Agadir
nada compreendia. Segundo os cálculos, o correio já havia deixado Casablanca.
Era esperado a qualquer momento. Confundiram umas dez vezes a estrela do pastor
com a luz de bordo do aparelho, e também a estrela polar, que aparecia
justamente ao norte. Esperavam contar uma estrela a mais, vê-la errar pelo céu
entre as constelações, para acenderem os projetores.
O
chefe do campo de pouso estava perplexo. Daria, por sua vez, o sinal de
partida? Temia a bruma ao sul, que talvez se estendesse até o Oued Noun, talvez
mesmo até Juby, que permanecia em silêncio, apesar dos apelos do rádio. Não se
podia lançar o "França-América" à noite, através daquela cerração
espessa. O posto do Saara encerrava- se em seu mistério.
Entretanto,
em Juby, isolados do mundo, lançávamos angustiantes mensagens como um navio:
Comunicar notícias correio, comunicar...
Não
respondíamos mais a Cisneros, que nos irritava com as mesmas perguntas.
Distanciados mil quilômetros uns dos outros, lançávamos inúteis lamentos
durante a noite.
Às
20h50, tudo se acalmou. Casablanca e Agadir puderam comunicar-se por telefone.
Conseguiram por fim receber nossos rádios. Casablanca falava e cada uma de suas
palavras se repetia até Dacar:
Correio partirá 22 horas para Agadir.
De Agadir para Juby: Correio estará
Agadir 12h3O ponto. Poderemos sobrevoar?
De Juby para Agadir: Bruma. Esperar
dia.
De Juby para Cisneros, Port-Étienne,
Dacar: Correio pernoitará Agadir.
O
piloto assinalava as rotas em Casablanca, piscando os olhos sob a lâmpada.
Ainda há pouco, cada piscada de quase nada adiantava. Às vezes, Bemis
considerava-se feliz por ter como guia a branca ruína das ondas, na orla da
terra e do mar. Agora, no escritório, via apenas armários, papéis brancos,
móveis espessos. Era um mundo compacto e generoso de sua matéria. Mas, para
além da porta entreaberta, estendia-se um mundo esvaziado pela noite.
Bemis
estava vermelho por causa do vento que, por dez horas, lhe batera no rosto.
Gotas d’água corriam-lhe pelos cabelos. Saía da noite como um limpador de
esgotos de sua fuma, com suas botas pesadas, seu casaco de couro e seus cabelos
colados ao rosto. Continuava a piscar os olhos. Interrompeu-se:
—
E... você tem a intenção de me fazer prosseguir no voo?
O
chefe do campo de pouso virava as folhas com um ar zangado.
—
Fará o que lhe mandarem.
Ele
sabia que não exigiria aquela partida, e o piloto, por sua vez, estava certo de
que pediria para seguir. Mas cada um queria provar a si próprio que era o único
juiz.
—
Feche-me, com os olhos vendados, num armário com alavanca de comando e mande-me
transportá-lo até Agadir. Eis o que me pede.
Estava
muito agitado interiormente para pensar um segundo sequer num acidente pessoal:
tais ideias só ocorrem aos corações vazios... Mas aquela imagem do armário
encantava-o. Há coisas impossíveis... mas que ele conseguiria de qualquer
forma.
O
chefe do campo de pouso entreabriu a porta para jogar seu cigarro na noite.
—
Olhe! Dá para ver alguma coisa.
—
O quê?
—
Estrelas.
O
piloto irritou-se com aquilo:
—
Muito me importam as suas estrelas: veem-se apenas três. Não é a Marte que você
me envia, e sim a Agadir.
— A lua aparecerá dentro de uma hora.
—
A lua... A lua...
Essa
lua o impacientava mais ainda. Tinha necessidade dela para voar à noite? Por
acaso seria ainda um aprendiz?
—
Bem. Está entendido. Muito bem. Fique.
O
piloto acalmou-se, desembrulhou os sanduíches da véspera e mastigou-os
calmamente. Partiria dentro de vinte minutos. O chefe do campo de pouso sorria,
dando pancadinhas no telefone e sabendo que em breve assinalaria aquela
decolagem.
Agora
que tudo estava pronto, houve um instante de folga. Assim, às vezes, o tempo
para. Inclinado para a frente, o piloto imobilizou-se na cadeira, com as mãos
sujas de graxa entre os joelhos. Seus olhos fixavam um ponto entre ele e a
parede. Sentado de lado, com a boca entreaberta, o chefe do aeroporto parecia
estar à espera de um sinal secreto. A datilógrafa cochilou, apoiou o queixo na
mão e sentiu que o sono a dominava inexoravelmente. Sem dúvida, a areia de uma
ampulheta estava escorrendo. Depois, um grito longínquo foi o impulso que pôs
em marcha o mecanismo. O chefe do campo de pouso levantou um dedo. O piloto
sorriu, endireitou-se, encheu os pulmões com um ar novo.
—
Adeus.
Assim,
às vezes, um filme se interrompe. A imobilidade envolve, cada segundo mais
forte, como uma sincope. Depois, a vida recomeça.
Bemis
teve a impressão não de decolar, mas de entrar numa gruta úmida e fria, batida
pelo ruído de seu motor como pelo mar. Poucas coisas acidentais ajudavam-no.
Quando é dia, a encosta arredondada de uma colina, a linha de um golfo, o céu
azul constroem um mundo real; ele se encontrava, porém, distante das coisas,
num mundo em formação, onde os elementos ainda se confundiam. A planície se
estendia, arrebatando as últimas cidades, Mazagão, Safi, Mogador, que lá de
baixo a iluminavam como claraboias. Brilharam depois as luzes das últimas
fazendas, as últimas luzes de bordo da terra. Repentinamente, ficou cego.
"Bem, acabo de entrar na escuridão.”
Atento
ao indicador de inclinação, ao altímetro, desceu um pouco para livrar-se da
nuvem. O pálido clarão de uma lâmpada o ofuscava. Apagou-a.
"Bem,
consegui escapar, mas não vejo nada.”
Invisíveis
e silenciosos, passavam os primeiros picos do pequeno Atlas, entre dois rios,
como icebergs na corrente: adivinhava-os atrás de si.
“Isso
vai mal”
Voltou-se.
Um mecânico, único passageiro, lia um livro, com uma lanterna sobre os joelhos.
Com os ombros caídos, apenas a cabeça inclinada emergia da carlinga.
Pareceu-lhe estranha essa cabeça iluminada como uma lanterna por uma luz
interior. Ele gritou: "Eh!”, mas sua voz se perdeu. Deu um soco na parede
do avião: o homem, emergindo da luz, continuava a ler. Quando virou a página,
seu rosto parecia transtornado. “Eh!”, tomou a chamar Bemis, mas o homem era
inacessível, mesmo a tão curta distância. Desistindo de falar com ele, Bemis
voltou-se para a frente:
"Devo
estar próximo do cabo Guir, mas... minha nossa... isso vai mal.”
Refletiu:
"Devo estar em pleno mar.”
Com
a ajuda da bússola, corrigiu a rota.
Bemis
sentia-se curiosamente lançado no espaço, em direção à direita, como uma égua
teimosa, como se realmente as montanhas, à sua esquerda, passassem sobre ele.
"Deve estar chovendo."
Estendendo
a mão para fora da carlinga, sentiu as gotas que caiam.
"Dentro
de vinte minutos alcançarei a costa; na planície, o perigo será menor.”
Repentinamente,
tudo se aclarou. O céu limpo de nuvens, todas as estrelas lavadas, novas. A
lua... Ah, a lua! A melhor das lâmpadas! O campo de aviação de Agadir
iluminou-se três vezes, como um anúncio luminoso.
"Não
preciso de suas luzes! Tenho a lua...!”
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