sábado, 22 de julho de 2017

CORREIO SUL - 15

 Terceira parte

             I

            A Europa, a África preparavam-se quase simultaneamente para a noite, liquidando aqui e ali as últimas tempestades do dia. A de Granada se acalmou e a de Málaga se resolveu com chuva. Em certos lugares, a neve agarrava-se ainda aos ramos das árvores como às cabeleiras.

            Depois de despachar o correio, Toulouse, Barcelona e Alicante arrumaram seus acessórios, recolheram os aviões e fecharam os hangares. Málaga, que o esperava durante o dia, não precisava se prevenir do fogo. Aliás, o correio nem aterrissaria. Continuaria muito baixo, sem dúvida, em direção a Tânger. Seria necessário, mais uma vez, atravessar o estreito a vinte metros, sem ver a costa da África, guiado pela bússola. Um vento de oeste, potente, cavava o mar. As ondas esmagadas tomavam-se brancas. Com a proa ao vento, cada navio ancorava trabalhando a pleno vapor, como se estivesse em alto- mar. A leste, o rochedo inglês cavava uma depressão, onde chovia torrencialmente. A oeste, as nuvens subiram um andar. Do outro lado do mar, Tânger esfumava-se numa chuva tão abundante que encharcava a cidade. No horizonte, provisões de nuvens. Entretanto, para os lados de Larache, o céu estava limpo.

            Casablanca respirava a céu aberto. Veleiros na praia marcavam o porto como depois de uma batalha. Na superfície do mar, que a tempestade lavrara, havia simplesmente ondulações regulares que se abriam em leque. Os campos tomaram-se de um verde mais vivo ainda, profundos como a água, ao sol poente. A cidade luzia, aqui e ali, nos lugares ainda batidos pela chuva. Na barraca do grupo eletrogêneo, os eletricistas esperavam, desocupados. Os de Agadir jantavam na cidade, pois ainda tinham quatro horas livres. Os de Port-Étienne, Saint-Louis, Dacar podiam dormir.

            Às oito horas da noite, o rádio de Málaga comunicou:

            Correio passou sem aterrissar.

            E Casablanca experimentou os refletores. A rampa de balizamento recortou em vermelho um pedaço da noite, um retângulo negro. Uma lâmpada falhava aqui e ali, como um dente. Depois um segundo interruptor espalhou as luzes. Derramou-se a claridade no meio do campo, como uma poça de leite. Faltava o ator de music-hall.

            Deslocou-se um refletor. O facho invisível atingiu uma árvore molhada, brilhando como um cristal. Depois, uma barraca branca, que adquire enorme importância, gira na sombra e desaparece depois. Enfim, o facho de luz toma a descer, encontra seu lugar e ilumina aquele leito branco onde pousará o avião.

            — Bem — disse o chefe —, apague.

            Subiu ao escritório, examinou os últimos papéis e observou seriamente o telefone, com o espírito vazio. Rabat chamaria logo. Tudo estava preparado. Os mecânicos sentavam-se sobre latas e caixas.

            Agadir nada compreendia. Segundo os cálculos, o correio já havia deixado Casablanca. Era esperado a qualquer momento. Confundiram umas dez vezes a estrela do pastor com a luz de bordo do aparelho, e também a estrela polar, que aparecia justamente ao norte. Esperavam contar uma estrela a mais, vê-la errar pelo céu entre as constelações, para acenderem os projetores.

            O chefe do campo de pouso estava perplexo. Daria, por sua vez, o sinal de partida? Temia a bruma ao sul, que talvez se estendesse até o Oued Noun, talvez mesmo até Juby, que permanecia em silêncio, apesar dos apelos do rádio. Não se podia lançar o "França-América" à noite, através daquela cerração espessa. O posto do Saara encerrava- se em seu mistério.

            Entretanto, em Juby, isolados do mundo, lançávamos angustiantes mensagens como um navio:

            Comunicar notícias correio, comunicar...

            Não respondíamos mais a Cisneros, que nos irritava com as mesmas perguntas. Distanciados mil quilômetros uns dos outros, lançávamos inúteis lamentos durante a noite.

            Às 20h50, tudo se acalmou. Casablanca e Agadir puderam comunicar-se por telefone. Conseguiram por fim receber nossos rádios. Casablanca falava e cada uma de suas palavras se repetia até Dacar:

            Correio partirá 22 horas para Agadir.

            De Agadir para Juby: Correio estará Agadir 12h3O ponto. Poderemos sobrevoar?

            De Juby para Agadir: Bruma. Esperar dia.

            De Juby para Cisneros, Port-Étienne, Dacar: Correio pernoitará Agadir.




            O piloto assinalava as rotas em Casablanca, piscando os olhos sob a lâmpada. Ainda há pouco, cada piscada de quase nada adiantava. Às vezes, Bemis considerava-se feliz por ter como guia a branca ruína das ondas, na orla da terra e do mar. Agora, no escritório, via apenas armários, papéis brancos, móveis espessos. Era um mundo compacto e generoso de sua matéria. Mas, para além da porta entreaberta, estendia-se um mundo esvaziado pela noite.

            Bemis estava vermelho por causa do vento que, por dez horas, lhe batera no rosto. Gotas d’água corriam-lhe pelos cabelos. Saía da noite como um limpador de esgotos de sua fuma, com suas botas pesadas, seu casaco de couro e seus cabelos colados ao rosto. Continuava a piscar os olhos. Interrompeu-se:

            — E... você tem a intenção de me fazer prosseguir no voo?

            O chefe do campo de pouso virava as folhas com um ar zangado.

            — Fará o que lhe mandarem.

            Ele sabia que não exigiria aquela partida, e o piloto, por sua vez, estava certo de que pediria para seguir. Mas cada um queria provar a si próprio que era o único juiz.

            — Feche-me, com os olhos vendados, num armário com alavanca de comando e mande-me transportá-lo até Agadir. Eis o que me pede.

            Estava muito agitado interiormente para pensar um segundo sequer num acidente pessoal: tais ideias só ocorrem aos corações vazios... Mas aquela imagem do armário encantava-o. Há coisas impossíveis... mas que ele conseguiria de qualquer forma.

            O chefe do campo de pouso entreabriu a porta para jogar seu cigarro na noite.

            — Olhe! Dá para ver alguma coisa.

            — O quê?

            — Estrelas.

            O piloto irritou-se com aquilo:

            — Muito me importam as suas estrelas: veem-se apenas três. Não é a Marte que você me envia, e sim a Agadir.

             — A lua aparecerá dentro de uma hora.

            — A lua... A lua...

            Essa lua o impacientava mais ainda. Tinha necessidade dela para voar à noite? Por acaso seria ainda um aprendiz?

            — Bem. Está entendido. Muito bem. Fique.

            O piloto acalmou-se, desembrulhou os sanduíches da véspera e mastigou-os calmamente. Partiria dentro de vinte minutos. O chefe do campo de pouso sorria, dando pancadinhas no telefone e sabendo que em breve assinalaria aquela decolagem.

            Agora que tudo estava pronto, houve um instante de folga. Assim, às vezes, o tempo para. Inclinado para a frente, o piloto imobilizou-se na cadeira, com as mãos sujas de graxa entre os joelhos. Seus olhos fixavam um ponto entre ele e a parede. Sentado de lado, com a boca entreaberta, o chefe do aeroporto parecia estar à espera de um sinal secreto. A datilógrafa cochilou, apoiou o queixo na mão e sentiu que o sono a dominava inexoravelmente. Sem dúvida, a areia de uma ampulheta estava escorrendo. Depois, um grito longínquo foi o impulso que pôs em marcha o mecanismo. O chefe do campo de pouso levantou um dedo. O piloto sorriu, endireitou-se, encheu os pulmões com um ar novo.

            — Adeus.

            Assim, às vezes, um filme se interrompe. A imobilidade envolve, cada segundo mais forte, como uma sincope. Depois, a vida recomeça.

            Bemis teve a impressão não de decolar, mas de entrar numa gruta úmida e fria, batida pelo ruído de seu motor como pelo mar. Poucas coisas acidentais ajudavam-no. Quando é dia, a encosta arredondada de uma colina, a linha de um golfo, o céu azul constroem um mundo real; ele se encontrava, porém, distante das coisas, num mundo em formação, onde os elementos ainda se confundiam. A planície se estendia, arrebatando as últimas cidades, Mazagão, Safi, Mogador, que lá de baixo a iluminavam como claraboias. Brilharam depois as luzes das últimas fazendas, as últimas luzes de bordo da terra. Repentinamente, ficou cego. "Bem, acabo de entrar na escuridão.”

            Atento ao indicador de inclinação, ao altímetro, desceu um pouco para livrar-se da nuvem. O pálido clarão de uma lâmpada o ofuscava. Apagou-a.

            "Bem, consegui escapar, mas não vejo nada.”

            Invisíveis e silenciosos, passavam os primeiros picos do pequeno Atlas, entre dois rios, como icebergs na corrente: adivinhava-os atrás de si.

            “Isso vai mal”

            Voltou-se. Um mecânico, único passageiro, lia um livro, com uma lanterna sobre os joelhos. Com os ombros caídos, apenas a cabeça inclinada emergia da carlinga. Pareceu-lhe estranha essa cabeça iluminada como uma lanterna por uma luz interior. Ele gritou: "Eh!”, mas sua voz se perdeu. Deu um soco na parede do avião: o homem, emergindo da luz, continuava a ler. Quando virou a página, seu rosto parecia transtornado. “Eh!”, tomou a chamar Bemis, mas o homem era inacessível, mesmo a tão curta distância. Desistindo de falar com ele, Bemis voltou-se para a frente:

            "Devo estar próximo do cabo Guir, mas... minha nossa... isso vai mal.”

            Refletiu: "Devo estar em pleno mar.”

            Com a ajuda da bússola, corrigiu a rota.

            Bemis sentia-se curiosamente lançado no espaço, em direção à direita, como uma égua teimosa, como se realmente as montanhas, à sua esquerda, passassem sobre ele.

             "Deve estar chovendo."

            Estendendo a mão para fora da carlinga, sentiu as gotas que caiam.

            "Dentro de vinte minutos alcançarei a costa; na planície, o perigo será menor.”

            Repentinamente, tudo se aclarou. O céu limpo de nuvens, todas as estrelas lavadas, novas. A lua... Ah, a lua! A melhor das lâmpadas! O campo de aviação de Agadir iluminou-se três vezes, como um anúncio luminoso.


            "Não preciso de suas luzes! Tenho a lua...!”


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