domingo, 9 de julho de 2017

VOO NOTURNO - 13


            Você me pregou uma peça no seu último correio. Deu meia-volta quando a meteorologia anunciava tempo bom: podia passar. Teve medo?

            O piloto, surpreso, calou-se. Esfregou lentamente as mãos uma na outra. Em seguida, levantou a cabeça e encarou Rivière:

            Sim.

            Bem no íntimo, Rivière sentiu pena daquele jovem tão corajoso, que teve medo. O piloto tentou desculpar-se:

            Eu não via mais nada. Certamente, mais longe... talvez a T.S.F. dissesse, mas minha lâmpada de bordo estava fraca e eu não via mais minhas mãos. Quis acender a lâmpada de posição para ver, ao menos, a asa: não vi nada. Sentia-me no fundo de um grande buraco do qual era difícil sair. Então, o motor começou a vibrar.

            Não.

            Não?

             Não. Nós o examinamos depois. Ele estava perfeito. Mas sempre acreditamos que o motor está vibrando quando estamos com medo.

            Quem não teria medo. As montanhas me dominavam. Quando eu quis ganhar altitude, encontrei fortes redemoinhos. O senhor sabe que quando não se enxerga nada... os redemoinhos... Em vez de subir, caí cem metros. Eu não via nem mesmo o giroscópio, nem sequer os manómetros. Parecia-me que o regime do motor diminuía, que o motor aquecia, que a pressão do óleo caía... Tudo isso na escuridão, como uma doença. Fiquei muito contente ao rever uma cidade iluminada.

            Você tem muita imaginação. Retire-se.

            E o piloto saiu...

            Rivière se afundou na poltrona e passou a mão nos cabelos grisalhos.

            “É o mais corajoso de meus homens. O que ele conseguiu naquela noite é maravilhoso, mas eu o estou salvando do medo...” Depois, como se a fraqueza voltasse a tentá-lo:

            “Para ser amado, basta manifestar compaixão. Eu não me compadeço nunca, ou escondo a compaixão. Bem que gostaria, no entanto, de me cercar da amizade e da suavidade humanas. Um médico encontra-as no seu ofício. Mas é aos acontecimentos que eu sirvo. Preciso moldar os homens para que eles sirvam aos acontecimentos. A noite, no meu escritório, sinto com intensidade essa lei obscura diante das rotas de viagem. Se eu me deixar levar, se permitir que os acontecimentos bem ordenados sigam o seu curso, então misterioso, os acidentes irão surgir. Como se apenas a minha vontade impedisse os aviões de se romperem

             durante o voo, ou a tempestade de atrasar o correio que está a caminho. Fico surpreso, às vezes, com o meu poder”.

            Refletiu ainda:

            “Talvez isso seja claro. Assim é a luta perpétua do jardineiro que cuida de sua planta. O peso da sua mão obriga a terra a conter a floresta primitiva que ela prepara eternamente”.

            Pensa no piloto:

            “Salvo-o do medo. Não é o piloto que ataco, mas, por meio dele, a resistência que paralisa o homem diante do desconhecido. Se lhe dou ouvidos, se me compadeço dele, se levo a sério sua aventura, ele vai se achar voltando de um país misterioso, e é justamente do mistério que temos medo. É preciso que os homens desçam a esse poço escuro, retornem de lá e afirmem não ter encontrado nada. E preciso que esse homem desça às profundezas mais íntimas da noite, com toda sua espessura, sem levar sequer essa pequena lâmpada de mineiro, que ilumina apenas as mãos ou as asas, mas que coloca o desconhecido a certa distância”.

            Entretanto, nessa pequena batalha, uma silenciosa fraternidade unia, no fundo deles mesmos, Rivière e seus pilotos. Todos eram homens dotados da mesma natureza, que experimentavam o mesmo desejo de vencer. Mas Rivière se lembrou de outras batalhas que travou para conquistar a noite.

            Esse território sombrio era temido, nos círculos oficiais, como uma selva inexplorada. Lançar uma tripulação a duzentos quilômetros por hora, em direção a tempestades, nevoeiros e obstáculos materiais, que a noite guarda sem revelar, parecia-lhe uma aventura tolerável para a aviação militar: abandona-se um

             território em noite clara, bombardeia-se e volta-se novamente ao mesmo território. Mas os serviços regulares não teriam sucesso de noite. “É, para nós”, replicou Rivière, “uma questão de vida ou morte, posto que, a cada noite, perdemos a vantagem conquistada durante o dia, para as estradas de ferro e os navios”.

            Rivière escutara, entediado, falar de balanços, de seguros e, sobretudo, de opinião pública... “A opinião pública”, respondia ele, “pode ser controlada!” Pensava: “Quanto tempo perdido! Existe qualquer coisa... qualquer coisa que tem primazia sobre tudo isso. O que tem vida atropela tudo para viver e cria suas próprias leis. É irresistível”. Rivière não sabia quando nem como a aviação comercial chegaria aos voos noturnos, mas era preciso preparar essa solução inevitável.

            Lembrou-se dos tapetes verdes, diante dos quais, com o queixo apoiado na mão, escutou, com um estranho sentimento de força, tantas objeções. Elas lhe pareciam vãs, condenadas antecipadamente pela vida. E sentia sua própria força, concentrada dentro de si como um peso: “Minhas razões pesam, vencerei”, pensava. “E a tendência natural dos acontecimentos.” Quando lhe exigiam soluções perfeitas, que afastavam todos os riscos, respondia:

            “E a experiência que nos dará as leis; o conhecimento das leis não precede nunca a experiência”.

            Depois de um longo ano de lutas, Rivière tinha vencido. Alguns diziam “graças à sua fé”, outros: “graças à sua tenacidade, à sua força de urso em ação”, mas, para ele, tudo era porque tendia sempre para a direção certa.

            Mas que cuidados no início! Os aviões somente partiam uma hora antes de o sol nascer e só aterrissavam uma hora depois de o sol se pôr. Somente quando se considerou mais seguro de sua

             experiência, Rivière ousou jogar os correios nas profundezas da noite. Seguido por poucos, desacreditado, travava agora uma luta solitária.

            Rivière tocou a campainha para tomar conhecimento das últimas mensagens dos aviões em voo.

             

            O correio da patagônia aproximava-se da tempestade e Fabien não queria contorná-la. Considerava-a muito extensa e a sequência dos relâmpagos se estendia em direção ao interior do país, revelando fortalezas de nuvens. Tentaria passar por baixo e, se isso não desse certo, daria meia-volta.

            Verificou sua altitude: mil e setecentos metros. Colocou a palma das mãos sob os comandos para começar a reduzir a altitude. O motor vibrou com força e o avião estremeceu. Fabien corrigiu, de vista, o ângulo de descida; em seguida, verificou no mapa a altura das colinas: quinhentos metros. Para conservar uma margem, navegaria a cerca de setecentos.

            Sacrificava sua altitude como se arriscasse uma fortuna. Um redemoinho fez o avião, que estremeceu ainda com mais força, mergulhar. Fabien se sentiu ameaçado por desabamentos invisíveis. Imaginou que dava meia-volta e encontrava cem mil estrelas, mas não mudou a direção nem um grau sequer.

             Calculava suas chances: provavelmente, tratava-se de uma tempestade local, pois Trelew, a próxima escala, assinalava um céu coberto a três quartos. Tratava-se de viver, apenas vinte minutos, nesse concreto negro. E, ainda assim, o piloto se inquietava. Inclinado à esquerda contra a massa de vento, tentava interpretar os clarões confusos que, mesmo nas noites mais espessas, era possível perceber. Mas já nem eram clarões. Apenas mudanças de densidade, na espessura das sombras, ou cansaço dos olhos.

            Desdobrou um papel que o telegrafista lhe entregou:

            — Onde estamos?

            Fabien teria dado tudo para saber. Respondeu:

            — Não sei. Estamos atravessando uma tempestade, guiados pela bússola.

            Inclinou-se mais. Estava incomodado com a chama do escapamento presa ao motor como um buquê de fogo, tão pálido que a luz do luar seria capaz de apagá-lo, mas que, nesse vazio, absorvia o mundo visível. Observou-a. Mantinha-se espessa, como a chama de uma tocha.

            A cada trinta segundos, Fabien mergulhava a cabeça na carlinga para verificar o giroscópio e o compasso. Não ousava mais acender as fracas lâmpadas vermelhas, que o cegavam por um longo tempo; mas todos os instrumentos, com números de rádio, derramavam uma pálida claridade astral. Lá, no meio das agulhas e dos números, o piloto experimentava uma segurança enganosa: a mesma da cabine de um navio sobre a qual passa uma onda. A noite e tudo o que ela trazia de rochedos, destroços, colinas passavam também pelo avião com a mesma surpreendente fatalidade.

            — Onde estamos? - repetia-lhe o operador.

             Fabien erguia-se novamente e retomava, apoiado à esquerda, sua vigília terrível. Não sabia mais quanto tempo, nem quanto esforço seriam precisos para libertá-lo daqueles laços sombrios. Quase duvidava de conseguir se libertar, pois, para alimentar sua esperança, jogava sua vida naquele pequeno papel, sujo e amarrotado, que havia desdobrado e lido mil vezes: “Trelew: céu três quartos coberto, suas luzes seriam perceptíveis nas fendas das nuvens. A não ser que...”

            A promessa de uma pálida claridade mais longe o impulsionava a prosseguir; no entanto, como duvidava, escreveu ao telegrafista:

            “Ignoro se poderei passar. Diga-me se o tempo continua bom atrás de nós”.

            A resposta consternou-o:

            “Comodoro assinala: ‘Retorno para cá impossível. Tempestade’”.

            Fabien começou a adivinhar a ofensiva insólita que, desde a Cordilheira dos Andes, se abatia em direção ao mar. Antes que ele pudesse alcançá-la, o ciclone lhes roubaria as cidades.




            — Pergunte como está o tempo em San Antonio...

            — San Antonio respondeu: “O vento se levanta a Oeste, tempestade a Oeste. Céu quatro quartos coberto”. San Antonio ouve muito mal por causa das interferências. Também ouço mal. Creio que logo serei obrigado a recolher a antena por causa das descargas. Você dará meia-volta? Quais são seus planos?

            — Deixe-me em paz. Pergunte o tempo em Bahia Blanca...

             — Bahia Blanca respondeu: “Prevemos, em menos de vinte minutos, uma violenta tempestade a Oeste sobre Bahia Branca”.

            — Pergunte o tempo em Trelew.

            — Trelew respondeu: “Furacão trinta metros segundo Oeste e rajadas de chuva”.

            — Informe a Buenos Aires: “Estamos cercados por todos os lados, a tempestade se desenvolve em uma área de mil quilômetros, não vemos mais nada. O que devemos fazer?”.




            Para o piloto, aquela noite era interminável, pois não conduzia nem em direção a um porto (todos pareciam inacessíveis) nem ao amanhecer: a gasolina acabaria em uma hora e quarenta minutos. Assim, mais cedo ou mais tarde, seria obrigado a deslizar cegamente naquela imensidão.

            Se pudesse alcançar o dia...

            Fabien via o amanhecer como uma praia de areias douradas, onde encalhariam depois daquela noite tão dura. Sob o avião ameaçado, nasceria a margem das planícies. A terra tranquila traria suas fazendas adormecidas, rebanhos e colinas. Todas as ameaças que circulavam na escuridão tornar-se-iam inofensivas. Se ele pudesse, como nadaria em direção ao dia!

            Pensou estar cercado. Bem ou mal, tudo se resolveria naquela imensidão.

            É verdade. Por vezes, quando o sol começava a nascer, acreditava entrar em convalescença.

            Mas de que lhe servia fixar os olhos na direção Leste, onde nascia o sol: havia, entre eles, tal profundidade noturna que jamais poderia ultrapassá-la.


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