Uma vila
branca sob os pinheiros
Saint-Exupéry em Friburgo, Suiça |
Essa
decisão também foi motivada por outras razões. A declaração de guerra seria
traumática para Fernand de Saint-Exupéry, cujo único filho sobrevivente, Roger,
padrinho de Antoine, fora morto durante os primeiros enfrentamentos à frente de
sua companhia de infantaria. Roger deixou sete filhos, dos quais um único
homem. As pungentes lembranças da ocupação prussiana de 1870 ainda estavam
tristemente presentes na memória do avô de Antoine, e foi fácil persuadi-lo de
que o neto deveria ser colocado num lugar seguro para garantir a continuidade
de uma linhagem de 700 anos. A única condição imposta foi a de uma educação
católica, e ela foi preenchida. Saint-Jean era uma escola dirigida por
sacerdotes e religiosos da ordem dos maristas, dedicada à mãe de Deus.
O
colégio, situado na fronteira entre os cantões francês e alemão, foi
cuidadosamente escolhido. Marie de Saint-Exupéry consultou diversos amigos e
parentes. Um de seus vizinhos lioneses, Louis de Bonnevie, já freqüentava esse
estabelecimento. A família Sallès, que morava perto de Saint-Maurice, no lado
oposto ao vale, também deu uma opinião favorável. Louis de Bonnevie e Charles
Sallès foram colegas de classe de Antoine e tornaram-se seus melhores amigos em
Friburgo, onde seu irmão François freqüentava uma classe menos avançada.
Na
Ville Saint-Jean, Saint-Exupéry encontrou os professores mais esclarecidos que
já tivera na vida, e a escola estava situada num ambiente natural, que lhe
fazia recordar os contrafortes familiares do Jura, perto de Saint-Maurice. O
aspecto acolhedor dos chalés de montanha que serviam de dormitórios e salas de
aula contrastava com a austeridade dos imóveis de Le Mans. Embora nunca tivesse
manifestado grande interesse pelo esporte, com exceção da natação, Antoine
precisava do estímulo das atividades ao ar livre, que compreendiam futebol,
tênis, passeios em trenó e até mesmo patinação, quando o rio local, o Sarine,
congelava. Os passeios pelas florestas de pinheiros e à beira dos lagos eram frequentes.
Lá a guerra não passava de uma longínqua preocupação, só lembrada quando os boletins
diários eram pendurados no quadro de avisos ou quando os regimentos suíços
vinham acampar no parque do colégio.
O Colégio Saint-Jean, em Friburgo |
Mais
de setenta anos mais tarde, Charles Sallès, que passou a maior parte da vida
gerenciando a propriedade familiar da Provença, ainda se lembrava entusiasticamente
dos métodos pedagógicos de Saint-Jean, que contrastavam com a severidade das
escolas religiosas francesas. As relações entre professores e alunos estavam
baseadas essencialmente na confiança. A maioria dos educadores, de origem alsaciana,
tinha se inspirado numa versão tolerante dos métodos utilizados nas escolas
particulares britânicas, acompanhados de uma menor carga horária em vigor nas
escolas alemãs.
A
religião não era ensinada coercitivamente. Os sacerdotes e religiosos pregavam
mais por meio do exemplo que pelas escrituras, seguindo os ensinamentos de seu
compreensivo provedor, o padre François-Joseph Keiffer, que preferira o refúgio
neutro da Suíça a permanecer na Alsácia sob o regime alemão. Um dos professores
distinguia-se dos demais: Antoine Wahl, que ensinava alemão, geografia e
ciências naturais. Dizia-se que gastara sua fortuna pessoal para fundar a
escola, em 1903. A gentileza desse pequeno austríaco de aparência severa, com
barba e bigodes imperiais, ficou marcada indelevelmente na memória de todos os
alunos até muito depois da morte dele, em 1933. Seu passado, na opinião de
Sallès, era “bastante misterioso”, e os alunos comentavam que sua vocação pelo
ensino nascera de uma desilusão amorosa.
A turma de Saint-Exupéry em Friburgo. Ele é o primeiro à direira, de pé |
O
colégio de Friburgo foi a única escola mencionada com nostalgia por
Saint-Exupéry em seus escritos posteriores; no entanto, no decorrer de sua
estada, ele frequentemente deu a impressão de ser apenas um zero à esquerda. Na
maior parte do tempo estava entre os últimos da classe e nem em composição
francesa esforçava-se particularmente. Reservava seus talentos criadores a
projetos pessoais, como o libreto de uma opereta intitulada Le Parapluie (O
Guarda- chuva). Enviou o manuscrito à sua professora de violino em Lyon,
Anne-Marie Poncet, que manifestou pouco entusiasmo pela história, na qual um
guarda-chuva de mulher abandonado num café torna-se objeto de sonhos românticos
de um dos clientes, até sua feia proprietária vir reclamá-lo.
Em
Le Mans, a insolência de Saint-Exupéry e sua recusa a participar das atividades
de aula eram castigadas com excessivo rigor.
Na
Ville Saint-Jean, os padres manifestavam bastante compreensão, e pareciam nunca
perder a esperança de convencer, à força de paciência, esse aluno
demasiadamente sensível e indisciplinado. Seus esforços foram recompensados
diversos anos mais tarde, num trecho entusiasta do primeiro romance de
Saint-Exupéry, Correio Sul.
Outra foto do Colégio Saint-Jean em Friburgo |
Com relação à diferença de
experiência existente entre aqueles homens que ele admirava e sua própria vida
de riscos calculados, Saint-Exupéry frisa em Correio Sul: “E de repente
compreendemos [Bernis e seu amigo, outro piloto] que eles já sabiam que éramos
diferentes: os veteranos têm o costume de retornar com um passo duro para
buscar sua revanche”.
Para não frustrar os ídolos de sua
juventude, que tinham aberto uma garrafa de vinho especial em homenagem a seu
antigo aluno, Bernis, aliás, Saint-Exupéry, opta por acentuar as decepções de
sua busca de aventura, deixando assim intacto o sonho do velho professor,
persuadido de que a verdade existe apenas na paz dos livros. Era uma forma de
pedir perdão por ter-se negado outrora a participar de forma construtiva com
sua inteligência e personalidade durante sua estadia na escola, onde aqueles
homens dedicados procuravam, apenas, o prazer de servir ao próximo.
A sincera espontaneidade reinante em
Saint-Jean atenuou a influência dos jesuítas e os preconceitos inculcados por
Fernand de Saint-Exupéry. Antes de Antoine se diplomar em 1917, tendo diante de
si uma possível carreira na marinha, diversos outros princípios aceitos na
adolescência também seriam questionados.
Marie de Saint-Exupéry foi enfermeira durante a Primeira Guerra |
Como possuía diploma de enfermeira,
Marie foi uma das primeiras, entre os civis, a constatar as terríveis consequências
de uma guerra na qual diversos homens da família encontraram a morte. A partir
dessa época, ela passou a demonstrar um desinteresse cada vez maior pela vida
material, consagrando a maior parte de seu tempo a tentar ajudar os outros,
particularmente as pessoas idosas e as crianças.
A guerra reduzira o número de
empregados do castelo, e a aflição compartilhada com os aldeães derrubou as
barreiras entre os castelões e os habitantes de Saint-Maurice. Annette Flamand,
cujo chapéu novo fora destruído pela tormenta no dia da inauguração da base
aérea, lembrava-se que antes da guerra existia uma distância social que nem
mesmo os lanches semanais no castelo conseguiam eliminar. Antoine tinha a mesma
idade que ela, porém Annette tinha o costume de inclinar-se à sua passagem,
chamando-o de Monsieur Antoine. Os sapatos de couro envernizado usados por ele
alimentavam a conversação das crianças, que geralmente usavam tamancos.
O pai de Annette possuía o primeiro
táxi da aldeia. Antes da guerra, um empregado vinha chamá-lo para que fosse ao
castelo quando a família Saint-Exupéry tinha de se deslocar. Após 1914, devido
à falta de pessoal, Marie ia pessoalmente ao café buscar um carro para levá-la
até a enfermaria de campanha para a qual fora designada.
As crianças criadas após 1918 falam
do castelo com menos respeito do que aquelas que o conheceram alguns anos
antes, embora Marie tivesse retomado, como de hábito, a direção do coral da paróquia
e os cursos de bordado às moças da aldeia. Em vez de ver Antoine como uma
silhueta longínqua a brincar por trás das grades da propriedade, a geração do
pós-guerra lembra-se dele fantasiado de Papai Noel, com um sobretudo vermelho e
barbas brancas, distribuindo presentes.
O estado de espírito de
Saint-Maurice refletia as mudanças que, em escala nacional, superariam as
divisões entre as diversas classes sociais. Mais de 1,5 milhão de franceses
serão mortos em quatro anos de combate, e seu sangue contribuirá para fortalecer
uma ainda frágil fé na república, acabando com as esperanças dos monarquistas. Embora
não haja qualquer relação de causa e efeito, dois dos mais fervorosos monarquistas
do ambiente de Antoine desapareceram pouco tempo depois da vitória de 1918:
Fernand de Saint-Exupéry, em 1919, e Gabrielle de Tricaud, em 1920.
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