domingo, 23 de julho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 19

Uma vila branca sob os pinheiros

Saint-Exupéry em Friburgo, Suiça
     As fotos mais alegres da adolescência de Saint-Exupéry foram tiradas em sua nova escola, o colégio da Ville Saint-Jean, em Friburgo, Suíça, no qual esteve internado dois anos, de 1915 a 1917. A expressão amuada e reservada que aparecia nas fotos de grupo em Le Mans foi substituída pela de um estudante satisfeito. Em vários retratos está vestido com roupa de tirolês e usa um chapéu típico. Já ultrapassa os colegas em altura — chegará a 1,84 m quando adulto. Sua estada em Le Mans encurtou-se em junho de 1915, quando foi constatado que estava com anemia devido ao rápido crescimento. Por causa da preocupação pelo seu estado de saúde é que foi enviado a essa escola experimental, na qual eram incentivados o esporte e as atividades ao ar livre.
            Essa decisão também foi motivada por outras razões. A declaração de guerra seria traumática para Fernand de Saint-Exupéry, cujo único filho sobrevivente, Roger, padrinho de Antoine, fora morto durante os primeiros enfrentamentos à frente de sua companhia de infantaria. Roger deixou sete filhos, dos quais um único homem. As pungentes lembranças da ocupação prussiana de 1870 ainda estavam tristemente presentes na memória do avô de Antoine, e foi fácil persuadi-lo de que o neto deveria ser colocado num lugar seguro para garantir a continuidade de uma linhagem de 700 anos. A única condição imposta foi a de uma educação católica, e ela foi preenchida. Saint-Jean era uma escola dirigida por sacerdotes e religiosos da ordem dos maristas, dedicada à mãe de Deus.
            O colégio, situado na fronteira entre os cantões francês e alemão, foi cuidadosamente escolhido. Marie de Saint-Exupéry consultou diversos amigos e parentes. Um de seus vizinhos lioneses, Louis de Bonnevie, já freqüentava esse estabelecimento. A família Sallès, que morava perto de Saint-Maurice, no lado oposto ao vale, também deu uma opinião favorável. Louis de Bonnevie e Charles Sallès foram colegas de classe de Antoine e tornaram-se seus melhores amigos em Friburgo, onde seu irmão François freqüentava uma classe menos avançada.
            Na Ville Saint-Jean, Saint-Exupéry encontrou os professores mais esclarecidos que já tivera na vida, e a escola estava situada num ambiente natural, que lhe fazia recordar os contrafortes familiares do Jura, perto de Saint-Maurice. O aspecto acolhedor dos chalés de montanha que serviam de dormitórios e salas de aula contrastava com a austeridade dos imóveis de Le Mans. Embora nunca tivesse manifestado grande interesse pelo esporte, com exceção da natação, Antoine precisava do estímulo das atividades ao ar livre, que compreendiam futebol, tênis, passeios em trenó e até mesmo patinação, quando o rio local, o Sarine, congelava. Os passeios pelas florestas de pinheiros e à beira dos lagos eram frequentes. Lá a guerra não passava de uma longínqua preocupação, só lembrada quando os boletins diários eram pendurados no quadro de avisos ou quando os regimentos suíços vinham acampar no parque do colégio.
O Colégio Saint-Jean, em Friburgo
            Mais de setenta anos mais tarde, Charles Sallès, que passou a maior parte da vida gerenciando a propriedade familiar da Provença, ainda se lembrava entusiasticamente dos métodos pedagógicos de Saint-Jean, que contrastavam com a severidade das escolas religiosas francesas. As relações entre professores e alunos estavam baseadas essencialmente na confiança. A maioria dos educadores, de origem alsaciana, tinha se inspirado numa versão tolerante dos métodos utilizados nas escolas particulares britânicas, acompanhados de uma menor carga horária em vigor nas escolas alemãs.
            A religião não era ensinada coercitivamente. Os sacerdotes e religiosos pregavam mais por meio do exemplo que pelas escrituras, seguindo os ensinamentos de seu compreensivo provedor, o padre François-Joseph Keiffer, que preferira o refúgio neutro da Suíça a permanecer na Alsácia sob o regime alemão. Um dos professores distinguia-se dos demais: Antoine Wahl, que ensinava alemão, geografia e ciências naturais. Dizia-se que gastara sua fortuna pessoal para fundar a escola, em 1903. A gentileza desse pequeno austríaco de aparência severa, com barba e bigodes imperiais, ficou marcada indelevelmente na memória de todos os alunos até muito depois da morte dele, em 1933. Seu passado, na opinião de Sallès, era “bastante misterioso”, e os alunos comentavam que sua vocação pelo ensino nascera de uma desilusão amorosa.
           
A turma de Saint-Exupéry em Friburgo. Ele é o primeiro à direira, de pé
Para Marie de Saint-Exupéry, uma das atrações de Saint-Jean era a oportunidade ímpar de aprender a língua e a cultura alemãs, que ela sempre incentivara em Saint-Maurice. Em Friburgo, o alemão era ensinado como primeira língua, porém isso não impediu que Antoine escrevesse poemas patrióticos contra o Kaiser, expressando ao mesmo tempo a frustração que sentia, compartilhada pelos colegas, de ter ficado à margem do conflito.
            O colégio de Friburgo foi a única escola mencionada com nostalgia por Saint-Exupéry em seus escritos posteriores; no entanto, no decorrer de sua estada, ele frequentemente deu a impressão de ser apenas um zero à esquerda. Na maior parte do tempo estava entre os últimos da classe e nem em composição francesa esforçava-se particularmente. Reservava seus talentos criadores a projetos pessoais, como o libreto de uma opereta intitulada Le Parapluie (O Guarda- chuva). Enviou o manuscrito à sua professora de violino em Lyon, Anne-Marie Poncet, que manifestou pouco entusiasmo pela história, na qual um guarda-chuva de mulher abandonado num café torna-se objeto de sonhos românticos de um dos clientes, até sua feia proprietária vir reclamá-lo.
            Em Le Mans, a insolência de Saint-Exupéry e sua recusa a participar das atividades de aula eram castigadas com excessivo rigor.
            Na Ville Saint-Jean, os padres manifestavam bastante compreensão, e pareciam nunca perder a esperança de convencer, à força de paciência, esse aluno demasiadamente sensível e indisciplinado. Seus esforços foram recompensados diversos anos mais tarde, num trecho entusiasta do primeiro romance de Saint-Exupéry, Correio Sul.
             
Outra foto do Colégio Saint-Jean em Friburgo
Por meio de seu herói romântico, o piloto Jacques Bernis, Saint- Exupéry evoca uma “vila branca sob os pinheiros”, num longo episódio nostálgico e melancólico no qual Bernis, piloto da Aéropostale numa linha que vai à África, leva um amigo para “uma visita à nossa infância”. A viagem efetivamente ocorreu pelo menos dez anos após sua partida de Saint-Jean, e o trecho de Correio Sul está impregnado, ao mesmo tempo, do orgulho de ter vencido e de uma profunda afeição pelos professores, descritos como divertidos e encantadores. Eles fazem perguntas sobre sua carreira aventureira e no livro o autor responde comparando os perigos da vida real com os cursos de filosofia sobre Pascal, Nietzsche e Taine, que apenas lhe ofereceram uma preparação teórica para a existência.
                Com relação à diferença de experiência existente entre aqueles homens que ele admirava e sua própria vida de riscos calculados, Saint-Exupéry frisa em Correio Sul: “E de repente compreendemos [Bernis e seu amigo, outro piloto] que eles já sabiam que éramos diferentes: os veteranos têm o costume de retornar com um passo duro para buscar sua revanche”.
             Para não frustrar os ídolos de sua juventude, que tinham aberto uma garrafa de vinho especial em homenagem a seu antigo aluno, Bernis, aliás, Saint-Exupéry, opta por acentuar as decepções de sua busca de aventura, deixando assim intacto o sonho do velho professor, persuadido de que a verdade existe apenas na paz dos livros. Era uma forma de pedir perdão por ter-se negado outrora a participar de forma construtiva com sua inteligência e personalidade durante sua estadia na escola, onde aqueles homens dedicados procuravam, apenas, o prazer de servir ao próximo.
        A sincera espontaneidade reinante em Saint-Jean atenuou a influência dos jesuítas e os preconceitos inculcados por Fernand de Saint-Exupéry. Antes de Antoine se diplomar em 1917, tendo diante de si uma possível carreira na marinha, diversos outros princípios aceitos na adolescência também seriam questionados.
           
Marie de Saint-Exupéry foi enfermeira
 durante a Primeira Guerra
Sua mãe entrou para a Cruz Vermelha que, antes do primeiro conflito mundial, representara um válvula de escape para as consciências culpadas de nobres e ricos. Alguns meses após a declaração de guerra, Marie confrontava-se com a verdade desumana em todo o seu horror. Os soldados franceses amputados e desfigurados, repatriados dos campos de prisioneiros alemães, transitavam pela Suíça em trens que faziam a primeira parada em território francês em Ambérieu, onde ela dirigia um ambulatório médico. Os tristes comboios, cheios de moribundos e doentes que gemiam, deixaram lembranças indeléveis na cidade.
                        Como possuía diploma de enfermeira, Marie foi uma das primeiras, entre os civis, a constatar as terríveis consequências de uma guerra na qual diversos homens da família encontraram a morte. A partir dessa época, ela passou a demonstrar um desinteresse cada vez maior pela vida material, consagrando a maior parte de seu tempo a tentar ajudar os outros, particularmente as pessoas idosas e as crianças.
         A guerra reduzira o número de empregados do castelo, e a aflição compartilhada com os aldeães derrubou as barreiras entre os castelões e os habitantes de Saint-Maurice. Annette Flamand, cujo chapéu novo fora destruído pela tormenta no dia da inauguração da base aérea, lembrava-se que antes da guerra existia uma distância social que nem mesmo os lanches semanais no castelo conseguiam eliminar. Antoine tinha a mesma idade que ela, porém Annette tinha o costume de inclinar-se à sua passagem, chamando-o de Monsieur Antoine. Os sapatos de couro envernizado usados por ele alimentavam a conversação das crianças, que geralmente usavam tamancos.
       O pai de Annette possuía o primeiro táxi da aldeia. Antes da guerra, um empregado vinha chamá-lo para que fosse ao castelo quando a família Saint-Exupéry tinha de se deslocar. Após 1914, devido à falta de pessoal, Marie ia pessoalmente ao café buscar um carro para levá-la até a enfermaria de campanha para a qual fora designada.
                        As crianças criadas após 1918 falam do castelo com menos respeito do que aquelas que o conheceram alguns anos antes, embora Marie tivesse retomado, como de hábito, a direção do coral da paróquia e os cursos de bordado às moças da aldeia. Em vez de ver Antoine como uma silhueta longínqua a brincar por trás das grades da propriedade, a geração do pós-guerra lembra-se dele fantasiado de Papai Noel, com um sobretudo vermelho e barbas brancas, distribuindo presentes.
                        O estado de espírito de Saint-Maurice refletia as mudanças que, em escala nacional, superariam as divisões entre as diversas classes sociais. Mais de 1,5 milhão de franceses serão mortos em quatro anos de combate, e seu sangue contribuirá para fortalecer uma ainda frágil fé na república, acabando com as esperanças dos monarquistas. Embora não haja qualquer relação de causa e efeito, dois dos mais fervorosos monarquistas do ambiente de Antoine desapareceram pouco tempo depois da vitória de 1918: Fernand de Saint-Exupéry, em 1919, e Gabrielle de Tricaud, em 1920.
                       
            

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