quarta-feira, 5 de julho de 2017

PILOTO DE GUERRA - 12

XI

            Eu morava em Orconte, vila nas proximidades de Saint-Dizier — onde meu Grupo ficou acantonado durante o inverno de 1939, que foi muito rude —, uma fazenda construída com paredes de estuque. A temperatura noturna caía ali a ponto de transformar em gelo a água da minha moringa rústica, e meu primeiro ato, antes de me vestir, era, logicamente, acender o fogo. Mas esse gesto exigia que eu saísse da cama onde estava aquecido e onde me embolava deliciosamente.

            Nada me parecia mais maravilhoso do que aquela simples cama de monastério, num quarto vazio e enregelado. Ali eu saboreava a beatitude do repouso depois de duras jornadas. Saboreava também a segurança. Nada me ameaçava. Meu corpo era ofertado, durante o dia, aos rigores da grande altitude e aos projéteis cortantes. Meu corpo podia ser transformado, durante o dia, em ninho de sofrimentos e ser injustamente dilacerado. Meu corpo, durante o dia, não me pertencia. Não me pertencia mais. Podiam arrancar-lhe membros, tirar-lhe sangue. Pois também é um fato de guerra que esse corpo se tome loja de acessórios que não são mais sua propriedade. O oficial vem e lhe reclama os olhos. E você lhe cede seu dom de ver. O oficial vem e lhe reclama as pernas. E você lhe cede seu dom de andar. O oficial vem, com sua tocha, e lhe reclama toda a carne do rosto. E você não passa de um monstro, tendo-lhe cedido, como resgate, seu dom de sorrir e de mostrar amizade aos homens. Assim, esse corpo que podia revelar-se, durante o dia, meu inimigo, e doer, esse corpo podia se transformar em usina de lamentações, eis que era ainda meu amigo, obediente e fraterno, bem enrolado nos lençóis em seu meio adormecimento, nada confiando à minha consciência além de seu prazer de viver, seu ronronar felizardo. Mas era preciso tirá-lo da cama e lavá-lo na água gelada, barbeá-lo, vesti-lo para ofertá-lo, correto, à forja. E aquela saída da cama parecia o arrebatamento dos braços matemos, do seio materno, de tudo o que, durante a infância, cultiva, acaricia, protege um corpo de criança.

            Então, depois de ter pesado bem, amadurecido e atrasado minha decisão, eu dava um só pulo, com os dentes cerrados, até a lareira, onde empurrava uma pilha de lenha que aspergia com gasolina. Uma vez que se inflamasse, eu conseguia atravessar de novo o meu quarto, enfiando-me de volta na cama, onde reencontrava meu calor e de onde, enfiado nas cobertas e no edredom até o olho esquerdo, eu vigiava a minha lareira. Primeiro, ela quase não pegava, depois havia curtos clarões que iluminavam o teto. Depois, começava a instalar-se ali, como uma festa que se organiza. Começava a crepitar, roncar, cantar. Era alegre como um banquete de casamento camponês, quando a multidão começa a beber, a esquentar e acotovelar-se.

            Ou então, parecia-me que era guardado por meu fogo benfazejo como por um cão pastor ativo, fiel e diligente, que desempenhava bem sua tarefa. Eu experimentava, considerando-o, um júbilo surdo. E, quando a festa chegava no auge, com aquela dança das sombras no teto e aquela música quente dourada, e já perto de mim aquelas construções de brasa, quando meu quarto ficava bem cheio daquele cheiro mágico de fumaça e de resina, eu deixava, num pulo, um amigo pelo outro, corria da minha cama ao meu fogo, ia ao mais generoso, e não sei muito bem se assava a barriga ou esquentava o coração. Entre duas tentações, covardemente, eu havia cedido à mais forte, à mais rutilante, à que, com sua fanfarra e seus clarões, fazia a melhor publicidade.

            Assim, por três vezes — primeiro, para acender o fogo, depois me deitar de novo e voltar para fazer a colheita das chamas —, eu, por três vezes, batendo os dentes, havia atravessado as estepes vazias e geladas do meu quarto e conhecido um pouco das expedições polares. Eu havia andado através do deserto em direção a uma escala bem-aventurada, e fora recompensado por aquele fogaréu, que dançava à minha frente, para mim, sua dança de cão pastor.

            Essa história parece uma ninharia. No entanto, era uma grande aventura. Meu quarto me mostrava, com transparência, o que eu nunca saberia descobrir se, um dia, como turista, eu visitasse aquela fazenda. Ela teria me dado tão somente seu vazio banal, mal mobiliado com uma cama, uma moringa de água e uma lareira ruim. Eu teria bocejado alguns minutos. Como poderia distinguir suas três províncias, suas três civilizações, a do sono, a do fogo e a do deserto? Como teria pressentido a aventura do corpo, que é primeiro um corpo de criança pendurado no seio materno, acolhido e protegido, depois um corpo de soldado, construído para sofrer, depois um corpo de homem, enriquecido de alegria pela civilização do fogo, que é o polo da tribo. O fogo honra o hóspede e honra seus camaradas. Se eles visitam seu amigo, tomam parte em seu festim, puxam as cadeiras em volta da sua e, falando-lhe dos problemas do dia, das preocupações e fardos, dizem, esfregando as mãos e enchendo seus cachimbos: “Nada mal uma fogueirinha; é gostoso".

            Mas já não há fogo para me fazer crer na ternura. Não há mais quarto enregelado para me fazer crer na aventura. Eu acordo do sonho. Não há nada além de um absoluto vazio. Não há mais que uma extrema velhice. Tão somente uma voz, a de Dutertre, dizendo-me, obstinada, em seu propósito quimérico:


            — Um pezinho à esquerda, Capitão...


Nenhum comentário:

Postar um comentário