segunda-feira, 3 de julho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 69

A última carta

            Antoine de Saint-Exupéry decolou do aeroporto de Poretta, na Córsega, às 8:25 da manhã do dia 31 de julho de 1944, para uma missão de reconhecimento aéreo sobre a França ocupada. Deveria regressar por volta de meio dia, o que não ocorreu, e depois de alguns dias de angustiada espera, é declarado morto em combate, e recebe honras fúnebres oficiais.

            Na véspera da última missão, escreveu duas cartas, que ficaram sobre sua escrivaninha do quarto. Uma se destinava a Pierre Dalloz, um arquiteto de quem se tornara amigo em 1939, e reencontrara em 1943 em Argel. A outra carta, mais importante e pouco divulgada, se destinava a Nelly De Vogüé, com quem tinha uma relação desde 1929, quando tinha 29 anos. Foi sua última carta. Poucos dias antes ele havia escrito a Consuelo, mas era uma carta pouco amorosa, dizendo que lamentaria fazê-la chorar caso fosse abatido em voo.

            Na carta para Nelly, Antoine diz que se sente muito só, e se queixa da divisão dos franceses entre os adeptos de De Gaulle e os do Marechal Petain, chefe do governo colaboracionista de Vichy. Diz que a ama, e que ela é a grande paixão de sua vida. É uma carta apaixonada, carinhosa, e de despedida. Nos últimos dias antes da missão final, ele já havia entregue a um amigo os manuscritos de seu último livro, ainda em rascunho, “Cidadela” – com instruções de que caso não voltasse, deveria ser entregue juntamente com correspondências, diretamente a Nelly. Depois de sua morte, ela é a herdeira literária, responsável pela edição de Cidadela em 1948, e da primeira biografia dele, em 1949, sob o pseudonimo de Pierre Chevrier. Neste livro, ela dedica apenas uma linha e meia à esposa de Saint-Ex...

           
Única foto conhecida de Nelly de Vogüé com Saint-Exupéry. 
Ela está à esquerda e no meio Yvonne de Lestranges. 
Ao longo da vida dele, Nelly sempre teve uma obsessão pelo anonimato, e apenas uma foto dela com ele é conhecida, em companhia de Yvonne de Lestrange. Curtis Cate, em sua biografia do escritor, não dedica sequer uma linha a ela – ele conta que foi ameaçado com um processo se a citasse. Stacy Schiff, outra biógrafa, cita Nelly diversas vezes, mas nunca pelo nome. Sempre como “Madame B.”

            Antoine conheceu Hélène (Nelly) de Vogüé em 1929 na casa de Louise de Vilmorin, de quem estava noivo naquela época. Nelly é amiga de Louise. Desde o início eles se sentiram atraídos um pelo outro. Ele lhe mostra as provas de seu livro Correio Sul e lhe pede que faça uma leitura crítica e lhe transmita suas observações. Ela se sente lisonjeada e impressionada com a atenção do escritor. Eles se encontram frequentemente nos mesmos ambientes de salões literários e grupos de intelectuais de Paris.

            Hélène Jaunez, seu nome de solteira,  descende de uma família prussiana do lado de mãe, e seu pai é um industrial proprietário de importantes fábricas de cerâmica na França, que ela após sua morte irá administrar, se tornando uma das primeiras mulheres a gerenciar uma empresa no país. Em 1927 se casa com Jean de Vogüé, importante nome na aristocracia francesa.

            A ligação entre Antoine e Nelly ao longo dos anos se fortalece cada vez mais, apesar do casamento dele com Consuelo, de quem aos poucos vai se afastando, até a separação total em 1943. Em relação a Consuelo, Antoine tem um sentimento de proteção e responsabilidade.

Já com Nelly, ele é o protegido, se sente acolhido, amado e reconfortado por ela. É sua confidente mais íntima. Com o correr dos anos, ela tenta várias vezes convencê-lo a se divorciar de Consuelo.

            Ela tem excelentes contatos no mundo empresarial e da mídia, e os utiliza para ajudar a carreira dele. Paga suas dívidas várias vezes, vai ao seu encontro em uma estação de trem para lhe trazer roupas “decentes” a fim de que ele possa ir a Paris receber um prêmio literário. Chega a presenteá-lo com um avião monomotor Simoun na década de 30.

            Depois do acidente que ele sofreu em 1938, ela o acompanha em New York e o leva diariamente a um médico osteopata no Hospital for Wounded & Crippled, um imponente edifício de cinco andares perto do local onde hoje se encontra a sede da ONU. . Comemoram juntos a Legião de Honra outorgada a Henri Guillaumet e os 37 anos de aniversário deste último em 1939. Quando ele é mobilizado para a guerra, lhe faz diversas visitas na base aérea de Orconte onde está baseada a esquadrilha de reconhecimento 2/33 a qual ele pertence.

            O irmão de Nelly tenta convencer Saint-Exupéry a se juntar a De Gaulle em Londres, que ele recusa, incomodado com os ataques do general ao Marechal Pétain. Saint-Ex não gosta todas as vezes em que Nelly deixa escapar uma palavrar elogiosa sobre o general e ao mesmo tempo reclama quando ela se sente enciumada de Consuelo.

            Nelly de Vogüé se junta a Antoine de Saint-Exupéry em Argel em 1943, onde desembarca de um avião americano em um voo vindo de Gibraltar, monitorado pelos serviços de inteligência aliados, que acham suspeita sua liberdade de movimentos dentro da França ocupada pelos nazistas.

            Após sua partida, ele lhe escreve diversas cartas pedindo desculpas por magoá-la, reafirmando que precisa muito dela, e que a ama muito.

            Depois de sua morte, ela se encarrega da edição na Gallimard de toda sua obra póstuma, (Cidadela, Escritos de Guerra, Caderno de Notas). Antes de morrer, ela entrega uma numerosa coleção de cartas dele à Biblioteca Nacional da França, com instruções de só serem abertas 50 anos após sua morte, ocorrida em 2003.

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