Para escapar do calor do verão em
Manhattan, Saint-Exupéry alugou um chalé em Westport, em Long Island Sound. Consuelo
foi com ele, assim como o acompanhou nas duas mudanças seguintes, primeiro para
Northport, em Long Island, e finalmente para Beekman Place, em Nova York, para
uma casa de quatro andares que dava para o East River. Eles a ocuparam desde o
Natal de 1942 até a partida de Saint-Exupéry para a África do Norte, no dia 10
de abril de 1943.
Raramente tinham ficado tanto tempo
juntos desde os dias idílicos de Nice, um pouco antes de seu casamento em 1931.
Esses poucos meses poderiam parecer pouco importantes para a vida do casal, se
algumas cartas de Saint-Exupéry, bem como uma interpretação de Cidadela e de O Pequeno Príncipe, não proporcionassem uma prova do contrário.
Tanto Denis de Rougemont como André Maurois foram testemunhas da harmonia e da
afeição do casal, em um previsível contexto pouco convencional. Rougemont
passou numerosos fins de semana em Westfort, como também em Northport, onde
Saint-Exupéry alugara uma ampla residência chamada Bevin House, vagamente
parecida com o castelo de Saint-Maurice. Rougemont também era seu vizinho em
Beekman Place. Recebia constantes telefonemas de madrugada, de Antoine ou Consuelo,
pedindo-lhe que arbitrasse diferenças conjugais ou literárias. Na época,
Antoine preocupava-se com questões ao mesmo tempo científicas, políticas e militares.
Não satisfeito com ser escritor e brilhante conversador, lançava-se
continuamente na concepção de invenções irrealizáveis ou elaborava planos para
acabar com a guerra. Após ter sido vítima em diversas madrugadas de leituras de
Cidadela, e obrigado até mesmo em seu
quarto a escutar a conversa interminável de Antoine, fumando como uma chaminé,
sobre uma infinidade de temas, De Rougemont chegou à conclusão de que a
agitação perpétua de Antoine devia-se à atividade de um cérebro incapaz de
parar de funcionar.
André Maurois, pétainistas apesar de
suas origens judias, passou diversas semanas em Bevin House, onde sempre havia
numerosos visitantes. Em seu diário, lembra-se das longas tardes jogando xadrez
ou baralho com Antoine, e recorda também ter sido acordado de madrugada com
seus berros: “Consuelo, Consuelo!” Saint-Exupéry, que estava trabalhando em O Pequeno Príncipe, acordava sua esposa
para exigir-lhe ovos mexidos. Isso aconteceu duas vezes na mesma noite, e
depois Saint-Exupéry obrigou Maurois a uma longa caminhada e a uma longa
conversa em seu jardim, situado no meio de uma imensa floresta. Maurois tinha
acabado de dormir novamente quando ouviu Saint-Exupéry chamar a esposa.
“Preciso de Maurois ou de você para jogar xadrez comigo”, berrava ele.
É difícil imaginar Consuelo como uma
esposa dedicada, segundo os retratos anteriores que dela conhecemos. Mas ela
agora tinha 40 anos e dependia mais do que nunca de Antoine, que lhe assegurava
sua devoção através de uma “prece”, que Consuelo tinha de recitar todas as
noites:
“Senhor, não é preciso que vos
fatigueis muito. Fazei-me simplesmente como sou. Pareço vaidosa nas pequenas
coisas, mas, nas grandes, sou humilde. Pareço egoísta nas coisas pequenas, mas,
nas grandes, sou capaz de dar tudo, mesmo a vida. Com frequência pareço impura
nas pequenas coisas, mas só sou feliz na pureza.
Senhor, fazei com que me pareça
sempre com aquela que meu marido sabe ver em mim.
Senhor, Senhor, salvai meu marido,
porque ele realmente me ama e sem ele eu seria totalmente órfã, mas fazei,
Senhor, que ele morra primeiro, porque ele parece bastante sólido, mas se
angustia demais quando não me escuta fazer barulho em casa. Senhor, poupai-o da
angústia. Fazei com que eu sempre faça barulho em casa, embora de vez em quando
também quebre alguma coisa.
Ajudai-me a ser fiel e a não
frequentar aqueles que ele despreza ou que o detestam. Isto o deixa infeliz
porque eu sou a sua vida.
Protegei, Senhor, a nossa casa.
Amém!
Vossa Consuelo. ”
Consuelo com um busto de Saint-Exupéry feito
por ela.
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Naquela época, ela sentia seu
casamento menos ameaçado. A rival que ela tanto temia em Paris permanecera na
França e, apesar de ter ido a Nova York para encontrar Antoine antes da chegada
de Consuelo, sua relação estava chegando ao fim. Provavelmente Consuelo teria se
mostrado menos disposta a aceitar as obrigações domésticas impostas por Antoine
se tivesse adivinhado que seu marido visitava regularmente Sylvia Hamilton. A
jornalista conta que ele vinha vê-la todos os dias em seu apartamento, e mais
tarde publicou cartas nas quais ele pedia desculpas por ter lhe causado “muita
tristeza e muita mágoa” ao deixá-la.
Se tinha dúvidas, é provável que
Consuelo tenha encontrado consolo na mensagem de reconciliação e na promessa de
amor contidas em O Pequeno Príncipe.
Saint-Exupéry, que pedia incessantemente a opinião dos amigos sobre seus
escritos, também deve ter pedido a opinião da esposa. Ele sempre a consultava
com relação às suas obras, desde a publicação de Voo Noturno, e fora dela a decisão
sobre o título de Piloto de Guerra. Se Saint-Exupéry admitia a Adèle Breaux não
entender nada de pintura, pode-se imaginar que devia escutar os conselhos de
Consuelo, uma artista reconhecida. Também é provável que ele a utilizasse como
modelo. Sua professora de inglês reconheceu imediatamente Consuelo nas roupas e
no lenço amarelo do Pequeno Príncipe,
quando Antoine mostrou- lhe pela primeira vez os desenhos, em Bevin House.
Após a guerra, quando houve brigas
com relação aos direitos autorais de Saint-Exupéry e ressentimentos da família
com a possível influência exercida por Consuelo sobre o marido, tentou-se de diversas
formas negar ou dissimular o fato de que Antoine escrevera o livro para a
esposa. Finalmente, ela mesma teve de provar que era a rosa de O Pequeno Príncipe.
Consuelo sempre se negou a publicar
as cartas de Antoine, porém mostrou a alguns amigos um trecho de uma delas que
prova sem ambiguidade que o livro foi escrito em sua intenção. O historiador da
aviação Edmond Petit teve a sorte de ver esse trecho antes que a carta fosse
guardada, junto com centenas de outras, num cofre em Nice. “Sabe, a rosa é
você”, escrevera Saint-Exupéry. “Talvez nem sempre eu tenha conseguido tomar
conta de você, mas sempre achei você linda.” Em outra carta, Saint-Exupéry
dizia à esposa que seu maior remorso era não lhe ter dedicado O Pequeno Príncipe.
Tendo em vista esta confissão
decisiva, podemos formular numerosas teorias sobre o verdadeiro significado das
referências de Saint-Exupéry aos carneiros e às lagartas que ameaçam a sua
rosa, assim como aos quatro infelizes espinhos que defendem a flor abandonada.
As precauções tomadas para que o carneiro não destrua a rosa, a decisão do Pequeno Príncipe de abandonar seu
planeta, fazem pensar irresistivelmente no isolamento de Consuelo numa Europa
destroçada pela guerra, depois que Saint-Exupéry foi buscar refúgio nos Estados
Unidos. A descoberta das outras rosas pelo
Pequeno Príncipe refere-se às relações sentimentais de Saint-Exupéry após
seu casamento, na maioria das vezes com mulheres inteligentes e independentes,
ou infelizes no casamento. Mas, além do significado transparente que pode ser
atribuído às metáforas da fábula, interessa ressaltar que nela Saint-Exupéry
reconhece o seu amor por Consuelo. Ele admite que o mundo sem ela não teria
luz, e que ficará para sempre ligado a ela devido às suas experiências
compartilhadas.
“Se alguém ama uma flor da qual só
existe um exemplar em milhões e milhões de estrelas, isto basta para que seja
feliz quando as contempla”, diz O Pequeno
Príncipe. “Ele pensa: ‘Minha flor está lá, em algum lugar...’ Mas se o
carneiro come a flor, é para ele, bruscamente, como se todas as estrelas se
apagassem.” Se Consuelo é a rosa, os tormentos causados por sua vaidade, sua
forma de chamar a atenção a qualquer preço, seu medo de tigres imaginários, sua
obsessão com as correntes de ar, bem como a tosse destinada a disfarçar uma
mentira ingênua podem ser interpretados como observações pessoais. Sua esposa
provavelmente leu o rascunho dos seus textos, e necessariamente reconheceu
essas recriminações mal disfarçadas. No entanto, deve ter ficado comovida ao
ver que seu marido reconhecia implicitamente ter mal interpretado seus
caprichos muitas vezes irritantes e seus esforços para chamar a atenção.
“Deveria tê-la julgado pelos seus atos e não pelas palavras”, diz O Pequeno Príncipe. “Ela me perfumava, me
iluminava. Não devia jamais ter fugido. Deveria ter-lhe adivinhado a ternura
sob seus pobres ardis. São tão contraditórias as flores! Mas eu era jovem
demais para saber amar.”
Mas a rosa reconhece seu egoísmo, e O Pequeno Príncipe sente-se
desconcertado quando ela confessa seu arrependimento por ter sido tão
caprichosa, justamente antes de ele partir rumo à aventura em outros planetas.
Ele não compreende essa “doçura calma”. “É claro que eu te amo”, disse-lhe a
flor. “Foi por minha culpa que você não soube de nada. Mas você foi tão tolo
quanto eu.”
A partir do momento em que O Pequeno Príncipe abandona sua rosa,
suas viagens correspondem a uma busca vã de paz interior, que pode ser seguida
na vida aventureira de Saint-Exupéry, no abandono de Consuelo quando ele foi
para os Estados Unidos e em sua descoberta de que as relações com outras
mulheres eram sem sentido. O encontro com a raposa faz com que finalmente
compreenda que a necessidade mútua criada nos anos difíceis com Consuelo unira-os
para sempre. “Foi o tempo que você perdeu com sua rosa que fez sua rosa tão
importante”, diz a raposa ao Pequeno
Príncipe. “Os homens esqueceram essa verdade. Mas você não deve esquecê-la.
Você se torna responsável por tudo o que cativou. Você é responsável por sua
rosa...” A morte, com seu retorno implícito à inocência e à verdade esquecida
pelos adultos, conclui uma das mais estranhas cartas de amor jamais escritas.
A mesma reflexão prossegue em Cidadela, em numerosas alusões ao amor
conjugal. Os trechos em que o chefe berbere abandona a esposa adormecida para
partir em busca de um tesouro impossível são repletos de ternura e remorso.
“Mas durma tranquila em sua imperfeição, esposa imperfeita”, medita ele. “Você
não é objetivo, nem recompensa, nem joia venerada por si mesma, da qual logo eu
me cansaria; você é o caminho, o meio e o transporte.”
Algumas imagens de Cidadela são inábeis e às vezes sem
graça, particularmente quando Saint-Exupéry se esforça para assumir um tom
bíblico, mas com frequência os momentos de confissão são luminosos. Ele
reconhece ter-se enganado ao vaguear inutilmente em busca de outras mulheres em
aventuras sem sentido.
Comparações são feitas com a busca
frenética de um tesouro que não lhe proporcionará glória, nem riqueza, nem
amor, como se fosse de colmeia em colmeia para recolher o mel e percebesse
finalmente que o verdadeiro banquete estava em outro lugar. “Mas eu desejo
perpetuar o amor. Só existe amor onde a escolha é irrevogável”, escreve numa
reflexão sobre a fidelidade conjugal e a vaidade das ligações passageiras. “O
prazer da emboscada, da caça e da captura não é o amor.”
Nas noites profundas, durante seus
longos voos solitários, Saint- Exupéry era levado por essa busca de um ideal
que traduzia em fábulas ou parábolas, ou expressava em suas cartas. O Pequeno Príncipe, escrito na presença
da esposa, deveria ter sido a apoteose de sua autoanálise, dando assim ao casal
cansado e envelhecido um pretexto para depor as armas que já tinham causado
tantos ferimentos. Infelizmente, o livro representou apenas uma curta trégua em
suas relações tumultuosas que, no Natal de 1942, já estavam novamente em ponto
de ruptura. O casal teve uma briga terrível à qual Saint-Exupéry se refere em
suas cartas a Consuelo. Algumas semanas antes da publicação de O Pequeno Príncipe, a tensão entre eles
era tão grande que ele lhe dizia que sua única esperança de reencontrar a paz
interior residia na morte.
Dois dias antes de abandonar os
Estados Unidos e Consuelo, que nunca mais reveria, Antoine refere-se a outra
briga a propósito das despesas exorbitantes da esposa. Porque faltava dinheiro,
ele não pôde adquirir o uniforme regulamentar da Força Aérea, e teve de se
arranjar com um uniforme quase ridículo feito para o Metropolitan Opera. A
briga tinha se iniciado quando ele perguntou o preço de suas últimas
aquisições, argumentando que não tinha nenhuma camisa limpa, nem meias sem
buracos, nem sapatos, para juntar-se à sua unidade na África do Norte.
Saint-Exupéry achava que Consuelo seria mais feliz sem ele. Sua decepção diante
da indiferença da esposa era tão forte que ele desejava apenas a paz da morte.
A paz acima de tudo. O resto não tinha importância.