sexta-feira, 9 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 45

Jornalista na Rússia (3)

O terceiro dos seus artigos, tratando de suas primeiras impressões da Rússia e intitulado “Moscou! Mas onde está a Revolução?” foi ditado pelo telefone dois dias depois e publicado ao lado de um artigo descrevendo a visita oficial de Pierre Laval a Moscou. Mas foi no quarto, com a manchete “URSS 1935- Crimes e Castigos vistos pela Justiça Soviética”, que a perplexidade de Saint-Exupéry com a terra de Lenin foi mais tortuosamente revelada. Ele havia combinado um encontro com um juiz Soviético que (sem dúvida através de um intérprete) tentou explicar que o princípio fundamental da justiça Soviética era “não punir, mas corrigir. . . Se for necessário incutir o medo devido a um alto crescimento dos crimes comuns e a epidemia tem de ser extinta, nós puniremos mais severamente. Se  um exército está se despedaçando, alguns são escolhidos e fuzilados como exemplo. A mesma pessoa que, quinze dias antes, teria sido condenado a três anos de trabalhos forçados, tem que pagar com a vida um furto qualquer. Mas teremos extinto a epidemia e salvo os nossos homens.”

O comentário que Saint-Exupéry adicionou a esta explicação foi mais uma vez altamente pessoal: “Este juiz não se permite fazer um julgamento. Ele é como um médico que nada pode escandalizar. Ele cura se for possível, mas como está servindo a sociedade acima de tudo, se não consegue curar, ele executa. Nem o gaguejar do condenado nem o tremor dos lábios, nem o reumatismo que nos provoca compaixão conseguem atenuar sua situação. Em tudo isso eu percebo uma grande falta de respeito pelo indivíduo, mas um grande respeito pelo homem, pelas qualidades que se perpetuam através dos indivíduos e cuja grandeza deve ser forjada.”

Os pensamentos e até mesmo a escolha das palavras haviam mudado muito pouco desde Vol de Nuit; e embora isso pudesse ser a essência do que o juiz havia explicado, Saint-Exupéry estava inconscientemente sobrepondo a figura de Rivière, o brasseur d’hommes, aquele que molda os homens, para quem o indivíduo é como uma massa de argila ou de cera, e que ele tem de construir como um ser de um nível mais elevado. Ainda assim, Saint-Ex era por demais apegado ao pessoal e ao humano sem deixar de colocar um protesto momentâneo: “Aceito, Monsieur le Juge, os fundamentos da justiça. Mas a contínua homogeneização, a vigilância, o passaporte que todos devem ter para viajar através do país, a submissão universal ao coletivo, são intoleráveis para nós. E no entanto, creio que mesmo isso eu compreendo. . . Criaram uma sociedade e agora exigem que as pessoas não apenas respeitem suas leis mas também que habitem nela. Exigem que se organizem socialmente não apenas na aparência mas também no seu íntimo. Então e só então a disciplina será relaxada. . .”

“E fato,” continuava Saint-Exupéry, “que parte do povo russo tem alma de nômade e é levada pelo velho desejo dos Asiáticos de pegar a estrada, em caravanas, sob as estrelas. Então casas são construídas para atrair os nômades. Apartamentos não são alugados, mas vendidos. Autorizações de viagem são necessárias para todo e qualquer movimento no país. E os que levantam a vista demais em direção a perigosos sinais no céu são enviados para a Sibéria, onde têm de passar pelo terrível inverno de trinta graus abaixo de zero. E então talvez um novo tipo de homem é criado, estável e tão ligado a sua fábrica e ao seu grupo humano como o jardineiro francês é ligado a suas plantas.”

Era uma visão romântica não só da justiça Soviética, mas também da sua sociedade; e o “talvez”
naquela frase final parece indicar que também Saint-Exupéry estava um pouco em dúvida em relação à veracidade de sua apologia. Pois os que eram enviados aos campos de trabalho forçado não eram simplesmente os que tinham uma inclinação nômade, nem eram os “ladrões, gigolôs, e os assassinos” que ele citava como exemplos e que tinham sido exilados no Norte para mover montanhas de terra e para ligar o Báltico ao Mar Branco através de um canal; eram todos aqueles ou qualquer um que porventura tivesse se desentendido com os Poderosos e que eram enviados ao esquecimento insensível de campos de concentração por uma ordem arbitrária de algum comissário empedernido ou por algum intrigante político. E era não somente esperar demais, era absolutamente ingênuo — como tantos intelectuais na década de trinta esperavam — supor que tais meios brutais e indiscriminados pudessem, por uma alquimia magica de paixão doutrinária, construir um tipo de ser humano mais novo, melhor e mais puro.

Saint-Exupéry se viu em terreno mais seguro quando deixou as câmaras fétidas da justiça Soviética se ver no ar. Embora o maior avião do mundo, o Maxim Gorky, estivesse voando há cerca de um ano, nenhum estrangeiro havia sido autorizado a voar nele. Saint-Ex tinha encaminhado um pedido, solicitando que uma exceção fosse feita no seu caso, mas várias semanas tinham se passado e ele já estava quase sem esperanças quando surpreendentemente numa tarde a cobiçada autorização foi concedida. “Me instalei no espaço livre no nariz do avião,” foi como ele descreveu mais tarde a experiência, “e assisti a decolagem. A máquina estremeceu poderosamente à frente, e pude sentir esse monumento de quarenta e duas toneladas se plantar solidamente no ar, e fiquei surpreso com a facilidade da decolagem.”

Ele ficou ainda mais surpreso com o “passeio” que fez através do avião, que era dividido em onze compartimentos diferentes, alguns deles com beliches. Em um dos compartimentos encontrou uma secretária tranquilamente datilografando um documento. Um mecânico o levou para um reconhecimento através da asa esquerda, tão grande que os motores podiam ser acessados através de portinholas em câmaras que pareciam praças de máquinas em miniatura. Um engenheiro mostrou-lhe o gerador de eletricidade, ligado a um imenso alto-falante com potência suficiente para transmitir a quem estivesse no solo o trovejar dos oito motores. Saint-Ex teve a sensação de estar explorando o interior de um destroier; e de volta ao compartimento do nariz, ao ver do alto a cidade de Moscou, teve a impressão de vê-la do alto de uma varanda de um hotel de luxo.

No dia seguinte uma catástrofe atingiu o Maxim Gorky. Tinha acabado de decolar do aeroporto com sua tripulação de 11 homens e 37 membros escolhidos a dedo do Instituto de Aerodinâmica em um voo de ida e volta até Leningrado quando um piloto de acrobacias, ansioso por impressionar a deslumbrada multidão em terra, tentou realizar vários loops em torno do gigante. No momento em que saía do segundo loop sua hélice colidiu com uma das asas do Maxim Gorky. Com a vibração do monstro, a asa esquerda lentamente se soltou da fuselagem, os motores começaram a explodir, e em segundos o maior avião do mundo mergulhava em direção ao solo. Os destroços em chamas se espalharam por centenas de metros, e uma das asas despencou sobre uma pequena casa de madeira que foi reduzida a cinzas com seus dois habitantes. 51 pessoas, incluindo o piloto de acrobacia, morreram; e o artigo de Saint-Exupéry, logo alterado e renomeado “O Trágico Fim do Maxim Gorky” subitamente adquiriu um destaque macabro. Se a sua autorização tivesse vindo um dia depois, também ele estaria entre as vítimas.

Um tom bem diferente teve o último artigo de Saint-Exupéry para o Paris-Soir na véspera de sua partida da União Soviética. Alguém lhe dissera que ainda havia trezentas mestre-escola francesas morando em Moscou. Originalmente contratadas como governantas dos filhos de aristocratas na época Tzarista, essas “pequenas ratinhas cinzentas” tinham sobrevivido à tempestade de 1917 ofertando seus serviços aos filhos e filhas da revolução russa. Um exemplo típico era Mademoiselle Xavier, que se escondia em um prédio de apartamentos no subúrbio, onde seu visitante inesperado (Saint-Ex) teve dificuldade em descobri-la. . . Uma visita da França? Impossível! “Imagine, a primeira em trinta anos!” E num breve piscar de olhos de uma solteirona em idade avançada o armário de louças foi aberto, os copos colocados barulhentamente sobre a mesa — já que a porta estava aberta e ela queria que todo o prédio soubesse de sua boa sorte — e seu corpulento e desajeitado hóspede, com o rosto corado de contentamento, recebeu um enorme sortimento de bolinhos e vinho madeira.

A visita inesperada de Saint-Ex transformou-se em uma ocasião para uma fête, com mais dez “pequenas ratinhas cinzentas” se reunindo no apartamento recém-pintado de uma das amigas de Mademoiselle Xavier para recepcionar aquela estranha aparição vinda de sua pátria, que trazia um enorme estoque de Porto, vinhos, e licores. Logo estavam ligeiramente ébrias a cantar e beijar seu “Príncipe Encantado”.

De repente — “Chega um cavalheiro de semblante infinitamente sério. Um rival. Toda noite ele vem tomar chá, falar francês, e beliscar os bolinhos. Mas nessa noite ele senta-se, austero e amargo, numa mesinha.”

“Ele é russo,” as “ratinhas” o informaram, “adivinhe o que ele fez?”

Saint-Ex não tinha a mínima ideia.

“Diga ao nosso francês o que você fez em 1906,” pediram, insistindo com o recém-chegado, que a essa altura havia assumido um ar modesto de grand-seigneur. Displicentemente ele segurou a corrente do relógio, relutando de forma deliberada. Finalmente, cedendo aos apelos, voltou-se e relatou de forma casual, mas pronunciando cuidadosamente cada sílaba: “Em 1906 joguei na roleta em Mônaco.”

As senhorinhas aplaudiram triunfalmente.

“Por volta de uma da manhã era hora de voltar ao hotel. Fui acompanhado com grande pompa até o taxi. Com uma senhorinha em cada braço, já meio trôpegas a essa hora. Naquela noite eu fui a dueña.

Mademoiselle Xavier me cochicha: ‘No ano que vem também terei meu apartamento, e o receberei na minha casa. Verá como será linda. Já comecei até a bordar as cortinas.’

Mademoiselle Xavier chegou mais perto de meu ouvido. ‘Você virá me ver antes das outras. Serei a primeira, promete?’

“No ano que vem Mademoiselle Xavier terá apenas setenta e três anos. Terá seu próprio apartamento. Poderá começar a vida finalmente.”


* * *

O tom desses artigos era tão único, tão original, tão brilhante que provocaram uma enorme sensação nos leitores do jornal. As questões que Saint-Exupéry havia levantado eram fundamentais mesmo que as respostas nem sempre fossem satisfatórias, e Madame Larosa — era assim que se chamava a datilógrafa — dessa vez não caiu em lágrimas teclando sua máquina de escrever. A passagem sobre Mozart criança tinha tamanha perfeição imorredoura que foi usada quatro anos mais tarde como final de Terre des Hommes. Todos adoraram — Prouvost, editor do Paris-Soir, feliz por ter “anexado” um eminente escritor; Pierre Lazareff e Hervé Mille por haver escolhido um campeão; e não menos o próprio Saint-Ex, que agora podia pagar as contas vencidas do aluguel e prever um ou dois meses de afluência.


A trégua, previsivelmente, foi breve, apesar de ele agora se ver cercado por ofertas jornalísticas. Em julho finalmente deixou-se convencer pelo semanário liberal Marianne (que seu amigo Gaston Gallimard havia participado da fundação) a escrever um artigo sobre Jean Mermoz; mas o objetivo foi principalmente elogiar o “pilote de ligne” que havia liderado a luta para salvar um pouco do desastre da Aéropostale do que encher seus bolsos às custas de seu amigo. O artigo terminava com um parágrafo tipicamente generoso que por si só deixava isso claro. “O voo noturno e suas centenas de milhares de estrelas, essa serenidade, essa soberania por algumas horas, não há  dinheiro que pague. Essa descoberta de um mundo novo após um trecho mais difícil; essas árvores, essas flores, essas jovens recém coloridas por uma vida que se recebe com a aurora, esse concerto de pequenas coisas que lhe são restituídas e que são sua justa recompensa, não há dinheiro que pague. . .”
Convites foram feitos também pelo L’Intransigeant, principal jornal concorrente do Paris-Soir. Embora não fosse tão interessante como o Paris-Soir (os proprietários estavam menos dispostos do que Prouvost a investir grandes quantias no jornal), o L’Intransigeant estava fazendo um esforço desesperado para se equiparar ao seu concorrente na capacidade de contratar autores célebres para escrever séries de artigos. Seu novo editor-chefe, René Delange, havia se tornado amigo de Saint-Exupéry e estava extremamente ansioso para contar com seu talento. Mas onde? No outono, à medida que a tempestade se formava sobre a Etiópia, cogitou-se de enviá-lo à África Oriental a fim de igualar a cobertura que o ousado aventureiro Henry de Montfried, estava fazendo para o Paris-Soir; mas a ideia de entrar num duelo jornalístico não animou Saint-Ex, e eventualmente foi um repórter já contratado pelo Intransegeant, Emmanuel Bourcier, que foi enviado para acompanhar a patética “guerra contra a barbárie” de Mussolini.

Saint-Exupéry, além disso, estava agora envolvido em outro projeto que viria a dar frutos encantadores. Para este escrevinhador incansável que nunca ficava mais feliz do que quando rabiscava com lápis de cor (suas caricaturas, embora muitas vezes erráticas, eram frequentemente cômicas), o cinema era um meio de expressão riquíssimo para lhe despertar um interesse fascinado. Era evidente durante a década dos anos vinte na sua admiração por Chaplin; e o que seu amigo Henri Delaunay posteriormente achou que era indiferença — sempre o via saindo de um cinema em Alicante depois de apenas quinze minutos de filme — era na realidade uma reação extremamente crítica aos filmes baratos, mal escritos, dirigidos negligentemente e sem imaginação aos quais era constantemente exposto. Para cada Chaplin ou Eisenstein, para cada René Clair ou Jean Renoir havia uma centena de diretores medíocres, mas eram eles que infelizmente mantinham o mercado ativo e rentável. Uma das anotações de Saint-Ex mais ríspidas no pequeno caderno de notas com capa de couro que criara o hábito de sempre carregar no bolso para anotar ideias que lhe ocorriam, dizia: “Assim nos filmes, a partir da mais deliciosa argila no mundo” — era sua forma de falar do corpo feminino — “nasce a estrela vazia e incrivelmente estúpida. Um animal tão vazio que duvido alguma coisa aborrecê-la. . . “

TRADUÇÃO VIRGILIO FREIRE


Nenhum comentário:

Postar um comentário