terça-feira, 20 de junho de 2017

TERRA DOS HOMENS - 10

  II

            Guillaumet, eu direi alguma coisa sobre você. Mas não o aborrecerei insistindo sobre sua coragem e seu valor profissional. É outra coisa que eu quero contar narrando a mais bela de suas aventuras.

            Há uma qualidade que não tem nome. Talvez seja "gravidade", mas a palavra não satisfaz. Porque essa qualidade pode existir junto à mais sorridente alegria. É a qualidade do carpinteiro que se planta diante de seu pedaço de madeira e o apalpa e o mede, e, longe de tratá-lo às pressas, reúne todas as suas virtudes para trabalhá-lo.

            Li há muito tempo, Guillaumet, uma narrativa onde se celebrava a sua aventura e tenho uma velha vontade de corrigir aquela imagem infiel Ali você aparecia com frases de Gavroche, como se a coragem consistisse em descer a essas piadas de colegial ante os mais sérios perigos ou na hora da morte. Isso é não conhecer você, Guillaumet. Você não sente a necessidade de ridicularizar seus adversários antes de enfrentá-los. Perante uma dura tempestade, você julga: “Eis uma dura tempestade." Você a aceita, você a mede.

            Trago-lhe aqui, Guillaumet, o testemunho de minhas lembranças.

            Já se haviam passado cinquenta horas que você desaparecera numa travessia dos Andes, durante o inverno. Voltando do fundo da Patagônia, fui ao encontro do piloto Deley, em Mendoza. E nós dois, durante cinco dias, esquadrinhamos aquela confusão de montanhas, sem descobrir coisa alguma. Nossos dois aparelhos não bastavam. Parecia-nos que cem esquadrilhas, navegando cem anos, não acabariam de explorar aquele enorme maciço cujos picos se erguiam até sete mil metros. Havíamos perdido toda a esperança. Os próprios contrabandistas, os bandidos que lá embaixo cometem um crime por cinco francos, recusavam-se a se aventurar nos contrafortes das montanhas. “Arriscaríamos nossas vidas“, diziam eles. "Os Andes, no inverno, não devolvem os homens.“ Quando eu e Deley descemos em Santiago, os oficiais chilenos também nos aconselharam a suspender as buscas. “E inverno. Esse companheiro de vocês, se sobreviveu à queda, não sobreviveu à noite. A noite, lá em cima, quando passa sobre o homem, transforma-o em gelo.“ E quando eu novamente me infiltrava entre os muros e os pilares gigantescos dos Andes, já sentia que não estava mais procurando você: velava o seu corpo, em silêncio, numa catedral de neve.

            Afinal, depois de sete dias, quando eu almoçava, no intervalo de dois voos, num restaurante de Mendoza, um homem empurrou a porta e gritou... oh, apenas isto:

            — Guillaumet... vivo!

            E todos os desconhecidos que ali estavam se abraçaram.

            Dez minutos mais tarde eu partia com dois mecânicos, Lefebvre e Abri. Quarenta minutos depois, descia ao longo de uma estrada, tendo reconhecido, não sei como, o carro que o conduzia para não sei onde, nos lados de São Rafael Foi um belo encontro: choramos todos e esmagamos você em nossos abraços, vivo, ressuscitado, autor de seu próprio milagre. Foi então que você exprimiu, na sua primeira frase inteligível, um admirável orgulho da espécie: "O que eu fiz, palavra que nenhum bicho, só um homem, era capaz de fazer."

            Mas tarde você nos contou o desastre.

            Uma tempestade despejava cinco metros de espessura de neve, em 48 horas, na vertente chilena dos Andes, entupindo o céu inteiro. Os americanos da Pan-Air haviam feito meia-volta, mas você decolou à procura de um rasgão no céu. Descobriu um pouco mais ao sul essa armadilha. Então, a 6.500 metros, dominando as nuvens que só se elevavam a seis mil, e através das quais só varavam os picos mais altos, você apontou a proa para a Argentina.

            As correntes de ar descendentes dão às vezes ao piloto uma estranha sensação de mal-estar. O motor roda bem, mas o avião desce. O piloto o empina para retomar altitude, o avião perde a velocidade e oscila, fraco: desce mais. O homem volta atrás, com medo de haver empinado muito, e se deixa derivar para a direita ou a esquerda, procurando chegar-se a um pico favorável, que receba os ventos como um trampolim — e o avião desce mais. É o céu inteiro que parece vir abaixo. O homem sente-se então envolvido em uma espécie de acidente cósmico. Não há mais refúgio. Tenta em vão fazer meia-volta para chegar outra vez lá atrás, às zonas em que o ar sustentava o aparelho, sólido e cheio como um pilar. Mas não há mais pilares. Tudo se decompõe. E o avião desce, no meio da desordem universal, para a nuvem que sobe molemente, que se eleva até ele e o absorve.

            “Eu quase tinha me despedaçado em um canto de montanha", dizia-nos você, “mas ainda não me desesperara. A gente encontra correntes descendentes em cima de nuvens que parecem estáveis pela simples razão de que na mesma altitude elas se recompõem indefinidamente. Tudo é tão estranho no alto das montanhas...”.

            E que nuvens!

            "Naquela situação, larguei o comando e agarrei-me à cadeira para não ser lançado fora. As sacudidas eram tão fortes que as correias me feriam os ombros e estavam a ponto de rebentar. Além disso, o turbilhão de neve me privara de todo o horizonte instrumental, e o aparelho rolou, de seis mil a 3.500 metros, como se fosse um chapéu.

            "Ai, a 3.500 metros, vi uma grande massa negra, horizontal, que me permitiu restaurar a posição do aparelho no ar. Era uma lagoa que reconheci: a laguna Diamante. Sabia que ela estava encravada no fundo de um precipício, junto ao vulcão Maipu, que se eleva a 6.900 metros. Embora libertado da nuvem, eu voava quase às cegas no espesso turbilhão de neve e não podia descer sem me chocar contra uma das montanhas que rodeavam o lago. Comecei a fazer voltas sobre a lagoa, a trinta metros de altura, até a pane de gasolina. Depois de duas horas de manobra, desci e capotei. Quando saltava do avião, a tempestade me lançou ao solo. Firmei-me novamente nos pés e ela me virou outra vez. Tive de me meter sob a carlinga e cavar um abrigo na neve. Naquele buraco, cerquei-me de sacos postais e, durante quarenta horas, esperei.

            “Depois disso, quando a tempestade amainou, comecei a andar. Andei cinco dias e quatro noites.”

            Mas, que restava de você, Guillaumet? Nós o encontramos bem, mas calcinado, encarquilhado, recurvo como se fosse uma velha. Naquela tarde mesmo, eu o levei de avião para Mendoza, onde os lençóis brancos envolveram seu corpo como um bálsamo. Mas eles não curavam seu corpo. Seu corpo, extenuado, era uma carcaça que você virava e revirava sem conseguir alojá-la no sono. Seu corpo não esquecia os rochedos e as neves. Eles o haviam marcado. Reparei em sua cara escura, tumefacta como uma fruta quase podre que houvesse recebido pauladas. Você estava ali, tão feio e com um ar de miséria, tendo perdido o uso de seus belos instrumentos de trabalho. As mãos continuavam dormentes, e quando, para respirar, você se sentava na cama, os pés gelados pendiam como dois pesos mortos. E nem ao menos havia terminado a viagem; ofegava ainda, arquejante. Quando se virava no travesseiro em procura de um pouco de paz, vinha uma procissão de imagens impossível de afastar. Uma procissão que estava impaciente para seguir e logo se punha a caminhar em seu cérebro. Desfilava. E você recomeçava vinte vezes o combate contra os inimigos, que ressuscitavam das cinzas.

            Eu lhe dava remédios sobre remédios:

            — Vamos, rapaz, beba!

            O que mais me espantou... você sabe...

            Pugilista vitorioso, mas bem marcado pelos grandes golpes recebidos, você revivia sua estranha aventura, libertava-se dela aos poucos, em frases soltas. E eu o via, ao longo de sua narrativa noturna, andando, sem um bastão, sem víveres, escalando gargantas de 4.500 metros ou progredindo ao longo de paredes verticais, sangrando os pés, os joelhos, as mãos, sob quarenta graus de frio. Exaurido pouco a pouco de seu sangue, de suas forças, de sua razão, avançava com uma teimosia de formiga, voltando sobre os passos para contornar um obstáculo, erguendo-se depois das quedas, subindo escarpas que iam terminar no abismo, sem se permitir nenhum repouso, porque não poderia se erguer, depois, de seu leito de neve.

            Quando escorregava, precisava se levantar depressa, para não ser transformado em pedra. O frio o petrificava de segundo a segundo. Se quisesse gozar, depois de um tombo, um minuto de repouso a mais, quando tentasse se erguer só encontraria músculos mortos.

            Era preciso resistir às tentações: "Na neve”, dizia-me você, "a gente perde todo o instinto de conservação. Depois de dois, três, quatro dias de marcha, tudo o que se deseja é o sono. Eu o desejava. Mas ao mesmo tempo pensava: 'minha mulher... se ela crê que estou vivo, ela crê que estou andando. Os companheiros creem que estou andando. Serei um covarde se não continuar andando.”'

            E andava. Cada dia alargava um pouco mais, com a ponta do canivete, um corte na costura da botina, para que os pés gelados, inchados, ainda pudessem caber ali dentro.

            Recebi esta sua estranha confidência:

            "Do segundo dia em diante, meu trabalho maior foi procurar não pensar. Sofria demais, minha situação era desesperada demais. Para ter a coragem de andar, precisava não pensar nisso. Desgraçadamente, controlava mal o cérebro: ele trabalhava como uma turbina. Mas eu ainda podia escolher as suas imagens. Fazia-o pensar em um livro, em um filme. E o filme e o livro desfilavam dentro de mim depressa: voltava à realidade da situação presente. Irremediavelmente. Então eu jogava ao meu cérebro outras recordações para que ele fosse se entretendo...”

            Uma vez, porém, tendo escorregado e caído de bruços na neve, você renunciou a erguer-se. Era como um pugilista de quem um murro mais forte exauriu toda a paixão da luta. E que ouve os segundos caírem, um a um, num mundo estranho, até o décimo, que é sem remédio.

            “Fiz o que pude e não tenho mais esperança; por que me obstinar no martírio?” Bastava fechar os olhos para fazer a paz no mundo. Para retirar do mundo os rochedos, o gelo, a neve. Logo que as pálpebras milagrosas se fechassem, já não haveria mais os golpes, nem os tombos, nem os músculos doridos, nem o gelo ardente, nem esse peso da vida quando a marcha de um homem é como a marcha de um boi e quando o peso da vida é mais pesado que um carro. Você já gozava aquele frio que era veneno, aquele frio que era morfina enchendo o corpo de beatitude. Sua vida refugiava-se em tomo do coração. Alguma coisa de precioso e doce encolhia-se no centro de seu ser. A consciência pouco a pouco abandonava as regiões longínquas daquele corpo, daquela pobre besta esgotada pelas dores que já começava a participar da indiferença do mármore.

E mesmo os seus escrúpulos já se aquietavam. Nossos apelos não o atingiam mais, ou melhor, chegavam transformados em apelos de sonho. E você respondia feliz, andando em sonhos, em grandes passos fáceis que lhe abriam sem esforço as delicias da planície. Com que facilidade você andava agora em um mundo cheio de ternura! Avaramente, Guillaumet, você nos recusava a sua volta.

Os remorsos vieram dos subterrâneos da consciência. Ao sonho misturaram-se de repente detalhes precisos. “Pensei em minha mulher. Minha apólice de seguro de vida lhe evitaria a miséria. Sim, mas o seguro..."

No caso de desaparecimento, a morte legal só é declarada depois de quatro anos. Esse detalhe lhe apareceu nítido, apagando todas as outras imagens. Seu corpo estava estendido ali, de bruços, em um forte declive, na neve. Quando viesse o verão, ele rolaria, com a lama, para um dos mil precipícios dos Andes. Você o sabia. Sabia também que um rochedo emergia das neves cinquenta metros à sua frente. "Aí eu pensei: se me levantar, poderei chegar até lá. Se escorar bem o meu corpo na pedra, ele será descoberto quando vier o verão...”

Uma vez de pé, andou duas noites e três dias.

             Mas não pensava em ir muito longe:

            “Muitos sinais me anunciavam o fim. Por exemplo, era obrigado a parar de duas em duas horas para abrir um pouco mais minhas botinas, esfregar neve nos pés que inchavam ou simplesmente dar um pequeno descanso ao coração. Nos últimos dias, comecei a perder a memória. Muito tempo depois de recomeçar a marcha é que me lembrava: havia esquecido alguma coisa. Da primeira vez foi uma luva, e isso era grave, com o frio que me gelava as mãos. Eu a havia deixado no chão, ao meu lado, e seguiria caminho sem apanhá-la. Depois foi o relógio. Depois o canivete. Depois a bússola. Em cada parada eu me empobrecia...

            O que salva é dar um passo. Mais um passo. É sempre o mesmo passo que se recomeça...“

            “O que eu fiz., palavra que nenhum bicho, só um homem, era capaz de fazer..."

            Essa frase, a mais nobre que conheço, essa frase que situa o homem, que o honra, que restaura as hierarquias verdadeiras, me voltava à memória. Você dormia ainda; a consciência estava abolida, mas iria renascer, no momento de despertar, naquele corpo desmantelado, moído, torturado, para dominá-lo de novo. O corpo, então, não é mais que um belo instrumento, não é mais que um belo servidor. E você sabia exprimir também, Guillaumet, esse orgulho do bom instrumento:

            “Você compreende, sem alimento, depois de três dias de marcha, meu coração não devia estar batendo com muita força... Pois em certo momento, quando eu progredia ao longo de uma encosta vertical, cavando buracos para enfiar as mãos, o coração me caiu em pane... Hesitou, deu mais uma batida... Uma batida estranha... Senti que se ele hesitasse um segundo mais seria o fim. Fiquei imóvel, escutando... Nunca — está ouvindo? — nunca, num avião, me senti tão preso ao ruído do motor como, naquele momento, às batidas do meu próprio coração. E eu lhe dizia: Vamos, força! Veja se bate mais... garanto-lhe que é um coração de boa qualidade. Hesitava, mas depois recomeçava, sempre... Se você soubesse como tive orgulho de meu coração!”

            Naquele quarto de Mendoza em que passei a noite, você adormeceu afinal — um sono de esgotamento. E eu pensava: se alguém falar a Guillaumet de sua coragem, ele dará de ombros. Mas seria traí-lo também celebrar sua modéstia. Ele está muito além dessa qualidade medíocre. Se dá de ombros é por sabedoria. Sabe que uma vez no centro do perigo os homens não se horrorizam mais. Só o desconhecido espanta os homens. Mas para quem o enfrenta, ele cessa de ser o desconhecido. Sobretudo se é olhado com essa gravidade lúcida. A coragem de Guillaumet é, antes de tudo, um efeito de sua probidade.

            Sua verdadeira qualidade não é essa. Sua grandeza é a de sentir-se responsável. Responsável por si, pelo seu avião, pelos companheiros que o esperam. Ele tem nas mãos a tristeza ou a alegria desses companheiros. Responsável pelo que se constrói de novo, lá, entre os vivos, construção de que ele deve participar. Responsável um pouco pelo destino dos homens, na medida de seu trabalho.

            Um desses seres amplos que aceitam o destino de cobrir largos horizontes com suas folhagens. Ser homem é precisamente ser responsável. E experimentar vergonha em face de uma miséria que não parece depender de si. É ter orgulho de uma vitória dos companheiros. É sentir, colocando a sua pedra, que contribui para construir o mundo.

            Querem confundir homens assim com os toureiros e os jogadores. Gaba-se o seu desprezo da morte. Mas eu dou bem pequena importância ao desprezo da morte. Se ele não tem suas raízes em uma responsabilidade aceita é apenas sinal de pobreza ou excesso de mocidade. Conheci um suicida moço. Não sei mais que desgosto amoroso o levou a colocar cuidadosamente uma bala no coração. Não sei a que tentação literária cedeu calçando suas mãos de luvas brancas. Mas eu me lembro de ter sentido em face daquele triste espetáculo uma impressão que não era de nobreza, mas de miséria. Ali, atrás daquele rosto amável, sob aquele crânio de homem, não havia existido nada. Apenas a imagem de alguma tola mocinha igual às outras.

            Pensando nesse destino magro, eu me recordo também de uma verdadeira morte de homem. A morte de um jardineiro, que me dizia: "Você sabe, às vezes, trabalhando, com a enxada nas mãos, eu suava. Minha perna doía com o reumatismo, e eu praguejava contra aquela escravidão. Pois olhe, hoje eu queria estar com a enxada nas mãos, trabalhando, trabalhando... Trabalhar com a enxada hoje me parece uma coisa bonita! A gente se sente tão bem, tão livre, quando está trabalhando a terra! E além disso, quem é que vai cuidar de minhas árvores agora?" Ele deixava uma terra a cultivar. Deixava um planeta a cultivar. Estava ligado pelo amor a todas as terras e a todas as árvores da terra. Era ele o generoso, o pródigo, o Grande Senhor! Era ele, como Guillaumet, o homem corajoso quando lutava, em nome de sua Criação, contra a morte.

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