II
Guillaumet,
eu direi alguma coisa sobre você. Mas não o aborrecerei insistindo sobre sua
coragem e seu valor profissional. É outra coisa que eu quero contar narrando a
mais bela de suas aventuras.
Há
uma qualidade que não tem nome. Talvez seja "gravidade", mas a
palavra não satisfaz. Porque essa qualidade pode existir junto à mais
sorridente alegria. É a qualidade do carpinteiro que se planta diante de seu
pedaço de madeira e o apalpa e o mede, e, longe de tratá-lo às pressas, reúne todas
as suas virtudes para trabalhá-lo.
Li
há muito tempo, Guillaumet, uma narrativa onde se celebrava a sua aventura e
tenho uma velha vontade de corrigir aquela imagem infiel Ali você aparecia com
frases de Gavroche, como se a coragem consistisse em descer a essas piadas de
colegial ante os mais sérios perigos ou na hora da morte. Isso é não conhecer
você, Guillaumet. Você não sente a necessidade de ridicularizar seus
adversários antes de enfrentá-los. Perante uma dura tempestade, você julga:
“Eis uma dura tempestade." Você a aceita, você a mede.
Trago-lhe
aqui, Guillaumet, o testemunho de minhas lembranças.
Já
se haviam passado cinquenta horas que você desaparecera numa travessia dos
Andes, durante o inverno. Voltando do fundo da Patagônia, fui ao encontro do
piloto Deley, em Mendoza. E nós dois, durante cinco dias, esquadrinhamos aquela
confusão de montanhas, sem descobrir coisa alguma. Nossos dois aparelhos não
bastavam. Parecia-nos que cem esquadrilhas, navegando cem anos, não acabariam
de explorar aquele enorme maciço cujos picos se erguiam até sete mil metros.
Havíamos perdido toda a esperança. Os próprios contrabandistas, os bandidos que
lá embaixo cometem um crime por cinco francos, recusavam-se a se aventurar nos
contrafortes das montanhas. “Arriscaríamos nossas vidas“, diziam eles. "Os
Andes, no inverno, não devolvem os homens.“ Quando eu e Deley descemos em
Santiago, os oficiais chilenos também nos aconselharam a suspender as buscas.
“E inverno. Esse companheiro de vocês, se sobreviveu à queda, não sobreviveu à
noite. A noite, lá em cima, quando passa sobre o homem, transforma-o em gelo.“
E quando eu novamente me infiltrava entre os muros e os pilares gigantescos dos
Andes, já sentia que não estava mais procurando você: velava o seu corpo, em
silêncio, numa catedral de neve.
Afinal,
depois de sete dias, quando eu almoçava, no intervalo de dois voos, num
restaurante de Mendoza, um homem empurrou a porta e gritou... oh, apenas isto:
—
Guillaumet... vivo!
E
todos os desconhecidos que ali estavam se abraçaram.
Dez
minutos mais tarde eu partia com dois mecânicos, Lefebvre e Abri. Quarenta
minutos depois, descia ao longo de uma estrada, tendo reconhecido, não sei
como, o carro que o conduzia para não sei onde, nos lados de São Rafael Foi um
belo encontro: choramos todos e esmagamos você em nossos abraços, vivo,
ressuscitado, autor de seu próprio milagre. Foi então que você exprimiu, na sua
primeira frase inteligível, um admirável orgulho da espécie: "O que eu
fiz, palavra que nenhum bicho, só um homem, era capaz de fazer."
Mas
tarde você nos contou o desastre.
Uma
tempestade despejava cinco metros de espessura de neve, em 48 horas, na
vertente chilena dos Andes, entupindo o céu inteiro. Os americanos da Pan-Air
haviam feito meia-volta, mas você decolou à procura de um rasgão no céu.
Descobriu um pouco mais ao sul essa armadilha. Então, a 6.500 metros, dominando
as nuvens que só se elevavam a seis mil, e através das quais só varavam os
picos mais altos, você apontou a proa para a Argentina.
As
correntes de ar descendentes dão às vezes ao piloto uma estranha sensação de
mal-estar. O motor roda bem, mas o avião desce. O piloto o empina para retomar
altitude, o avião perde a velocidade e oscila, fraco: desce mais. O homem volta
atrás, com medo de haver empinado muito, e se deixa derivar para a direita ou a
esquerda, procurando chegar-se a um pico favorável, que receba os ventos como
um trampolim — e o avião desce mais. É o céu inteiro que parece vir abaixo. O
homem sente-se então envolvido em uma espécie de acidente cósmico. Não há mais refúgio.
Tenta em vão fazer meia-volta para chegar outra vez lá atrás, às zonas em que o
ar sustentava o aparelho, sólido e cheio como um pilar. Mas não há mais
pilares. Tudo se decompõe. E o avião desce, no meio da desordem universal, para
a nuvem que sobe molemente, que se eleva até ele e o absorve.
“Eu
quase tinha me despedaçado em um canto de montanha", dizia-nos você, “mas
ainda não me desesperara. A gente encontra correntes descendentes em cima de nuvens
que parecem estáveis pela simples razão de que na mesma altitude elas se
recompõem indefinidamente. Tudo é tão estranho no alto das montanhas...”.
E
que nuvens!
"Naquela
situação, larguei o comando e agarrei-me à cadeira para não ser lançado fora.
As sacudidas eram tão fortes que as correias me feriam os ombros e estavam a
ponto de rebentar. Além disso, o turbilhão de neve me privara de todo o
horizonte instrumental, e o aparelho rolou, de seis mil a 3.500 metros, como se
fosse um chapéu.
"Ai,
a 3.500 metros, vi uma grande massa negra, horizontal, que me permitiu
restaurar a posição do aparelho no ar. Era uma lagoa que reconheci: a laguna
Diamante. Sabia que ela estava encravada no fundo de um precipício, junto ao
vulcão Maipu, que se eleva a 6.900 metros. Embora libertado da nuvem, eu voava
quase às cegas no espesso turbilhão de neve e não podia descer sem me chocar
contra uma das montanhas que rodeavam o lago. Comecei a fazer voltas sobre a
lagoa, a trinta metros de altura, até a pane de gasolina. Depois de duas horas
de manobra, desci e capotei. Quando saltava do avião, a tempestade me lançou ao
solo. Firmei-me novamente nos pés e ela me virou outra vez. Tive de me meter
sob a carlinga e cavar um abrigo na neve. Naquele buraco, cerquei-me de sacos
postais e, durante quarenta horas, esperei.
“Depois
disso, quando a tempestade amainou, comecei a andar. Andei cinco dias e quatro
noites.”
Mas,
que restava de você, Guillaumet? Nós o encontramos bem, mas calcinado, encarquilhado,
recurvo como se fosse uma velha. Naquela tarde mesmo, eu o levei de avião para
Mendoza, onde os lençóis brancos envolveram seu corpo como um bálsamo. Mas eles
não curavam seu corpo. Seu corpo, extenuado, era uma carcaça que você virava e revirava
sem conseguir alojá-la no sono. Seu corpo não esquecia os rochedos e as neves.
Eles o haviam marcado. Reparei em sua cara escura, tumefacta como uma fruta
quase podre que houvesse recebido pauladas. Você estava ali, tão feio e com um
ar de miséria, tendo perdido o uso de seus belos instrumentos de trabalho. As
mãos continuavam dormentes, e quando, para respirar, você se sentava na cama,
os pés gelados pendiam como dois pesos mortos. E nem ao menos havia terminado a
viagem; ofegava ainda, arquejante. Quando se virava no travesseiro em procura
de um pouco de paz, vinha uma procissão de imagens impossível de afastar. Uma
procissão que estava impaciente para seguir e logo se punha a caminhar em seu
cérebro. Desfilava. E você recomeçava vinte vezes o combate contra os inimigos,
que ressuscitavam das cinzas.
Eu
lhe dava remédios sobre remédios:
—
Vamos, rapaz, beba!
O
que mais me espantou... você sabe...
Pugilista
vitorioso, mas bem marcado pelos grandes golpes recebidos, você revivia sua
estranha aventura, libertava-se dela aos poucos, em frases soltas. E eu o via,
ao longo de sua narrativa noturna, andando, sem um bastão, sem víveres,
escalando gargantas de 4.500 metros ou progredindo ao longo de paredes
verticais, sangrando os pés, os joelhos, as mãos, sob quarenta graus de frio.
Exaurido pouco a pouco de seu sangue, de suas forças, de sua razão, avançava
com uma teimosia de formiga, voltando sobre os passos para contornar um
obstáculo, erguendo-se depois das quedas, subindo escarpas que iam terminar no
abismo, sem se permitir nenhum repouso, porque não poderia se erguer, depois,
de seu leito de neve.
Quando
escorregava, precisava se levantar depressa, para não ser transformado em
pedra. O frio o petrificava de segundo a segundo. Se quisesse gozar, depois de
um tombo, um minuto de repouso a mais, quando tentasse se erguer só encontraria
músculos mortos.
Era
preciso resistir às tentações: "Na neve”, dizia-me você, "a gente
perde todo o instinto de conservação. Depois de dois, três, quatro dias de
marcha, tudo o que se deseja é o sono. Eu o desejava. Mas ao mesmo tempo
pensava: 'minha mulher... se ela crê que estou vivo, ela crê que estou andando.
Os companheiros creem que estou andando. Serei um covarde se não continuar
andando.”'
E
andava. Cada dia alargava um pouco mais, com a ponta do canivete, um corte na
costura da botina, para que os pés gelados, inchados, ainda pudessem caber ali
dentro.
Recebi
esta sua estranha confidência:
"Do
segundo dia em diante, meu trabalho maior foi procurar não pensar. Sofria
demais, minha situação era desesperada demais. Para ter a coragem de andar,
precisava não pensar nisso. Desgraçadamente, controlava mal o cérebro: ele
trabalhava como uma turbina. Mas eu ainda podia escolher as suas imagens.
Fazia-o pensar em um livro, em um filme. E o filme e o livro desfilavam dentro
de mim depressa: voltava à realidade da situação presente. Irremediavelmente.
Então eu jogava ao meu cérebro outras recordações para que ele fosse se entretendo...”
Uma
vez, porém, tendo escorregado e caído de bruços na neve, você renunciou a
erguer-se. Era como um pugilista de quem um murro mais forte exauriu toda a
paixão da luta. E que ouve os segundos caírem, um a um, num mundo estranho, até
o décimo, que é sem remédio.
“Fiz o que pude e não tenho mais
esperança; por que me obstinar no martírio?” Bastava fechar os olhos para fazer
a paz no mundo. Para retirar do mundo os rochedos, o gelo, a neve. Logo que as
pálpebras milagrosas se fechassem, já não haveria mais os golpes, nem os
tombos, nem os músculos doridos, nem o gelo ardente, nem esse peso da vida
quando a marcha de um homem é como a marcha de um boi e quando o peso da vida é
mais pesado que um carro. Você já gozava aquele frio que era veneno, aquele
frio que era morfina enchendo o corpo de beatitude. Sua vida refugiava-se em
tomo do coração. Alguma coisa de precioso e doce encolhia-se no centro de seu
ser. A consciência pouco a pouco abandonava as regiões longínquas daquele
corpo, daquela pobre besta esgotada pelas dores que já começava a participar da
indiferença do mármore.
E
mesmo os seus escrúpulos já se aquietavam. Nossos apelos não o atingiam mais, ou
melhor, chegavam transformados em apelos de sonho. E você respondia feliz,
andando em sonhos, em grandes passos fáceis que lhe abriam sem esforço as
delicias da planície. Com que facilidade você andava agora em um mundo cheio de
ternura! Avaramente, Guillaumet, você nos recusava a sua volta.
Os
remorsos vieram dos subterrâneos da consciência. Ao sonho misturaram-se de
repente detalhes precisos. “Pensei em minha mulher. Minha apólice de seguro de
vida lhe evitaria a miséria. Sim, mas o seguro..."
No
caso de desaparecimento, a morte legal só é declarada depois de quatro anos.
Esse detalhe lhe apareceu nítido, apagando todas as outras imagens. Seu corpo
estava estendido ali, de bruços, em um forte declive, na neve. Quando viesse o
verão, ele rolaria, com a lama, para um dos mil precipícios dos Andes. Você o
sabia. Sabia também que um rochedo emergia das neves cinquenta metros à sua
frente. "Aí eu pensei: se me levantar, poderei chegar até lá. Se escorar
bem o meu corpo na pedra, ele será descoberto quando vier o verão...”
Uma
vez de pé, andou duas noites e três dias.
Mas não pensava em ir muito longe:
“Muitos
sinais me anunciavam o fim. Por exemplo, era obrigado a parar de duas em duas
horas para abrir um pouco mais minhas botinas, esfregar neve nos pés que
inchavam ou simplesmente dar um pequeno descanso ao coração. Nos últimos dias,
comecei a perder a memória. Muito tempo depois de recomeçar a marcha é que me lembrava:
havia esquecido alguma coisa. Da primeira vez foi uma luva, e isso era grave,
com o frio que me gelava as mãos. Eu a havia deixado no chão, ao meu lado, e seguiria
caminho sem apanhá-la. Depois foi o relógio. Depois o canivete. Depois a
bússola. Em cada parada eu me empobrecia...
O
que salva é dar um passo. Mais um passo. É sempre o mesmo passo que se
recomeça...“
“O
que eu fiz., palavra que nenhum bicho, só um homem, era capaz de fazer..."
Essa
frase, a mais nobre que conheço, essa frase que situa o homem, que o honra, que
restaura as hierarquias verdadeiras, me voltava à memória. Você dormia ainda; a
consciência estava abolida, mas iria renascer, no momento de despertar, naquele
corpo desmantelado, moído, torturado, para dominá-lo de novo. O corpo, então,
não é mais que um belo instrumento, não é mais que um belo servidor. E você
sabia exprimir também, Guillaumet, esse orgulho do bom instrumento:
“Você
compreende, sem alimento, depois de três dias de marcha, meu coração não devia
estar batendo com muita força... Pois em certo momento, quando eu progredia ao
longo de uma encosta vertical, cavando buracos para enfiar as mãos, o coração me
caiu em pane... Hesitou, deu mais uma batida... Uma batida estranha... Senti
que se ele hesitasse um segundo mais seria o fim. Fiquei imóvel, escutando...
Nunca — está ouvindo? — nunca, num avião, me senti tão preso ao ruído do motor
como, naquele momento, às batidas do meu próprio coração. E eu lhe dizia:
Vamos, força! Veja se bate mais... garanto-lhe que é um coração de boa
qualidade. Hesitava, mas depois recomeçava, sempre... Se você soubesse como
tive orgulho de meu coração!”
Naquele
quarto de Mendoza em que passei a noite, você adormeceu afinal — um sono de
esgotamento. E eu pensava: se alguém falar a Guillaumet de sua coragem, ele
dará de ombros. Mas seria traí-lo também celebrar sua modéstia. Ele está muito
além dessa qualidade medíocre. Se dá de ombros é por sabedoria. Sabe que uma
vez no centro do perigo os homens não se horrorizam mais. Só o desconhecido
espanta os homens. Mas para quem o enfrenta, ele cessa de ser o desconhecido.
Sobretudo se é olhado com essa gravidade lúcida. A coragem de Guillaumet é,
antes de tudo, um efeito de sua probidade.
Sua
verdadeira qualidade não é essa. Sua grandeza é a de sentir-se responsável.
Responsável por si, pelo seu avião, pelos companheiros que o esperam. Ele tem
nas mãos a tristeza ou a alegria desses companheiros. Responsável pelo que se
constrói de novo, lá, entre os vivos, construção de que ele deve participar.
Responsável um pouco pelo destino dos homens, na medida de seu trabalho.
Um
desses seres amplos que aceitam o destino de cobrir largos horizontes com suas
folhagens. Ser homem é precisamente ser responsável. E experimentar vergonha em
face de uma miséria que não parece depender de si. É ter orgulho de uma vitória
dos companheiros. É sentir, colocando a sua pedra, que contribui para construir
o mundo.
Querem
confundir homens assim com os toureiros e os jogadores. Gaba-se o seu desprezo
da morte. Mas eu dou bem pequena importância ao desprezo da morte. Se ele não
tem suas raízes em uma responsabilidade aceita é apenas sinal de pobreza ou
excesso de mocidade. Conheci um suicida moço. Não sei mais que desgosto amoroso
o levou a colocar cuidadosamente uma bala no coração. Não sei a que tentação
literária cedeu calçando suas mãos de luvas brancas. Mas eu me lembro de ter
sentido em face daquele triste espetáculo uma impressão que não era de nobreza,
mas de miséria. Ali, atrás daquele rosto amável, sob aquele crânio de homem,
não havia existido nada. Apenas a imagem de alguma tola mocinha igual às
outras.
Pensando
nesse destino magro, eu me recordo também de uma verdadeira morte de homem. A
morte de um jardineiro, que me dizia: "Você sabe, às vezes, trabalhando,
com a enxada nas mãos, eu suava. Minha perna doía com o reumatismo, e eu
praguejava contra aquela escravidão. Pois olhe, hoje eu queria estar com a
enxada nas mãos, trabalhando, trabalhando... Trabalhar com a enxada hoje me parece
uma coisa bonita! A gente se sente tão bem, tão livre, quando está trabalhando
a terra! E além disso, quem é que vai cuidar de minhas árvores agora?" Ele
deixava uma terra a cultivar. Deixava um planeta a cultivar. Estava ligado pelo
amor a todas as terras e a todas as árvores da terra. Era ele o generoso, o
pródigo, o Grande Senhor! Era ele, como Guillaumet, o homem corajoso quando
lutava, em nome de sua Criação, contra a morte.
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