terça-feira, 27 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 63


            Lewis Galantière, tradutor de Jean Cocteau, Paul Valéry e François Mauriac, frisou que Saint-Exupéry nunca escrevia sem angústia e que destruía mais texto do que guardava. E, como Jean Renoir pôde comprovar, não tinha nenhum escrúpulo em compartilhar com os amigos as suas angústias de criador. É provável que Piloto de Guerra nunca tivesse sido concluído sem a tolerância e o senso de humor de Renoir.

            Filho do pintor impressionista e realizador de filmes, entre os quais A Grande Ilusão, Renoir convidou Saint-Exupéry a visitá-lo em Hollywood, em julho de 1941. No entanto, já sofrera o que denominava de tormento do gravador, pois após a compra desse aparelho Saint-Exupéry passou a utilizá-lo para completar sua correspondência já prolífica e satisfazer sua necessidade doentia de comunicação.

            “Em vez de me escrever uma carta, ele enviava um grande pacote contendo fitas”, contava Renoir. “Eram fitas que ele mesmo gravara e onde ele falava de tudo: dos nossos projetos, dos seus livros, das suas ocupações do momento... Frequentemente a fita mudava de tom e terminava com um truque de baralho. O problema é que ele ligava à noite para saber a resposta, quando nós ainda não tínhamos tido tempo de ouvir a gravação. Por isso, a chegada de um de seus pacotes representava um verdadeiro tormento para nós, pensando no próximo telefonema.”

            O gravador não deixou de fazer estragos mesmo quando Saint- Exupéry instalou-se na casa dos Renoir a fim de terminar Piloto de Guerra, sem informar a seus editores franceses e americanos que o trabalho estava progredindo. “Seus bolsos sempre estavam cheios de pedaços de papel nos quais traçava linhas e linhas com patas de mosca, ou desenhava silhuetas que seriam reencontradas em O Pequeno Príncipe”, conta Renoir. “À noite, ele pegava esses papéis e os lia diante do gravador. E fazia isso a noite toda. Nós o ouvíamos claramente e não conseguíamos dormir.”

Saint-Exupéry e Jean Renoir, em Hollywood
            Renoir considerava Saint-Exupéry um personagem cheio de charme e sedução, mas nem por isso deixava de ser um hóspede terrível. Eles se encontravam raramente, exceto no café da manhã, quando Renoir tentava convencer Saint-Exupéry a dedicar um pouco mais de tempo à secretária que vinha de manhã, quando ele ia dormir, e partia antes que ele acordasse, à tardinha. Ela passava o dia inteiro datilografando o manuscrito gravado, inclusive o projeto de roteiro para Terra dos Homens. Às vezes ela começava a chorar porque não conseguia encontrar Antoine para lhe pedir explicações.

            As preocupações de Jean Renoir continuaram quando Saint-Exupéry esteve internado no hospital. Ele ligava constantemente para pedir que o diretor ou sua esposa lhe traduzissem os diagnósticos dos médicos, ou para transmitir suas queixas ao pessoal do hospital. Uma das vezes ele exigiu que as cenouras fossem retiradas de seu cardápio, alegando que sua cor o entristecia.

            Saint-Exupéry também foi hóspede de Pierre Lazareff, proprietário do jornal Paris-Soir, na época exilado em Hollywood. Ele demonstrava infinita indulgência para extravagâncias que já tivera a oportunidade de suportar em Paris. “Cada vez que Antoine entregava um artigo para o Paris-Soir, sua publicação era um verdadeiro suplício”, contou Lazareff, alguns anos mais tarde. “Não era possível livrar-se dele. Ele ficava na sala de redação até a meia-noite para mudar a ordem das frases, retirar uma palavra ou uma vírgula, e desorganizava o trabalho de todo o mundo.”

            O porteiro do Paris-Soir tinha recebido a ordem de proibir sua entrada, porém Saint-Exupéry trazia garrafas de vinho para suborná-lo! Em sua pressa para concluir Piloto de Guerra encontrou um novo aliado ao regressar a Nova York, em novembro de 1941, na pessoa de Jean-Gérard Fleury, jornalista especializado em aviação, amigo desde a época da Aéropostale. Ao reencontrá-lo, o escritor passou horas a fio lembrando os primeiros voos na África ou na América do Norte, recordando o calor, a coragem e a camaradagem dos pilotos, e confessando a falta que Guillaumet lhe fazia.

            Fleury partilhou a vida trepidante de Saint-Exupéry nos seis meses seguintes, período do qual restam recordações de jantares em companhia de Jean Gabin e Marlène Dietrich no ateliê de Bernard Lamotte, e horas passadas a escutar a 40a sinfonia de Mozart ou a olhar Antoine experimentar, em sua banheira, novos sistemas de propulsão em miniaturas.

            Fleury também estava preparando um livro na época, porém nem por isso livrou-se da “corveia do romance”. Além de telefonar-lhe diversas vezes de madrugada, uma noite Saint-Exupéry acordou-o e mandou-o pegar um táxi, pouco depois da meia-noite, porque tinha de falar com ele imediatamente. Ele precisava da opinião de Fleury sobre um capítulo de Piloto de Guerra. Apesar da opinião entusiasta do jornalista, Antoine decidiu reescrever o trecho, e seu amigo teve de esperar até as 5 da manhã para escutar a nova versão. Fleury foi substituído pouco depois por Lewis Galantière, que passou a ser acordado por telefonemas no meio da noite cada vez que Saint-Exupéry sentia necessidade de modificar seu texto antes da tradução. “Aquele escritor genial estava convencido de que não sabia escrever”, frisou Galantière. “Tinha que ser constantemente tranquilizado pelos amigos.”

            Dois acontecimentos contribuíram para persuadir Saint-Exupéry a entregar seu manuscrito, apesar de suas reticências e da convicção de que sua alquimia não tivera tempo de funcionar, como diria aos colegas do 2/33. Em primeiro lugar, em 7 de dezembro de 1941, o bombardeio de Pearl Harbor empurrou os americanos à guerra, o que correspondia às esperanças de Saint-Exupéry. Urgia publicar um livro sobre as reais condições do combate.

            O segundo acontecimento demonstrou a longo prazo ser mais importante no plano literário. Em novembro de 1941, Consuelo chegou a Nova York. Sua presença acelerou o processo final que dará origem a O Pequeno Príncipe. Em 1942, Saint-Exupéry começou a ter aulas particulares de inglês, sinal de que estava perdendo pouco a pouco a esperança de retornar ao serviço ativo. Estava considerando a possibilidade de ter de permanecer nos Estados Unidos até o final da guerra. Sua idade e persistente má saúde faziam com que esta última perspectiva parecesse provável. Também não lhe era fácil abandonar o prestígio e o conforto, agradáveis consequências de seu sucesso literário. Por outro lado, o fato de não aceitar se submeter à autoridade de Charles de Gaulle eliminava todas as chances de servir na RAF. Para os americanos tornara-se o mais famoso dos escritores franceses refugiados nos Estados Unidos. Apesar de sua reticência em trabalhar para a propaganda de guerra, ele contribuía amplamente através de seus escritos, conferências e entrevistas.

            A chegada de Consuelo, num navio procedente de Marselle, obrigou-o a considerações mais pessoais. Seu desejo de cuidar de Consuelo, apesar das incompatibilidades, foi um prelúdio de suas reflexões sobre a responsabilidade com sua rosa em O Pequeno Príncipe. Durante os meses seguintes, seu relacionamento parecia o de um pai ansioso e superprotetor com uma criança indócil, embora Consuelo já tivesse quase 40 anos.

            Nem a guerra nem a separação tinham conseguido frear sua exuberante personalidade. Antes de se ligar a uma comunidade de artistas no pequeno povoado provençal de Oppède, Consuelo gastara a maior parte de suas economias no Martinez, o mais luxuoso hotel de Cannes, tratando de sua asma.

            Esqueceu rapidamente o curto período de privações na colônia de artistas, quando Antoine enviou-lhe dinheiro para renovar o guarda-roupa e uma autorização para morar nos Estados Unidos. Quando desembarcou em Hoboken, no estado de Nova York, ela desmoronava sob o peso da bagagem, e explicou a Antoine que havia outro tanto no porão do navio. Saint-Exupéry não possuía carro em Nova York, e tinha pedido que Fleury o levasse até o porto, sem lhe dizer que iam buscar Consuelo. Fleury ficou fascinado pelo fluxo incessante de sua conversa, seu olhar brilhante, o sotaque sul-americano e os gestos expressivos com os quais ela relatava suas aventuras em Oppède e sua infância em El Salvador.

            Mas foi justamente essa volubilidade que fez Saint-Exupéry tomar a decisão de continuarem a viver separados. Em vez de levá-la para sua casa, instalou-a num apartamento vizinho, onde ela logo recriou o ambiente de sua vida artística parisiense. André Breton era um de seus visitantes mais assíduos, e Saint-Exupéry mantinha com ele uma interminável polêmica político-literária. Salvador Dali e Joan Miró também eram frequentadores habituais.

            A confusão permanente que reinava na Place Vauban voltou com a volúvel Consuelo irrompendo intempestivamente no escritório do marido, como nos belos dias lembrados por Henri Jeanson. Os amigos de Antoine ficavam maravilhados com sua paciência, mesmo quando dissimulava com dificuldade sua irritação.

            Henri Claudel, uma das personalidades gaullistas de Nova York, lembra-se do dia em que ele e sua esposa foram apresentados a Consuelo. Ele ouviu Antoine suplicando: “Não aborreça estas pessoas, por favor. Gosto muito delas”. A única vez que Claudel assistiu a uma briga de Saint-Exupéry com ela foi no dia em que Consuelo revelou os segredos de um truque de baralho. Mas se as anotações e cartas de Saint-Exupéry na época refletem fielmente seus sentimentos, elas revelam um contínuo clima de crise, de decepção e frustração entre o casal. Ele menciona constantemente sua inquietação com as ausências da mulher ou com sua incapacidade de manter os compromissos com ele, embora ela morasse a poucos metros de sua casa.

            As brigas que tinham perturbado sua vida conjugal no passado tornaram-se cada vez piores. Consuelo acusava Antoine de ser um carcereiro. Ele replicava que a tensão psicológica e a ansiedade que sentia enquanto a esperava voltar de madrugada esvaziavam-no de qualquer inspiração, e que ficava “dias e mais dias totalmente estéril, com a impressão de eternidade”.

            Além do mais, suas prodigalidades começaram a ser novamente fonte de preocupação financeira para Antoine, que, no final de 1942, receava ficar sem dinheiro para suas despesas pessoais.

            É impossível, porém, já que o conjunto de sua correspondência com a esposa não foi publicado, saber se a angústia e as críticas eram consequências da personalidade versátil de Antoine ou da irritação causada pelo estilo de vida excêntrico de sua esposa. Inegavelmente, ele estava cada vez mais sujeito a mudanças de humor.

             A correta observação de Léon Werth, segundo a qual Saint- Exupéry abandonava a alegria no meio do caminho e submergia na melancolia, foi confirmada por numerosos amigos. As dificuldades do exílio agravaram essa instabilidade de temperamento. Bernard Valiquette, seu editor canadense, escreveu no Le Nouveau Journal de Quebec, em 1962, que a imagem mais duradoura que guardara do escritor fora essa imprevisibilidade.


            “Ele passava da alegria mais ruidosa, da felicidade mais louca ao mais completo mutismo”, acrescenta ele. “Era de uma verborragia extraordinária. Mas podia isolar-se completamente no meio do grupo para refletir tristemente sobre as crianças assassinadas, as mães separadas de seus filhos e os horrores da guerra.”



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