Lewis Galantière, tradutor de Jean
Cocteau, Paul Valéry e François Mauriac, frisou que Saint-Exupéry nunca
escrevia sem angústia e que destruía mais texto do que guardava. E, como Jean
Renoir pôde comprovar, não tinha nenhum escrúpulo em compartilhar com os amigos
as suas angústias de criador. É provável que Piloto de Guerra nunca tivesse sido concluído sem a tolerância e o
senso de humor de Renoir.
Filho do pintor impressionista e
realizador de filmes, entre os quais A Grande Ilusão, Renoir convidou
Saint-Exupéry a visitá-lo em Hollywood, em julho de 1941. No entanto, já
sofrera o que denominava de tormento do gravador, pois após a compra desse aparelho
Saint-Exupéry passou a utilizá-lo para completar sua correspondência já
prolífica e satisfazer sua necessidade doentia de comunicação.
“Em vez de me escrever uma carta,
ele enviava um grande pacote contendo fitas”, contava Renoir. “Eram fitas que
ele mesmo gravara e onde ele falava de tudo: dos nossos projetos, dos seus
livros, das suas ocupações do momento... Frequentemente a fita mudava de tom e
terminava com um truque de baralho. O problema é que ele ligava à noite para
saber a resposta, quando nós ainda não tínhamos tido tempo de ouvir a gravação.
Por isso, a chegada de um de seus pacotes representava um verdadeiro tormento
para nós, pensando no próximo telefonema.”
O gravador não deixou de fazer
estragos mesmo quando Saint- Exupéry instalou-se na casa dos Renoir a fim de
terminar Piloto de Guerra, sem
informar a seus editores franceses e americanos que o trabalho estava
progredindo. “Seus bolsos sempre estavam cheios de pedaços de papel nos quais
traçava linhas e linhas com patas de mosca, ou desenhava silhuetas que seriam
reencontradas em O Pequeno Príncipe”, conta Renoir. “À noite, ele pegava esses
papéis e os lia diante do gravador. E fazia isso a noite toda. Nós o ouvíamos
claramente e não conseguíamos dormir.”
Saint-Exupéry e Jean Renoir, em Hollywood |
As preocupações de Jean Renoir
continuaram quando Saint-Exupéry esteve internado no hospital. Ele ligava
constantemente para pedir que o diretor ou sua esposa lhe traduzissem os
diagnósticos dos médicos, ou para transmitir suas queixas ao pessoal do
hospital. Uma das vezes ele exigiu que as cenouras fossem retiradas de seu
cardápio, alegando que sua cor o entristecia.
Saint-Exupéry também foi hóspede de
Pierre Lazareff, proprietário do jornal Paris-Soir,
na época exilado em Hollywood. Ele demonstrava infinita indulgência para
extravagâncias que já tivera a oportunidade de suportar em Paris. “Cada vez que
Antoine entregava um artigo para o Paris-Soir, sua publicação era um verdadeiro
suplício”, contou Lazareff, alguns anos mais tarde. “Não era possível livrar-se
dele. Ele ficava na sala de redação até a meia-noite para mudar a ordem das
frases, retirar uma palavra ou uma vírgula, e desorganizava o trabalho de todo
o mundo.”
O porteiro do Paris-Soir tinha recebido a ordem de proibir sua entrada, porém
Saint-Exupéry trazia garrafas de vinho para suborná-lo! Em sua pressa para
concluir Piloto de Guerra encontrou
um novo aliado ao regressar a Nova York, em novembro de 1941, na pessoa de
Jean-Gérard Fleury, jornalista especializado em aviação, amigo desde a época da
Aéropostale. Ao reencontrá-lo, o escritor passou horas a fio lembrando os
primeiros voos na África ou na América do Norte, recordando o calor, a coragem
e a camaradagem dos pilotos, e confessando a falta que Guillaumet lhe fazia.
Fleury partilhou a vida trepidante de
Saint-Exupéry nos seis meses seguintes, período do qual restam recordações de
jantares em companhia de Jean Gabin e Marlène Dietrich no ateliê de Bernard
Lamotte, e horas passadas a escutar a 40a sinfonia de Mozart ou a
olhar Antoine experimentar, em sua banheira, novos sistemas de propulsão em
miniaturas.
Fleury também estava preparando um
livro na época, porém nem por isso livrou-se da “corveia do romance”. Além de
telefonar-lhe diversas vezes de madrugada, uma noite Saint-Exupéry acordou-o e
mandou-o pegar um táxi, pouco depois da meia-noite, porque tinha de falar com
ele imediatamente. Ele precisava da opinião de Fleury sobre um capítulo de Piloto de Guerra. Apesar da opinião
entusiasta do jornalista, Antoine decidiu reescrever o trecho, e seu amigo teve
de esperar até as 5 da manhã para escutar a nova versão. Fleury foi substituído
pouco depois por Lewis Galantière, que passou a ser acordado por telefonemas no
meio da noite cada vez que Saint-Exupéry sentia necessidade de modificar seu
texto antes da tradução. “Aquele escritor genial estava convencido de que não
sabia escrever”, frisou Galantière. “Tinha que ser constantemente tranquilizado
pelos amigos.”
Dois acontecimentos contribuíram
para persuadir Saint-Exupéry a entregar seu manuscrito, apesar de suas
reticências e da convicção de que sua alquimia não tivera tempo de funcionar,
como diria aos colegas do 2/33. Em primeiro lugar, em 7 de dezembro de 1941, o
bombardeio de Pearl Harbor empurrou os americanos à guerra, o que correspondia às
esperanças de Saint-Exupéry. Urgia publicar um livro sobre as reais condições
do combate.
O segundo acontecimento demonstrou a
longo prazo ser mais importante no plano literário. Em novembro de 1941,
Consuelo chegou a Nova York. Sua presença acelerou o processo final que dará
origem a O Pequeno Príncipe. Em 1942,
Saint-Exupéry começou a ter aulas particulares de inglês, sinal de que estava
perdendo pouco a pouco a esperança de retornar ao serviço ativo. Estava
considerando a possibilidade de ter de permanecer nos Estados Unidos até o
final da guerra. Sua idade e persistente má saúde faziam com que esta última perspectiva
parecesse provável. Também não lhe era fácil abandonar o prestígio e o
conforto, agradáveis consequências de seu sucesso literário. Por outro lado, o
fato de não aceitar se submeter à autoridade de Charles de Gaulle eliminava
todas as chances de servir na RAF. Para os americanos tornara-se o mais famoso
dos escritores franceses refugiados nos Estados Unidos. Apesar de sua
reticência em trabalhar para a propaganda de guerra, ele contribuía amplamente
através de seus escritos, conferências e entrevistas.
A chegada de Consuelo, num navio
procedente de Marselle, obrigou-o a considerações mais pessoais. Seu desejo de
cuidar de Consuelo, apesar das incompatibilidades, foi um prelúdio de suas
reflexões sobre a responsabilidade com sua rosa em O Pequeno Príncipe. Durante os meses seguintes, seu relacionamento
parecia o de um pai ansioso e superprotetor com uma criança indócil, embora
Consuelo já tivesse quase 40 anos.
Nem a guerra nem a separação tinham
conseguido frear sua exuberante personalidade. Antes de se ligar a uma
comunidade de artistas no pequeno povoado provençal de Oppède, Consuelo gastara
a maior parte de suas economias no Martinez, o mais luxuoso hotel de Cannes, tratando
de sua asma.
Esqueceu rapidamente o curto período
de privações na colônia de artistas, quando Antoine enviou-lhe dinheiro para
renovar o guarda-roupa e uma autorização para morar nos Estados Unidos. Quando desembarcou
em Hoboken, no estado de Nova York, ela desmoronava sob o peso da bagagem, e
explicou a Antoine que havia outro tanto no porão do navio. Saint-Exupéry não
possuía carro em Nova York, e tinha pedido que Fleury o levasse até o porto,
sem lhe dizer que iam buscar Consuelo. Fleury ficou fascinado pelo fluxo incessante
de sua conversa, seu olhar brilhante, o sotaque sul-americano e os gestos
expressivos com os quais ela relatava suas aventuras em Oppède e sua infância em El Salvador.
Mas foi justamente essa volubilidade
que fez Saint-Exupéry tomar a decisão de continuarem a viver separados. Em vez
de levá-la para sua casa, instalou-a num apartamento vizinho, onde ela logo
recriou o ambiente de sua vida artística parisiense. André Breton era um de
seus visitantes mais assíduos, e Saint-Exupéry mantinha com ele uma
interminável polêmica político-literária. Salvador Dali e Joan Miró também eram
frequentadores habituais.
A confusão permanente que reinava na
Place Vauban voltou com a volúvel Consuelo irrompendo intempestivamente no
escritório do marido, como nos belos dias lembrados por Henri Jeanson. Os
amigos de Antoine ficavam maravilhados com sua paciência, mesmo quando
dissimulava com dificuldade sua irritação.
Henri Claudel, uma das
personalidades gaullistas de Nova York, lembra-se do dia em que ele e sua
esposa foram apresentados a Consuelo. Ele ouviu Antoine suplicando: “Não
aborreça estas pessoas, por favor. Gosto muito delas”. A única vez que Claudel
assistiu a uma briga de Saint-Exupéry com ela foi no dia em que Consuelo
revelou os segredos de um truque de baralho. Mas se as anotações e cartas de
Saint-Exupéry na época refletem fielmente seus sentimentos, elas revelam um
contínuo clima de crise, de decepção e frustração entre o casal. Ele menciona
constantemente sua inquietação com as ausências da mulher ou com sua
incapacidade de manter os compromissos com ele, embora ela morasse a poucos
metros de sua casa.
As brigas que tinham perturbado sua
vida conjugal no passado tornaram-se cada vez piores. Consuelo acusava Antoine
de ser um carcereiro. Ele replicava que a tensão psicológica e a ansiedade que
sentia enquanto a esperava voltar de madrugada esvaziavam-no de qualquer
inspiração, e que ficava “dias e mais dias totalmente estéril, com a impressão
de eternidade”.
Além do mais, suas prodigalidades
começaram a ser novamente fonte de preocupação financeira para Antoine, que, no
final de 1942, receava ficar sem dinheiro para suas despesas pessoais.
É impossível, porém, já que o conjunto
de sua correspondência com a esposa não foi publicado, saber se a angústia e as
críticas eram consequências da personalidade versátil de Antoine ou da irritação
causada pelo estilo de vida excêntrico de sua esposa. Inegavelmente, ele estava
cada vez mais sujeito a mudanças de humor.
A correta observação de Léon Werth, segundo a
qual Saint- Exupéry abandonava a alegria no meio do caminho e submergia na
melancolia, foi confirmada por numerosos amigos. As dificuldades do exílio agravaram
essa instabilidade de temperamento. Bernard Valiquette, seu editor canadense,
escreveu no Le Nouveau Journal de Quebec,
em 1962, que a imagem mais duradoura que guardara do escritor fora essa
imprevisibilidade.
“Ele passava da alegria mais
ruidosa, da felicidade mais louca ao mais completo mutismo”, acrescenta ele.
“Era de uma verborragia extraordinária. Mas podia isolar-se completamente no
meio do grupo para refletir tristemente sobre as crianças assassinadas, as mães
separadas de seus filhos e os horrores da guerra.”
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