quarta-feira, 28 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT--EXUPÉRY - 64


            As terríveis consequências de uma guerra civil na França angustiavam Antoine profundamente. Esse tema aparecia constantemente em seus textos e conversas. Sua amizade com pacifistas como Henri Jeanson e Léon Werth, sua experiência na Guerra Civil Espanhola, a humilhação nacional infligida pela mais pungente derrota da história francesa, justificavam seu apoio à atitude passiva de Vichy, que se expressava por meio da política colaboracionista de Pétain. A isso era preciso acrescentar seu desprezo pelas facções e pelas lutas internas dos partidos, que o faziam rejeitar os gaullistas mais sectários de Nova York. Numa carta a Sylvia Hamilton, datada de 1943, após ter se aliado ao rival de De Gaulle na África do Norte, o general Giraud, ele descreve o gaullismo como uma “política de ódio”.

            De Gaulle tomou a recusa de Saint-Exupéry a aderir às forças da França Livre como uma ofensa pessoal. Porém existem diversos testemunhos, inclusive de vários gaullistas convictos, que mostram que seu apoio ao pétainismo não era a expressão de um apoio ideológico à direita reacionária, mas partia primariamente de uma preocupação humanitária.

            Se as personalidades gaullistas de Nova York tivessem tratado Antoine com mais objetividade, é provável que ele não tivesse rejeitado tão categoricamente o movimento da França Livre, como revela Bernard Duperier, piloto gaullista da RAF e futuro deputado, que desempenhará um papel decisivo no retorno de De Gaulle ao poder, em 1958.

             “É provável que se alguns dos pseudogaullistas instalados na América tivessem se dado ao trabalho de conversar com Saint-Exupéry em vez de condená-lo, teriam ajudado a encontrar uma saída para o dilema que o retinha em Nova York”, afirma.

            Em 1943, durante uma viagem destinada a mobilizar a opinião pública americana, Duperier descobriu que os gaullistas de Nova York não encontravam palavras suficientemente duras para estigmatizar a conduta de Saint-Exupéry. Calúnias injuriosas chegaram a ser propagadas pelo órgão gaullista La Voix de la France, que o apresentava como “amigo de Vichy”, enquanto o movimento France Forever insinuava que a covardia o impedia de unir-se à França Livre.

            Em parte, Saint-Exupéry rejeitava o gaullismo porque lhe parecia indispensável uma reconciliação entre os franceses. Em Nova York, estava diante de uma escolha impossível. Desde o momento de sua chegada sentiu-se consternado com as brigas entre exilados que, segundo Jean-Gérard Fleury, “despedaçavam-se ferozmente, com um copo de uísque na mão. Ele sentia aversão pela politização do gaullismo e pelo fato de que os gaullistas só o convocavam enquanto escritor, para tornar-se em Londres o dócil porta-voz das suas convicções doutrinárias”. Como nunca tinha se encontrado pessoalmente com De Gaulle, Saint-Exupéry formou sua opinião em contato com seus subordinados, que também estavam divididos em diversos grupelhos. Eles não contribuíram de forma alguma a acalmar suas suspeitas de que De Gaulle teria a intenção de dirigir um governo fascistóide contrário à democracia. Numa carta de 1943, ele escreveria que teria se unido ao general se este tivesse se proclamado chefe de uma legião estrangeira, e não de um governo paralelo.

            Explicou claramente a Lewis Galantière o que pensava sobre as ambições de De Gaulle, e repetiu ao tradutor que, para ele, a unidade nacional era a mais importante de todas as noções, enquanto o general incitava ao combate fratricida. Para ele, o homem de Londres deixara de ser um soldado para se converter em líder político.

            “De bom grado teria lutado contra os alemães, porém não poderia lutar contra os franceses”, explicou a Galantière. Saint-Exupéry nunca renegou Pétain, e absteve-se de criticá-lo publicamente, afirmando a diversos amigos que a colaboração era necessária para salvar a França do caos. Achava que Pétain era a garantia da coesão nacional, segundo afirma Robert Boname, perito em aviação. “Se ele não existisse, seria preciso inventá-lo”, acrescentou.

            Em 1942, o romancista suíço Denis de Rougemont anotou em seu diário uma conversa na qual Saint-Exupéry sugeria que Pétain tinha salvado a “substância” da França. Elaborou a seguir uma teoria que desenvolveu nos meses seguintes: se o marechal tivesse se revoltado abertamente, os alemães teriam se negado a fornecer a graxa para os eixos indispensáveis aos trens franceses, acabando assim com o abastecimento da França.

         
O General Charles de Gaulle lê sua Convocação de Resistência de
 22 de junho de 1940, logo após a rendição da França aos nazistas.
   “Quanto aos gaullistas daqui, eles não fazem a guerra contra os nazistas, mas contra o ascensorista francês do Waldorf, ou contra o chef do Ritz, que não pertencem à sua facção e que eles, portanto, consideram traidores.” Apesar de frequentes contatos com numerosos gaullistas tolerantes, como Henri Claudel, ninguém pôde convencer Saint-Exupéry a mudar de posição. À medida que passavam os meses de exílio, ele até mesmo tornou-se mais explícito em sua defesa da colaboração, enquanto a dúvida se propagava no campo de Vichy. Durante uma visita ao Canadá, em abril de 1942, declarou a um jornalista de Montreal que a única palavra de ordem da França era “sobreviver”.

            “Humanamente, a fome rói a fonte viva da infância, a geração do amanhã”, expôs durante uma entrevista coletiva. “Meu país já perdeu 250 mil crianças no ano passado devido à desnutrição. Os nazistas querem acabar com a França assim como aniquilaram a raça polonesa.”

            Nove meses mais tarde, Saint-Exupéry polira seus argumentos referentes ao abastecimento da França, tendo chegado ao ponto de abalar as convicções de Bernard Duperier. Em nome de uma amizade de muitos anos, Duperier desafiou os representantes oficiais do general em missão de propaganda em Nova York e foi visitar Saint-Exupéry com a esperança de convencê-lo a unir-se à França Livre.

            Desde o início da guerra, Duperier habituara-se a fazer anotações, o que lhe permitiu oferecer um precioso testemunho das opiniões de Saint-Exupéry sobre o colaboracionismo, aparentemente pouco abaladas pela invasão do sul da França pelos alemães, em novembro de 1942, após o desembarque dos aliados na África do Norte. “Saint- Exupéry estava se preparando para almoçar, e enquanto se vestia eu lhe contava como os pilotos franceses da RAF o admiravam”, relata Duperier. “Como resposta, fui testemunha de um espetáculo extraordinário, no qual Saint-Exupéry desempenhou simultaneamente os papéis de acusado, de promotor e de advogado de defesa.

            “Tive a sensação de que ele preparara seus argumentos durante meses, particularmente o tema central, segundo o qual o marechal Pétain estava obrigado a colaborar para assegurar o abastecimento de graxa de eixos para os trens franceses. A única produção desse material, segundo ele, estava nas mãos dos alemães, e se ela fosse interrompida todos morreriam de fome.” Saint-Exupéry traçou um quadro aterrorizador das hordas de cidadãos famintos invadindo os campos para espalhar a catástrofe, antes de lançar-se a uma justificação da colaboração, chegando até mesmo a apoiar a contragosto Pierre Laval, a quem no fundo desprezava. Se ele não tivesse estado no governo, os nazistas teriam imposto um pró-alemão como Jacques Doriot ou até mesmo um administrador de um distrito da Alemanha hitlerista.

            “Saint-Ex não me deixou pronunciar uma palavra”, afirma Duperier. “Ele continuou a falar dentro do táxi que me levou até o hotel. Sua eloquência me desestabilizou, e tinha tanto medo que ele chegasse a me convencer que recusei seu convite para almoçar no dia seguinte.” Como muitos dos gaullistas abertos, Duperier não criticava os sentimentos de Saint-Exupéry, afirmando que tinha certeza de que, em coração e espírito, ele estava do lado daqueles que continuavam o combate. “Mas como não se juntava a eles, tinha de encontrar uma forma de satisfazer sua própria consciência e, portanto, elaborava teorias extravagantes, como a da graxa para os eixos, completamente insensata”, conta Duperier. “Diante desse grande homem que perdera o rumo, os não-combatentes da França Livre em Nova York reagiam com insultos. Pareciam pensar que isso era a prova de seu patriotismo.”


            A indefectível lealdade de Saint-Exupéry ao marechal sem dúvida poderia ter vacilado após uma conversa com Léon Werth, que odiava profundamente Pétain. Mas Werth teve de viver escondido em sua casa de Saint-Amour, sem qualquer possibilidade de se corresponder com o amigo, pois temia ser descoberto e preso. No exílio, Saint-Exupéry só julgava a administração de Vichy através da propaganda enganosa, enquanto seu amigo enfrentava diariamente as perigosas realidades da colaboração, escrevendo com desprezo em seu jornal que o marechal representava a traição disfarçada de virtude. Para o escritor anarquista, a atitude patriarcal de Pétain, seus olhos azuis com um olhar falsamente honesto e sua revolução nacional soporífera eram uma armadilha para o povo, O chefe de Estado era idoso demais para ser executado, pensava Werth, porém não deveria escapar da degradação diante de suas tropas.

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