segunda-feira, 26 de junho de 2017

TERRA DOS HOMENS - 11

            O AVIÃO

            Não importa, Guillaumet, que os seus dias e noites de trabalho se escoem em controlar manómetros, em se equilibrar sobre giroscópios, em auscultar os sopros de motores, em lidar com 15 toneladas de metal: os problemas que se propõem a você são, afinal de contas, problemas de homem, e você atinge sem esforço o mesmo nível de nobreza de um montanhês. Tanto como o poeta, você aprende a saborear o prenúncio da madrugada. Do fundo do abismo das noites difíceis, você tantas vezes desejou esse feixe pálido, essa claridade que brota a leste das terras escuras... Muitas vezes essa fonte de milagres se degelou lentamente para salvá-lo quando você já pensava em morrer.

            O uso de um instrumento sábio não fez de você um técnico seco. Sempre me pareceu que as pessoas que se horrorizam muito com nossos progressos técnicos confundem o fim com o meio. Na verdade, quem luta apenas na esperança de bens materiais não colhe nada que valha a pena viver. Mas a máquina não é um fim. O avião não é um fim: é um instrumento. Um instrumento como a charrua.

            Se às vezes julgamos que a máquina domina o homem é talvez porque ainda não temos perspectiva bastante para julgar os efeitos de transformações tão rápidas como essas que sofremos. Que são os cem anos da história da máquina em face dos duzentos mil anos da história do homem? Ainda nem acabamos de nos instalar nessa paisagem de minas e de centrais elétricas. Ainda nem nos sentimos moradores dessa casa nova que nem sequer acabamos de construir. Tudo mudou tão depressa em volta de nós: relações humanas, condições de trabalho, costumes... Até mesmo a nossa psicologia foi subvertida em suas bases mais íntimas. As noções de separação, ausência, distância, regresso são realidades diferentes no seio de palavras que permaneceram as mesmas. Para apreender o mundo de hoje, usamos uma linguagem que foi feita para o mundo de ontem. E a vida do passado parece corresponder melhor à nossa natureza apenas porque corresponde melhor à nossa linguagem.

            Cada progresso nos expulsou para um pouco mais longe ainda de hábitos que mal havíamos adquirido; na verdade, somos emigrantes que ainda não fundaram a sua pátria.

            Somos todos bárbaros novos que ainda se maravilham com seus novos brinquedos. Não têm outro sentido nossas corridas de avião. Este sobe mais alto, aquele corre mais depressa. Esquecemos por que o fazemos correr. A corrida, provisoriamente, fica mais importante que o seu próprio objetivo. E sempre é assim mesmo. Para quem funda um império, o sentido da vida é conquistar. 0 soldado despreza o colono. Mas o fim da conquista do soldado não é o estabelecimento do colono? Assim, na exaltação de nossos progressos, fizemos com que os homens servissem ao estabelecimento de vias férreas, à construção de usinas, à perfuração de poços de petróleo. De certo modo, esquecemos que essas construções são feitas para servir ao homem. Nossa moral foi, durante o período da conquista, uma moral de soldados. Mas agora precisamos colonizar. Precisamos dar vida a essa casa nova que ainda não tem fisionomia. A verdade, para um, foi construir; para outro, é habitar.

            E pouco a pouco, sem dúvida, nossa casa se fará mais humana. A própria máquina, quanto mais se aperfeiçoa, mais se apaga e desaparece atrás de sua função. Parece que todo o esforço industrial do homem, todos os cálculos, todas as noites de vigília sobre as plantas conduzem apenas à simplicidade, como se fosse necessária a experiência de várias gerações para libertar a curva de uma coluna, de uma quilha ou de uma fuselagem de avião até lhe dar a pureza elementar da curva de um seio ou de um ombro. Parece que o trabalho dos engenheiros, dos desenhistas e dos calculistas dos escritórios de estudos é apenas polir e apagar, realizar da maneira mais suave esta juntura das peças, equilibrar esta asa até que não se note mais nada, até que não haja mais uma asa ligada a uma fuselagem, e sim uma forma perfeitamente desenvolvida, libertada de sua ganga, uma espécie de conjunto espontâneo, misteriosamente ligado, e da mesma qualidade de um poema. Parece que a perfeição é atingida não no instante em que não há mais nada a acrescentar à máquina, e sim quando não há mais nada a suprimir. Ao termo de sua evolução, a máquina se dissimula.

            A perfeição do invento confina assim com a ausência de invento. E assim como, no instrumento, toda a mecânica aparente se foi pouco a pouco sumindo, até que ele se fizesse tão natural como um seixo polido pelo mar, assim também é admirável como o uso da máquina nos faz, pouco a pouco, esquecer a máquina.

            Estávamos, outrora, em contato com uma usina complicada. Hoje, esquecemos que o motor roda. Ele cumpre a sua função, que é rodar, como um coração bate — e não prestamos atenção ao nosso coração. A atenção não é mais absorvida pelo instrumento. Além do instrumento, através dele, é a velha natureza que reencontramos, a do jardineiro, do navegante, do poeta.


            E com a água, é com o ar que o piloto que decola entra em contato. Quando os motores começam a trabalhar, quando o avião já sulca o mar, seu casco soa como um gongo ao choque das marolas e o piloto sente esse trabalho no tremor de seus rins. Sente que o hidroavião, segundo por segundo, à medida que vai ganhando velocidade, vai se enchendo de poder. Sente preparar-se, naquelas 15 toneladas de matéria, a maturidade que permite o voo. O piloto firma bem as mãos no comando e, pouco a pouco, em suas palmas cerradas, recebe aquele poder como um dom. Os órgãos de metal do comando, à medida que lhe entregam esse dom, se fazem mensageiros de sua potência. Quando ela está madura, o piloto separa o avião das águas e o eleva no ar com um gesto mais leve que o de colher uma flor. 


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