quarta-feira, 28 de junho de 2017

CORREIO SUL - 11

VII

            Geneviève sente-se mal ao tocar suavemente a cortina, a poltrona, como barreiras que se descobrem. Até agora essas carícias dos dedos não passavam de um jogo. Até agora aquele cenário era tão leve que aparecia e desaparecia nos momentos precisos, como no teatro. Ela, que tinha tão bom gosto, jamais perguntara o que significava exatamente aquele tapete persa, aquele quadro de Jouy. Formavam até hoje a imagem de um interior — e tão suave —> que agora ela os reencontrava.

            "Isso não é nada", pensava Geneviève; “sinto-me ainda estranha numa vida que não é a minha". Afundava-se numa poltrona e fechava os olhos. Como numa cabine do expresso: cada segundo que passa lança para trás casas, florestas, vilas. Entretanto, se abrirmos os olhos no leito, veremos apenas um anel de cobre, sempre o mesmo. Somos transformados sem o saber. "Em oito dias abrirei os olhos e me sentirei nova: Bemis me leva.”



            — Que acha de nossa residência?

            Por que trazê-la já à realidade? Ela olha, mas não sabe exprimir o que sente: este cenário carece de estabilidade. Sua armação não é sólida...

             — Aproxime-se, Jacques, você que vive...

            Esta meia-luz sobre os divãs, as tapeçarias próprias das garçonnières, estes tecidos marroquinos nas paredes, tudo isso se pendura e se tira em cinco minutos.

            — Por que esconde as paredes, Jacques? Por que quer amortecer o contato dos dedos e das paredes?

            Agrada-lhe acariciar a pedra com a palma da mão, tocar o que há de mais seguro e durável na casa. O que pode transportar-nos por muito tempo como um navio...

            Ele mostra suas riquezas: "Lembranças..." Geneviève compreende: conheceu oficiais das tropas coloniais que levavam em Paris vida de fantasmas. Encontravam-se pelos bulevares e admiravam-se de viver. Suas casas assemelhavam-se mais ou menos às de Saigon, de Marrakech. Falava-se ali de mulheres, de amigos e promoções: mas as tapeçarias, que nessas regiões eram talvez a própria carne das paredes, aqui pareciam sem vida.

            Geneviève tocava com os dedos pequenas peças de cobre.

            — Não gosta dos meus bibelôs?

            — Perdoe-me, Jacques. São um pouco...

            Não se atrevia a dizer "vulgares”. Porém, aquela segurança de gosto que lhe vinha do fato de conhecer e apreciar apenas os verdadeiros Cézanne, não cópias, os móveis autênticos, não as imitações, levava- a a desprezá-los ocultamente. Estava pronta a qualquer sacrifício, com o mais generoso coração; parecia-lhe que teria suportado a vida numa cela caiada, mas aqui era como se um pouco de si própria se comprometesse. Não sua delicadeza de criança rica, mas — que estranho pensamento — sua própria integridade. Bemis adivinhou o seu embaraço, sem o compreender.

            — Geneviève, não posso lhe dar tanto conforto, sou apenas...

             — Ó! Jacques! Você está louco, o que está pensando? Para mim, tudo isso é indiferente — e ela se aconchega em seus braços. — Prefiro apenas um assoalho bem simples e encerado aos seus tapetes... Colocarei tudo em ordem...

            Interrompeu-se depois, pressentiu que a simplicidade cobiçada era um luxo bem maior, que exigia da aparência dos objetos muito mais do que pensava. 0 hall onde brincava quando criança, o assoalho de nogueira brilhante, as mesas maciças que podiam atravessar os séculos sem perder a atualidade ou envelhecer...

            Assaltava-a uma estranha melancolia; não o pesar pela fortuna, pelo que ela permite: sem dúvida, conhecera o supérfluo menos do que Jacques, mas compreendia agora que, em sua nova vida, era precisamente do supérfluo que seria rica. Não tinha necessidade disso, mas já não teria essa certeza de durabilidade. Pensou: “As coisas duravam mais do que eu. Eu era recebida, acompanhada, estava certa de que velariam por mim; mas agora vou durar mais do que as coisas."

            Pensou também: “Quando eu ia ao campo..." Revia aquela casa através das tílias espessas. Surgia à superfície o que havia de mais estável: o patamar de largas pedras que se prolongava na terra.

            Naquela casa... Geneviève pensa no inverno. O inverno que destrói na floresta todos os ramos secos e desnuda cada linha da casa. Vê-se o próprio vigamento do mundo.

            Geneviève passa e assobia aos seus cães. As folhas estalam sob seus pés, mas após a separação que o inverno faz, o grande expurgo, ela sabe que a primavera voltará a encher o curso da vida, a subir pelos ramos, a animar os rebentos, a rejuvenescer as verdes abóbadas que têm a profundeza e o movimento da água.

            Seu filho não desapareceu de lá completamente. Quando ela entra na despensa para virar os marmelos meio maduros, ele acaba de fugir; mas depois de comer demais, meu menino, de ter brincado tanto, não é melhor ir dormir?

            Ela conhecia o sinal dos mortos e não o temia. Cada um ajunta seu silêncio aos silêncios da casa. Elevamos os olhos do livro, suspendemos a respiração e gozamos o apelo que acabou de se extinguir.

            Desaparecidos? Quando eles, mesmo entre as coisas efêmeras, são os únicos duráveis, quando a última expressão de sua face é tão real que nada deles poderá desmenti-la!

            "Agora seguirei este homem, sofrerei e duvidarei dele.” Pois nesta confusão humana de ternuras e repulsas, Geneviève apenas discerniu as partes componentes.

            Abre os olhos: Bemis sonha.

            — Jacques, é preciso proteger-me, partirei pobre, tão pobre!

            Se Bemis não foi bastante forte, ela sobreviverá àquela casa de Dacar, àquela multidão de Buenos Aires, num mundo onde apenas haverá espetáculos desnecessários e quase tão irreais quanto os de um livro...

            Jacques, porém, inclina-se para ela e fala-lhe com doçura. Geneviève esforça-se por crer nessa imagem que ele faz de si, nessa ternura de essência divina. Tenta amar o símbolo do amor: para defender-se, conta apenas com essa fraca imagem...

            À noite, encontrará na volúpia esse ombro frágil, esse frágil refúgio, e nele mergulhará o rosto como um animal que vai morrer...




             VIII

            —Aonde me leva? Por que me leva para lá?

            Este hotel a desagrada, Geneviève? Quer que partamos outra vez?

            — Sim, vamos partir... — responde com receio.

            Os faróis iluminavam mal. Mergulhava-se com dificuldade na noite como num buraco. De vez em quando, Bemis lançava um olhar a seu lado: Geneviève estava pálida.

            — Está com frio?

            — Um pouco, mas isso não é nada. Esqueci-me de trazer o casaco de pele.

            Parecia uma menina muito sem juízo. Sorriu.

            Agora chovia. "Porcaria", pensou Jacques, mas ainda acreditava que assim são as primícias do paraíso terrestre.

            Próximo a Sens, foi preciso mudar uma vela do carro. Esquecera a lanterna — outro descuido. Tateou sob a chuva com uma chave errada. — Deveríamos ter tomado o trem — repetia obstinadamente. Preferia seu carro por causa da imagem que lhe dava da liberdade: bela liberdade! Aliás, fizera apenas tolices desde a fuga: e todos esses esquecimentos...

            — Conseguiu?

            Geneviève foi para perto dele. Sentia-se de súbito prisioneira: uma, duas árvores de sentinela e esta cabana estúpida, de cantoneiro. "Meu Deus, que ideia esquisita... Será que teria sempre de viver aqui?”

            Quando acabou, ele lhe tomou as mãos:

            — Você está com febre!

            Ela sorriu...

            — Sim... Estou um pouco cansada; gostaria de dormir...

            — Mas por que desceu sob esta chuva?

            O motor continuava a falhar, com ruídos e arrancos.

            — Será que vamos chegar, Jacques? — Geneviève cochilava, possuída de febre. — Chegaremos?

            — Claro, meu amor, daqui a pouco estaremos em Sens.

            Ela suspirou. O que tentava estava acima de suas forças. Tudo por causa do motor que resfolegava. As árvores eram pesadas, vindo ao seu encontro, uma após a outra.

            “Não é possível”, pensava Bemis, "ainda vai ser preciso parar”. Receava a imobilidade da paisagem: ela fazia eclodir pensamentos que estavam ainda germinando. Temia certa força que se patenteava.

            — Minha pequena Geneviève, não pense nesta noite... Pense antes... Pense na... Na Espanha. Será que irá gostar da Espanha?

            Uma voz fraca e longínqua respondeu-lhe:

            "Sim, Jacques, estou feliz, mas... temo os bandidos." Viu-a sorrir com meiguice. Essa frase preocupou Bemis, essa frase que se referia tão somente à viagem à Espanha: esse conto de fadas... Sem fé. Um exército sem fé. Um exército sem fé não pode conquistar. "Geneviève, é a noite, é esta chuva que estraga a nossa confiança..." Reconheceu de súbito que aquela noite assemelhava-se a uma interminável enfermidade. Sentiu na boca o sabor da doença. Era uma dessas noites sem esperança de aurora. Lutava, escondia para si mesmo as palavras: "A alvorada seria uma cura, se não chovesse mais até lá...se...” Havia algo doentio em ambos, mas ele não sabia. Acreditava que a terra é que estava podre, que a noite é que estava enferma. Ansiava pela aurora, tanto quanto os condenados que dizem: "Respirarei quando o dia voltar” ou "serei jovem quando a primavera chegar...”

            — Geneviève, pense em nossa casa de lá...

            Reconheceu imediatamente que jamais deveria ter dito aquilo. Imagem alguma conseguia edificar-se em Geneviève.

            "Sim, nosso lar...” Ela tentava dizer qualquer coisa. Seu calor escapava, e fugia-lhe todo entusiasmo.

            Agitavam-se nela pensamentos que desconhecia, que formavam palavras, pensamentos que lhe causavam medo.

            Como não conhecia os hotéis de Sens, parou sob um poste para consultar o guia. Uma luz já quase extinta removia as sombras, fazendo ressaltar no muro decorado um letreiro gasto e deslocado: “Bicicletas.” Pareceu-lhe que era a mais triste e vulgar palavra que jamais lera. Símbolo de uma vida medíocre. Pareceu-lhe que muitas coisas na sua vida de outrora eram medíocres, mas que jamais o percebera.

            — Tem fósforos, burguês? — Três esguios rapazes olhavam-no, sacaneando. — Os americanos procuram o caminho... — Encararam depois Geneviève.

            — Deem o fora, moleques — resmungou Bemis.

            — E essa vagabunda aí? Se visse a nossa do 29!...

            Geneviève inclina-se para Jacques um pouco assustada.

            — O que eles disseram?... Eu lhe imploro, vamos embora.

            — Mas, Geneviève...

            Ele fez um esforço e calou-se. Era preciso achar um hotel para ela... Esses rapazes bêbedos... que importa? Pensou depois que ela estava com febre e sofria — gostaria de ter-lhe poupado aquele encontro.

             Com uma doentia obstinação, censurou-se por envolvê-la em coisas inconvenientes. Ele...

            O Hôtel du Globe estava fechado. À noite, todos os pequenos hotéis tinham o ar de armarinhos. Bemis bateu com persistência na porta, até que o vigia noturno, num passo arrastado, entreabriu-a.

            — Lotado.

            — Eu lhe imploro, minha mulher está doente! — insistiu Bemis. A porta foi novamente fechada e os passos perderam-se no corredor.

            Tudo então se unia contra eles?...

            — O que ele disse? — perguntou Geneviève. — Por que, por que nem mesmo respondeu?

            Bemis foi tentado a dizer que não estavam na praça Vendôme e que ali os pequenos hotéis, quando enchem a barriga, fecham-se e entregam-se ao sono. Nada mais normal Sentou-se sem nada dizer. Seu rosto brilhava de suor. Não partiu imediatamente, mas fixou o olhar na calçada iluminada, enquanto a chuva corria-lhe pelo pescoço; sentia-se como se tivesse de remover a inércia da Terra inteira. Novamente aquela ideia estúpida: quando voltar o dia...

            Era realmente necessário que uma palavra humana fosse pronunciada naquele instante. Geneviève tentou:

            — Tudo isso não significa nada, meu amor. É preciso lutar pela nossa felicidade.

            Bemis contemplou-a: "Sim, você é muito generosa." Isso o comoveu. Desejaria abraçá-la, mas a chuva, o desconforto, a fadiga... Tomou-lhe, entretanto, a mão e sentiu que a febre subia, dominava a cada segundo aquela carne; contudo, acalmava-se, pensando: "Mandarei preparar-lhe um grogue bem quente. Isso não será nada. Um grogue fervendo. Eu a envolverei em cobertores. Riremos, lembrando essa viagem difícil" Experimentou uma vaga impressão de felicidade. Porém, como a vida de agora se ajustava mal a esses sonhos! Dois outros hotéis nem sequer responderam. Aqueles sonhos! Era necessário renová-los após cada parada e a cada vez sua evidência tomava-se menos potente, diminuía sua possibilidade de realização.

            Geneviève calara-se. Sentiu que ela não lamentaria, não diria mais nada. Podiam rodar horas, dias: ela nada diria. Nunca diria mais nada. Torcesse-lhe o braço: ela nada diria... "Divago, sonho!"

            — Geneviève, meu bem, está passando mal?

            — Não, acabou, já estou melhor.

            Agora extinguira-se nela sua esperança em tantas coisas. Renunciava. Por quem? Por ele. Por coisas que Bemis jamais poderia lhe dar. Esse “já estou melhor" era como uma mola partida. Geneviève estava cada vez mais submissa. Irá, assim, de “melhor" em “melhor" e, no fim, terá renunciado à felicidade. Quando estiver completamente bem... “Ora! Que imbecil eu sou: ainda sonho."

            Hôtel de l’Espérance e d'Anglaterre. Preços especiais para os viajantes do comércio. “Apoie-se em meu braço, Geneviève... Claro, um quarto. A senhora está doente. Um grogue, depressa! Um grogue fervendo." Preços especiais para os viajantes do comércio. Por que essa frase é tão triste? “Sente-se nesta poltrona, será melhor." Por que o grogue demora? Preços especiais para os viajantes do comércio.

            A velha criada apressava-se. “Eis aqui, minha senhora. Pobre senhora. Ela está tão trêmula, tão pálida... Vou aquecer-lhe a cama. É no 14, um quarto confortável e grande. Senhor, quer preencher as fichas?" Com uma caneta suja entre os dedos, notou que seus sobrenomes eram diferentes. Pensou que estava submetendo Geneviève à complacência dos criados. “Por minha causa. Falta de gosto.” Foi ela ainda quem ajudou: "Amantes", disse ela. “Não é mais terno?”

            Pensavam em Paris, no escândalo. Viam agitar-se diferentes rostos. Para eles, algo difícil apenas começava; evitavam, porém, as menores palavras, temerosos de se encontrarem em seus pensamentos.

            E Bemis compreendeu que, até aquele momento, houve apenas um motor funcionando mal, algumas gotas de chuva e dez minutos perdidos à procura de um hotel. Vinham deles próprios as extenuantes dificuldades que lhes pareceram insuperáveis. Geneviève inquietava-se por sua causa, pois já se sentia esgotada, tal a intensidade de seus sentimentos.

            Bemis pegou suas mãos, mas reconheceu que as palavras de nada valiam.

            Ela dormia. Ele não pensava no amor. Sonhava de maneira estranha. Reminiscências. A chama do candeeiro. Era preciso alimentá-la depressa e também protegê-la do vento que soprava forte.

            Incomodava-o sobretudo esse desprendimento. Ele a queria ávida de bens, desejando ardentemente as coisas e gritando, como uma criança, para alimentar-se delas. Então, apesar de sua indigência, muito teria a dar-lhe. Ajoelhou-se, porém, pobre ante aquela criança que não tinha fome.




            

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