VII
Geneviève
sente-se mal ao tocar suavemente a cortina, a poltrona, como barreiras que se
descobrem. Até agora essas carícias dos dedos não passavam de um jogo. Até
agora aquele cenário era tão leve que aparecia e desaparecia nos momentos
precisos, como no teatro. Ela, que tinha tão bom gosto, jamais perguntara o que
significava exatamente aquele tapete persa, aquele quadro de Jouy. Formavam até
hoje a imagem de um interior — e tão suave —> que agora ela os reencontrava.
"Isso
não é nada", pensava Geneviève; “sinto-me ainda estranha numa vida que não
é a minha". Afundava-se numa poltrona e fechava os olhos. Como numa cabine
do expresso: cada segundo que passa lança para trás casas, florestas, vilas.
Entretanto, se abrirmos os olhos no leito, veremos apenas um anel de cobre,
sempre o mesmo. Somos transformados sem o saber. "Em oito dias abrirei os
olhos e me sentirei nova: Bemis me leva.”
—
Que acha de nossa residência?
Por
que trazê-la já à realidade? Ela olha, mas não sabe exprimir o que sente: este
cenário carece de estabilidade. Sua armação não é sólida...
— Aproxime-se, Jacques, você que vive...
Esta
meia-luz sobre os divãs, as tapeçarias próprias das garçonnières, estes tecidos
marroquinos nas paredes, tudo isso se pendura e se tira em cinco minutos.
—
Por que esconde as paredes, Jacques? Por que quer amortecer o contato dos dedos
e das paredes?
Agrada-lhe
acariciar a pedra com a palma da mão, tocar o que há de mais seguro e durável
na casa. O que pode transportar-nos por muito tempo como um navio...
Ele
mostra suas riquezas: "Lembranças..." Geneviève compreende: conheceu
oficiais das tropas coloniais que levavam em Paris vida de fantasmas.
Encontravam-se pelos bulevares e admiravam-se de viver. Suas casas
assemelhavam-se mais ou menos às de Saigon, de Marrakech. Falava-se ali de
mulheres, de amigos e promoções: mas as tapeçarias, que nessas regiões eram
talvez a própria carne das paredes, aqui pareciam sem vida.
Geneviève
tocava com os dedos pequenas peças de cobre.
—
Não gosta dos meus bibelôs?
—
Perdoe-me, Jacques. São um pouco...
Não
se atrevia a dizer "vulgares”. Porém, aquela segurança de gosto que lhe
vinha do fato de conhecer e apreciar apenas os verdadeiros Cézanne, não cópias,
os móveis autênticos, não as imitações, levava- a a desprezá-los ocultamente.
Estava pronta a qualquer sacrifício, com o mais generoso coração; parecia-lhe
que teria suportado a vida numa cela caiada, mas aqui era como se um pouco de
si própria se comprometesse. Não sua delicadeza de criança rica, mas — que estranho
pensamento — sua própria integridade. Bemis adivinhou o seu embaraço, sem o
compreender.
—
Geneviève, não posso lhe dar tanto conforto, sou apenas...
— Ó! Jacques! Você está louco, o que está
pensando? Para mim, tudo isso é indiferente — e ela se aconchega em seus
braços. — Prefiro apenas um assoalho bem simples e encerado aos seus tapetes...
Colocarei tudo em ordem...
Interrompeu-se
depois, pressentiu que a simplicidade cobiçada era um luxo bem maior, que
exigia da aparência dos objetos muito mais do que pensava. 0 hall onde brincava
quando criança, o assoalho de nogueira brilhante, as mesas maciças que podiam
atravessar os séculos sem perder a atualidade ou envelhecer...
Assaltava-a
uma estranha melancolia; não o pesar pela fortuna, pelo que ela permite: sem
dúvida, conhecera o supérfluo menos do que Jacques, mas compreendia agora que,
em sua nova vida, era precisamente do supérfluo que seria rica. Não tinha
necessidade disso, mas já não teria essa certeza de durabilidade. Pensou: “As
coisas duravam mais do que eu. Eu era recebida, acompanhada, estava certa de
que velariam por mim; mas agora vou durar mais do que as coisas."
Pensou
também: “Quando eu ia ao campo..." Revia aquela casa através das tílias
espessas. Surgia à superfície o que havia de mais estável: o patamar de largas
pedras que se prolongava na terra.
Naquela
casa... Geneviève pensa no inverno. O inverno que destrói na floresta todos os
ramos secos e desnuda cada linha da casa. Vê-se o próprio vigamento do mundo.
Geneviève
passa e assobia aos seus cães. As folhas estalam sob seus pés, mas após a
separação que o inverno faz, o grande expurgo, ela sabe que a primavera voltará
a encher o curso da vida, a subir pelos ramos, a animar os rebentos, a
rejuvenescer as verdes abóbadas que têm a profundeza e o movimento da água.
Seu
filho não desapareceu de lá completamente. Quando ela entra na despensa para
virar os marmelos meio maduros, ele acaba de fugir; mas depois de comer demais,
meu menino, de ter brincado tanto, não é melhor ir dormir?
Ela
conhecia o sinal dos mortos e não o temia. Cada um ajunta seu silêncio aos
silêncios da casa. Elevamos os olhos do livro, suspendemos a respiração e
gozamos o apelo que acabou de se extinguir.
Desaparecidos?
Quando eles, mesmo entre as coisas efêmeras, são os únicos duráveis, quando a
última expressão de sua face é tão real que nada deles poderá desmenti-la!
"Agora
seguirei este homem, sofrerei e duvidarei dele.” Pois nesta confusão humana de ternuras
e repulsas, Geneviève apenas discerniu as partes componentes.
Abre
os olhos: Bemis sonha.
—
Jacques, é preciso proteger-me, partirei pobre, tão pobre!
Se
Bemis não foi bastante forte, ela sobreviverá àquela casa de Dacar, àquela
multidão de Buenos Aires, num mundo onde apenas haverá espetáculos
desnecessários e quase tão irreais quanto os de um livro...
Jacques,
porém, inclina-se para ela e fala-lhe com doçura. Geneviève esforça-se por crer
nessa imagem que ele faz de si, nessa ternura de essência divina. Tenta amar o
símbolo do amor: para defender-se, conta apenas com essa fraca imagem...
À
noite, encontrará na volúpia esse ombro frágil, esse frágil refúgio, e nele
mergulhará o rosto como um animal que vai morrer...
VIII
—Aonde
me leva? Por que me leva para lá?
Este
hotel a desagrada, Geneviève? Quer que partamos outra vez?
—
Sim, vamos partir... — responde com receio.
Os
faróis iluminavam mal. Mergulhava-se com dificuldade na noite como num buraco.
De vez em quando, Bemis lançava um olhar a seu lado: Geneviève estava pálida.
—
Está com frio?
—
Um pouco, mas isso não é nada. Esqueci-me de trazer o casaco de pele.
Parecia
uma menina muito sem juízo. Sorriu.
Agora
chovia. "Porcaria", pensou Jacques, mas ainda acreditava que assim
são as primícias do paraíso terrestre.
Próximo
a Sens, foi preciso mudar uma vela do carro. Esquecera a lanterna — outro
descuido. Tateou sob a chuva com uma chave errada. — Deveríamos ter tomado o
trem — repetia obstinadamente. Preferia seu carro por causa da imagem que lhe
dava da liberdade: bela liberdade! Aliás, fizera apenas tolices desde a fuga: e
todos esses esquecimentos...
—
Conseguiu?
Geneviève
foi para perto dele. Sentia-se de súbito prisioneira: uma, duas árvores de
sentinela e esta cabana estúpida, de cantoneiro. "Meu Deus, que ideia esquisita...
Será que teria sempre de viver aqui?”
Quando
acabou, ele lhe tomou as mãos:
—
Você está com febre!
Ela
sorriu...
—
Sim... Estou um pouco cansada; gostaria de dormir...
—
Mas por que desceu sob esta chuva?
O
motor continuava a falhar, com ruídos e arrancos.
—
Será que vamos chegar, Jacques? — Geneviève cochilava, possuída de febre. —
Chegaremos?
—
Claro, meu amor, daqui a pouco estaremos em Sens.
Ela
suspirou. O que tentava estava acima de suas forças. Tudo por causa do motor
que resfolegava. As árvores eram pesadas, vindo ao seu encontro, uma após a
outra.
“Não
é possível”, pensava Bemis, "ainda vai ser preciso parar”. Receava a
imobilidade da paisagem: ela fazia eclodir pensamentos que estavam ainda
germinando. Temia certa força que se patenteava.
—
Minha pequena Geneviève, não pense nesta noite... Pense antes... Pense na... Na
Espanha. Será que irá gostar da Espanha?
Uma
voz fraca e longínqua respondeu-lhe:
"Sim,
Jacques, estou feliz, mas... temo os bandidos." Viu-a sorrir com meiguice.
Essa frase preocupou Bemis, essa frase que se referia tão somente à viagem à
Espanha: esse conto de fadas... Sem fé. Um exército sem fé. Um exército sem fé
não pode conquistar. "Geneviève, é a noite, é esta chuva que estraga a
nossa confiança..." Reconheceu de súbito que aquela noite assemelhava-se a
uma interminável enfermidade. Sentiu na boca o sabor da doença. Era uma dessas
noites sem esperança de aurora. Lutava, escondia para si mesmo as palavras:
"A alvorada seria uma cura, se não chovesse mais até lá...se...” Havia
algo doentio em ambos, mas ele não sabia. Acreditava que a terra é que estava
podre, que a noite é que estava enferma. Ansiava pela aurora, tanto quanto os
condenados que dizem: "Respirarei quando o dia voltar” ou "serei
jovem quando a primavera chegar...”
—
Geneviève, pense em nossa casa de lá...
Reconheceu
imediatamente que jamais deveria ter dito aquilo. Imagem alguma conseguia edificar-se
em Geneviève.
"Sim,
nosso lar...” Ela tentava dizer qualquer coisa. Seu calor escapava, e fugia-lhe
todo entusiasmo.
Agitavam-se
nela pensamentos que desconhecia, que formavam palavras, pensamentos que lhe
causavam medo.
Como
não conhecia os hotéis de Sens, parou sob um poste para consultar o guia. Uma
luz já quase extinta removia as sombras, fazendo ressaltar no muro decorado um
letreiro gasto e deslocado: “Bicicletas.” Pareceu-lhe que era a mais triste e
vulgar palavra que jamais lera. Símbolo de uma vida medíocre. Pareceu-lhe que
muitas coisas na sua vida de outrora eram medíocres, mas que jamais o
percebera.
—
Tem fósforos, burguês? — Três esguios rapazes olhavam-no, sacaneando. — Os
americanos procuram o caminho... — Encararam depois Geneviève.
—
Deem o fora, moleques — resmungou Bemis.
—
E essa vagabunda aí? Se visse a nossa do 29!...
Geneviève
inclina-se para Jacques um pouco assustada.
—
O que eles disseram?... Eu lhe imploro, vamos embora.
—
Mas, Geneviève...
Ele
fez um esforço e calou-se. Era preciso achar um hotel para ela... Esses rapazes
bêbedos... que importa? Pensou depois que ela estava com febre e sofria —
gostaria de ter-lhe poupado aquele encontro.
Com uma doentia obstinação, censurou-se por
envolvê-la em coisas inconvenientes. Ele...
O
Hôtel du Globe estava fechado. À noite, todos os pequenos hotéis tinham o ar de
armarinhos. Bemis bateu com persistência na porta, até que o vigia noturno, num
passo arrastado, entreabriu-a.
—
Lotado.
—
Eu lhe imploro, minha mulher está doente! — insistiu Bemis. A porta foi
novamente fechada e os passos perderam-se no corredor.
Tudo
então se unia contra eles?...
—
O que ele disse? — perguntou Geneviève. — Por que, por que nem mesmo respondeu?
Bemis
foi tentado a dizer que não estavam na praça Vendôme e que ali os pequenos
hotéis, quando enchem a barriga, fecham-se e entregam-se ao sono. Nada mais normal
Sentou-se sem nada dizer. Seu rosto brilhava de suor. Não partiu imediatamente,
mas fixou o olhar na calçada iluminada, enquanto a chuva corria-lhe pelo
pescoço; sentia-se como se tivesse de remover a inércia da Terra inteira.
Novamente aquela ideia estúpida: quando voltar o dia...
Era
realmente necessário que uma palavra humana fosse pronunciada naquele instante.
Geneviève tentou:
—
Tudo isso não significa nada, meu amor. É preciso lutar pela nossa felicidade.
Bemis
contemplou-a: "Sim, você é muito generosa." Isso o comoveu. Desejaria
abraçá-la, mas a chuva, o desconforto, a fadiga... Tomou-lhe, entretanto, a mão
e sentiu que a febre subia, dominava a cada segundo aquela carne; contudo,
acalmava-se, pensando: "Mandarei preparar-lhe um grogue bem quente. Isso
não será nada. Um grogue fervendo. Eu a envolverei em cobertores. Riremos,
lembrando essa viagem difícil" Experimentou uma vaga impressão de
felicidade. Porém, como a vida de agora se ajustava mal a esses sonhos! Dois
outros hotéis nem sequer responderam. Aqueles sonhos! Era necessário renová-los
após cada parada e a cada vez sua evidência tomava-se menos potente, diminuía
sua possibilidade de realização.
Geneviève
calara-se. Sentiu que ela não lamentaria, não diria mais nada. Podiam rodar
horas, dias: ela nada diria. Nunca diria mais nada. Torcesse-lhe o braço: ela
nada diria... "Divago, sonho!"
—
Geneviève, meu bem, está passando mal?
—
Não, acabou, já estou melhor.
Agora
extinguira-se nela sua esperança em tantas coisas. Renunciava. Por quem? Por
ele. Por coisas que Bemis jamais poderia lhe dar. Esse “já estou melhor"
era como uma mola partida. Geneviève estava cada vez mais submissa. Irá, assim,
de “melhor" em “melhor" e, no fim, terá renunciado à felicidade.
Quando estiver completamente bem... “Ora! Que imbecil eu sou: ainda
sonho."
Hôtel
de l’Espérance e d'Anglaterre. Preços especiais para os viajantes do comércio.
“Apoie-se em meu braço, Geneviève... Claro, um quarto. A senhora está doente.
Um grogue, depressa! Um grogue fervendo." Preços especiais para os
viajantes do comércio. Por que essa frase é tão triste? “Sente-se nesta
poltrona, será melhor." Por que o grogue demora? Preços especiais para os
viajantes do comércio.
A
velha criada apressava-se. “Eis aqui, minha senhora. Pobre senhora. Ela está
tão trêmula, tão pálida... Vou aquecer-lhe a cama. É no 14, um quarto confortável
e grande. Senhor, quer preencher as fichas?" Com uma caneta suja entre os
dedos, notou que seus sobrenomes eram diferentes. Pensou que estava submetendo Geneviève
à complacência dos criados. “Por minha causa. Falta de gosto.” Foi ela ainda
quem ajudou: "Amantes", disse ela. “Não é mais terno?”
Pensavam
em Paris, no escândalo. Viam agitar-se diferentes rostos. Para eles, algo
difícil apenas começava; evitavam, porém, as menores palavras, temerosos de se
encontrarem em seus pensamentos.
E
Bemis compreendeu que, até aquele momento, houve apenas um motor funcionando
mal, algumas gotas de chuva e dez minutos perdidos à procura de um hotel.
Vinham deles próprios as extenuantes dificuldades que lhes pareceram
insuperáveis. Geneviève inquietava-se por sua causa, pois já se sentia
esgotada, tal a intensidade de seus sentimentos.
Bemis
pegou suas mãos, mas reconheceu que as palavras de nada valiam.
Ela
dormia. Ele não pensava no amor. Sonhava de maneira estranha. Reminiscências. A
chama do candeeiro. Era preciso alimentá-la depressa e também protegê-la do
vento que soprava forte.
Incomodava-o
sobretudo esse desprendimento. Ele a queria ávida de bens, desejando
ardentemente as coisas e gritando, como uma criança, para alimentar-se delas.
Então, apesar de sua indigência, muito teria a dar-lhe. Ajoelhou-se, porém,
pobre ante aquela criança que não tinha fome.
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