sábado, 10 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 46

  
            Com muito dinheiro, é possível que a tensão entre Consuelo e Antoine se suavizasse. A escrita não enriquecera Saint-Exupéry, pelo menos não o suficiente para enfrentar suas extravagâncias pessoais, como a Bugatti e o avião particular. Em 1929, quando Correio Sul foi publicado, o contrato da Gallimard continha uma cláusula para a aceitação de pelo menos seis outras obras, porém a modesta receita de Voo Noturno não convenceu o autor de que poderia viver de seus livros. Inevitavelmente, o grande sonho dos escritores — o grande golpe que o livraria para sempre das dificuldades financeiras — o possuía.

            Após o acidente de Saint-Raphael, ele foi obrigado a aceitar um cargo no serviço de relações públicas da Air France. Assim dissipou-se a esperança de poder ganhar bem a vida na aviação. Seu salário de 3.500 francos era apenas suficiente para pagar o consumo mensal de seus cigarros preferidos, os Craven A, como confessou a Jean Chitry, seu superior hierárquico. Suas responsabilidades abrangiam palestras no exterior, que lhe asseguravam 1.000 francos extras cada vez que pilotava um avião em direção a uma dessas reuniões. Durante os primeiros sete meses do contrato, a partir de abril de 1934, seus ganhos chegaram a mais de 40 mil francos, que se acrescentavam aos direitos autorais de Voo Noturno e aos honorários recebidos por diversas contribuições ao semanário ilustrado Marianne.

            Havia três alternativas para tentar acabar com essa renda insuficiente: imaginar uma invenção rentável, escrever para o cinema ou ganhar o prêmio por bater o recorde de um voo de longa distância. Nos meses seguintes, tentou tirar proveito dessas três possibilidades, mas acabou ficando sem o dinheiro necessário para pagar as contas de gás, energia elétrica e telefone.

            Em dezembro de 1934, patenteou sua primeira invenção de um sistema de aterrissagem que foi seguida, até 1940, por outras treze. Ele sugeria que elas lhe rendiam muito, porém isso não passava de blefe, pois a maioria não foi patenteada antes de 1939 e 1940. Seus projetos inovadores, junto com sua experiência de aviador, melhoravam a navegação noturna e os sistemas de segurança; também elaborou outros projetos relativos à propulsão de foguetes. Esses inventos altamente técnicos, inspirados por um crescente interesse pela geometria e pelas ciências aplicadas, eram a prova de uma imaginação fértil e variada; contudo, o cinema parecia ser uma via financeira mais promissora. Os produtores americanos consideravam Night Flight, o filme adaptado de Voo Noturno, um grande sucesso. Em Paris, permanecera em cartaz por dez semanas em 1934. Os direitos autorais não corresponderam àquilo que Antoine esperava, porém encontrou uma compensação intelectual nas impressionantes cenas de voo, que, em sua opinião, recriavam fielmente pela primeira vez a atmosfera real da aviação civil.

           
Naquela época, estava terminando o roteiro de um longa-metragem: Anne-Marie, iniciado na América do Sul em 1931 e realizado quatro anos mais tarde por Raymond Bernard, filho do dramaturgo Tristan Bernard. A trama não possuía a simplicidade de Correio Sul nem a riqueza dos temas morais de Voo Noturno. Há cinco aviadores fascinados pela mesma mulher, Anne-Marie, aviadora e precursora na aeronáutica, cujo papel foi representado pela atriz francesa Annabella, que, logo após, mudou-se para Hollywood e casou-se com Tyrone Power. No final da história, os aviadores são preteridos em favor de um sexto personagem, um inventor, que salva Anne-Marie quando ela está realizando um voo de prova noturno no meio de uma violenta tempestade. Ele utiliza as reservas de eletricidade e todas as luzes da cidade para lhe enviar uma mensagem em Morse e guiá-la até uma pista de pouso. Três dos pilotos de provas, designados como o camponês, o amante e o boxeador, foram claramente inspirados em Guillaumet, Mermoz e Marcei Reine. Os outros três personagens masculinos, o inventor, o pensador e o detetive, são três facetas de Saint-Exupéry, que lhe permitirão ao mesmo tempo seduzir a moça, morrer num acidente de avião e manipular toda a história.

            O episódio mais curioso ocorre num encontro entre o detetive e o inventor. Os dois são prestidigitadores eméritos, como o próprio Saint-Exupéry, mas o inventor sente um prazer maligno ao destruir o efeito obtido pelo detetive, revelando seus truques. Na vida real, nada exasperava tanto Saint-Exupéry quanto a revelação de seus truques de mágica.

            À medida que se desenrola a complicada trama, só o inventor e o pensador continuam com chances de ganhar o coração de Anne-Marie. O principal talento do último é escrever cartas de amor, porém morre num acidente aéreo, deixando assim o campo livre para o inventor. No final, o Saint-Exupéry detetive tem a honra e a vantagem de empurrar o Saint-Exupéry inventor para os braços de Anne- Marie, exortando a jovem: “Beije-o. É um homem”.

            A maneira notável com que Saint-Exupéry incluía em todos os seus escritos uma imagem de si mesmo, desde L’Évasion de Jacques Bernis até O Pequeno Príncipe, possibilita infinitas especulações sobre os sentidos ocultos do filme. O roteiro contém elementos de seus temas predominantes, particularmente a solidariedade e a coragem.

             Mas Anne-Marie surpreende no conjunto de sua produção literária; por um lado, a heroína é uma mulher muito audaciosa que poderia ter sido inspirada em Maryse Bastié e, por outro, o inventor a conquista mais por sua habilidade técnica que por sua bravura ou suas qualidades morais exemplares.

            Talvez não se deva ver nesse roteiro nada além de uma tentativa de ganhar dinheiro com essa arte popular. Nos anos seguintes, Saint- Exupéry escreveu outros roteiros que foram rejeitados, porém em 1936 fez a adaptação de Correio Sul para um filme que se transformou em grande sucesso. Ele mesmo filmou a maioria das cenas de voo no deserto, como dublê do famoso ator Pierre Richard-Willm. Todavia, seu maior sucesso não foi assinado. Ele escreveu e dirigiu um filme, Atlantique Sud, que comemorava a centésima travessia aérea entre a África e a América do Sul. Esse filme de uma hora talvez seja o documentário mais famoso do cinema francês. Ainda era projetado doze anos após sua estreia. Saint-Exupéry negou-se a aparecer nos créditos, porque tanto o filme quanto a redação de artigos faziam parte de seu contrato de assalariado na Air France.


            Em maio de 1935, antes de concluir o roteiro de Anne-Marie, Saint-Exupéry regressou à aviação com a esperança de ganhar um importante prêmio se conseguisse bater um recorde de longa distância. Interessou-se em primeiro lugar pelo trajeto Paris-Saigon, e, embora seu desempenho tenha acabado em dezembro com um espetacular acidente no deserto, a aventura transformou-o em herói nacional.

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