sexta-feira, 9 de junho de 2017

VOO NOTURNO - 8

Os secretários cochilavam nos escritórios de Buenos Aires, quando Rivière entrou. Não havia tirado o casaco, nem o chapéu. Parecia sempre um eterno viajante. Os cabelos grisalhos e as vestimentas anônimas se adaptavam a todos os cenários. Sua baixa estatura deslocava pouco ar e ele passava quase despercebido. Contudo, com uma onda de entusiasmo animou os homens. Os secretários se agitaram, o chefe do escritório examinou com urgência os últimos papéis, as máquinas de escrever vibraram.

O telefonista introduzia suas fichas no quadro e anotava sobre um livro espesso os telegramas.

Rivière sentou-se e leu.

Depois da prova do Chile, relia a história de um dia feliz em que as coisas se ordenaram por elas mesmas, em que as mensagens, das quais os aeroportos transpostos se libertavam um após outro, eram sóbrios boletins de vitória.

O correio da Patagônia também conseguia progressos rapidamente: estávamos adiantados, pois do Sul para o Norte o vento soprava sua grande onda favorável.

— Passe-me as mensagens meteorológicas.

Cada aeroporto vangloriava-se do seu tempo bom, do céu transparente e da brisa leve. Um entardecer dourado havia vestido a América. Rivière alegrou-se com a boa vontade das coisas. Naquele momento, em algum lugar, o correio da Patagônia lutava com a aventura da noite, mas com as melhores chances de vencer.

Rivière afastou o caderno.

“Tudo bem!”

E saiu para dar uma olhada nos serviços. O vigilante noturno velava a metade do mundo.


Parou diante de uma janela aberta e observou a noite. Ela continha Buenos Aires, mas também, como uma vasta nave, a América. Não se admirou desse sentimento de grandeza: o céu de Santiago do Chile era estrangeiro, no entanto, uma vez que o correio estivesse a caminho da capital chilena, vivíamos, de um extremo ao outro da linha, sob a mesma abóbada profunda.

Agora, o brilho das luzes de bordo de outro correio, cuja voz ouvia-se nos receptores de TSF., era visto pelos pescadores da Patagônia. A inquietação de um avião voando, quando pesava sobre Rivière, pesava também sobre as capitais e as províncias, com o ronco do motor.

Feliz por aquela noite tranquila, lembrava-se de noites agitadas, em que o avião lhe parecia perigosamente enterrado na escuridão e tão difícil de ser socorrido. Desde o posto de rádio de Buenos Aires, seguia-se o seu lamento misturado ao barulho das tempestades. Sob aquele invólucro surdo, a preciosidade da onda musical se perdia. Que angústia no canto menor de um correio, lançado como uma flecha cega em direção aos obstáculos da noite!


Rivière pensou que o lugar de um inspetor, em uma noite de vigília, era no escritório.

— Encontrem Robineau.

Ele estava prestes a transformar um piloto em amigo. Tinha aberto sua valise diante dele, no hotel, e lhe mostrava aquelas pequenas coisas que fazem com que os inspetores se assemelhem ao resto dos homens: algumas camisas de gosto duvidoso, uma bolsa com objetos de higiene pessoal e também a fotografia de uma mulher magra, que o inspetor pendurou na parede. Dessa forma, fazia a Pellerin a humilde confissão de suas necessidades, das suas ternuras, de seus pesares. Alinhando em uma ordem miserável seus tesouros, expunha diante do piloto sua miséria. Um eczema moral. Mostrava sua prisão.

No entanto, para Robineau, como para todos os homens, existia uma pequena luz. Ele experimentou uma grande satisfação ao tirar um pequeno estojo, cuidadosamente embrulhado, do fundo da valise. Durante um tempo passou os dedos sobre ele, sem dizer nada. Depois, abrindo finalmente as mãos, disse:

— Trouxe do Saara...

O inspetor corou por ter ousado fazer tal confidência. Consolava-se de seus dissabores, de seu infortúnio conjugal e de toda essa verdade sem cor, com pedrinhas escuras que abriam uma porta sobre o mistério.

Corando um pouco mais, disse:

            — Encontramos iguais no Brasil.

E Pellerin deu tapinhas nas costas do inspetor, que se debruçava sobre a Atlântida.

Por pudor, Pellerin perguntou:

— Você gosta de geologia?

— É a minha paixão.

Sozinho na vida, as pedras tinham sido agradáveis para ele.

Quando o chamaram, Robineau ficou triste, mas recobrou sua dignidade.

—Devo deixá-lo. O senhor Rivière precisa de mim para tomar algumas decisões sérias.

Quando Robineau entrou no escritório, Rivière já havia se esquecido dele. Meditava diante de um mapa mural, no qual estava destacada, em vermelho, toda a rede da Companhia. O inspetor esperou suas ordens. Depois de longos minutos, Rivière, sem virar a cabeça, perguntou:

— O que você acha desse mapa, Robineau?

Algumas vezes, ao sair de um sonho, apresentava enigmas.

—Este mapa, senhor diretor...

O inspetor, verdadeiramente, não achava nada a respeito dele. No entanto, olhando-o com ar severo, inspecionou por alto a Europa e a América. Rivière, por outro lado, prosseguia, sem partilhar, suas meditações: “O traçado dessa rede é belo, mas duro. Ela nos custou muitos homens, e homens jovens. Impõe-se aqui, com a autoridade das coisas realizadas, mas quantos problemas apresenta!”. Contudo, para Rivière, o fim era o que contava, acima de tudo.

Robineau, de pé ao lado de Rivière, sempre olhando fixa mente para o mapa à sua frente, pouco a pouco, se recompôs. Não esperava nenhuma compaixão da parte dele.

Uma vez arriscara, confessando sua vida destroçada por conta de uma enfermidade ridícula, e Rivière lhe respondeu com uma brincadeira:

“Se de um lado isso o impede de dormir; de outro, estimulará sua atividade”.

Era apenas uma meia brincadeira, pois Rivière costumava afirmar: “Se as insônias de um músico o fazem criar belas obras, são belas insônias”.

Um dia havia lhe dito, mostrando Leroux: “Observe como é bela essa feiura que afasta o amor...” Tudo o que Leroux tinha de grandioso devia, talvez, àquela desgraça que havia limitado toda a sua vida ao trabalho.

— Você é amigo de Pellerin?

— Hum!...

— Não o censuro por isso.

Rivière deu meia-volta e, com a cabeça inclinada, caminhando a passos curtos, levou consigo Robineau. Tinha um sorriso triste, que Robineau não compreendeu.

— Somente... somente você é o chefe.

— Sim - assentiu Robineau.

Rivière pensou que era assim que, a cada noite, uma ação se desenrolava no céu, como um drama. Um arqueamento das vontades podia provocar um desastre e talvez tivessem de lutar muito até o sol nascer.

— Você deve se manter no seu papel.

Rivière escolhia suas palavras:

— Talvez, na próxima noite, você ordene a esse piloto uma decolagem perigosa: e ele terá de obedecer.

— Sim...

— Você quase dispõe da vida dos homens, e de homens que valem mais do que você...
            Pareceu hesitar.

— Isso é grave.

Rivière, sempre caminhando a passos curtos, calou-se por alguns segundos.

—Se é por amizade que lhe obedecem, você os engana. Não pode exigir nenhum sacrifício.

— Não... seguramente.

— E, se eles acreditam que a sua amizade irá poupá-los de certas tarefas ingratas, você os engana da mesma forma: assim, será preciso que lhe obedeçam. Sente-se ali.

Suavemente, Rivière empurrou Robineau com a mão em direção ao seu escritório.

— Vou lhe mostrar o seu lugar, Robineau. Se você está cansado, não cabe a esses homens apoiá-lo. Você é o chefe. Sua fraqueza é ridícula. Escreva.

— Eu...

— Escreva: “O inspetor Robineau inflige tal sanção ao piloto Pellerin por tal motivo...”. Você encontrará um motivo qualquer.

— Mas, senhor diretor!

— Faça como se você me compreendesse, Robineau. Ame aqueles a quem você comanda. Mas sem lhes dizer que os ama.

Novamente, e com zelo, Robineau faria com que limpassem os eixos de hélice.

Uma pista de socorro comunicou por T.F.S: “Avião à vista. Avião sinaliza: baixa de regime, vou aterrissar”.

Sem dúvida, perderiam cerca de meia hora. Rivière experimentou aquela irritação que se sente quando o trem expresso para sobre a via e os minutos deixam de liberar seu lote de planícies. O ponteiro grande do relógio percorria agora um espaço morto: tantos eventos poderiam ter ocorrido naquele compasso de espera. Rivière saiu para enganar a espera e a noite lhe pareceu vazia como um teatro sem ator. “Uma noite dessas, perdida!”. Olhava com rancor, através da janela, aquele céu sem nuvens, repleto de estrelas, as balizas divinas e a lua, todo ouro de uma noite desperdiçada.

Mas, assim que o avião decolou, aquela noite voltou a ser emocionante e bela para Rivière. Ela carregava a vida em seus flancos. Rivière tomava precauções:

— Como estava o tempo? — mandou perguntar à tripulação.

Passaram-se dez minutos.

— Muito bom.

Em seguida, vieram alguns nomes de cidades ultrapassadas, o que, para Rivière, nessa luta, significava terras conquistadas.



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