domingo, 4 de junho de 2017

CORREIO SUL - 7

Lendo esta palavra de Bernis, Geneviève, fechei os olhos e lembrei-me de você ainda menina. Estávamos então com 13 anos e você tinha 15. Como poderia envelhecer em nossas lembranças? Você continua a ser uma criança frágil, e, quando ouvíamos falar em você, era a mesma menina que descobríamos em perigo, surpresos, diante da vida.

            Enquanto os outros levavam para o altar uma mulher já feita, era com uma criança que, no mais longínquo da África, Bernis e eu noivávamos. Você foi, criança de 15 anos, a mais jovem das mães. Na idade em que se ferem as pernas nos ramos, você exigia um verdadeiro berço, brinquedo reaL E enquanto entre os seus, que não desconfiavam do prodígio, você brincava de ser mulher, fazendo humildes gestos femininos, vivia, ao mesmo tempo, aos nossos olhos, uma lenda encantada e entrava no mundo por uma porta mágica — como num baile de máscaras, um baile de criança — disfarçada em esposa, mãe e fada...

            Porque você era fada. Eu me lembro. Você morava numa velha casa de paredes espessas. Revejo-a debruçada à janela em forma de seteira, contemplando a lua. Ela subia. E a planície começava a sussurrar: das asas das cigarras saiam o fretenir, do ventre das rãs, os coaxos, e a sineta tocava no pescoço dos bois, que se recolhiam aos estábulos. A hia subia. Às vezes, elevavam-se da vila dobres dos sinos, trazendo aos grilos, aos trigais e às cigarras a inexplicável ideia da morte. E você se inclinava ainda mais, apenas preocupada com os noivos, pois nada é tão ameaçado quanto a esperança. Mas a lua subia. As corujas chamavam-se umas às outras para o amor e abafavam com seus gritos o dobre dos sinos. Os cães errantes assediavam a lua em círculo e uivavam em sua direção. A cada árvore, cada relva, cada junco, todas as coisas tinham vida. E a lua subia.

            Então, você nos tomava as mãos e dizia-nos que ouvíssemos, pois aqueles eram os ruídos da terra, que nos tranquilizavam e eram bons.

            Que abrigo era para você aquela casa e aquela natureza que em tomo dela verdejava! Era tão grande a harmonia entre você e as tílias, os carvalhos, os rebanhos, que a chamávamos princesa deles. Quando, ao crepúsculo, o mundo se preparava para receber a noite, sua expressão tomava-se, gradativamente, tranquila. “O rendeiro recolhe os animais." Você o lia nas luzes longínquas dos estábulos. Um ruído surdo e você anunciava: "Estão fechando a comporta." Em tudo reinava a ordem. Finalmente, o expresso das sete horas da noite provocava uma espécie de trovoada, atravessava a província e evadia-se, varrendo finalmente de seu mundo tudo quanto é inquieto, móvel e indeciso como um rosto nas vidraças do comboio. Depois era a refeição na espaçosa sala de jantar, à meia-luz. Você se tomava a rainha da noite, pois nós a observávamos ininterruptamente, como espiões. Sentava-se em silêncio entre as pessoas idosas, no centro dos lambris, e, inclinada para a frente oferecendo apenas a cabeleira ao círculo dourado dos abajures, coroada de luzes, você reinava. Parecia-nos eterna por estar assim tão ligada às coisas, tão segura de tudo, de seus pensamentos, de seu futuro. Você reinava...

            Queríamos, porém, saber se era possível fazê-la sofrer, encerrá-la num abraço até sufocá-la, pois sentíamos em você uma presença humana que desejávamos trazer à luz. Uma ternura, uma angústia que queríamos descortinar. Bemis então a apertava nos braços: você corava. Ele a apertava mais forte ainda e seus olhos tomavam-se brilhantes de lágrimas, sem que seus lábios perdessem o encanto, como acontece às velhas que choram. Bemis explicava-me que aquelas lágrimas vinham do coração, que se enchia subitamente, mais preciosas que os diamantes, e quem as bebesse se tomaria imortal. Dizia-me também que, tal como as fadas que moram sob as águas, você se escondia no mais recôndito de seu ser e ele era possuidor de mil sortilégios para trazê-la à superfície, dos quais o mais infalível era fazê-la chorar. Era assim que lhe roubávamos um pouco de amor. Quando, porém, a soltávamos, você ria e aquele riso nos confundia. Como um pássaro malpreso foge.

            "Leia versos para nós, Geneviève..."

            Você lia pouco, e acreditávamos que já conhecia tudo. Jamais a víamos surpresa.

            “Leia versos para nós..."

            Você lia e, a nosso ver, eram ensinamentos sobre o mundo e sobre a vida que vinham de sua sabedoria, e não do poeta. As angústias dos amantes e os prantos das rainhas transformavam-se em grandes coisas tranquilas. Em sua voz, morria-se de amor com tanta calma...

            "Geneviève, é verdade que se morre de amor?”

            Você interrompia a leitura e refletia solenemente. Sem dúvida, procurava a resposta no meio das folhagens, dos grilos, das abelhas, respondendo “sim”, pois as abelhas morrem: era necessário e pacífico.

            “Geneviève, o que é um amante?”

            Tentávamos fazê-la enrubescer, mas não conseguíamos. Um pouco mais séria, você olhava de frente o lago, onde tremia a lua. Pensávamos que, para você, um amante era aquela claridade.

            “Geneviève, você tem um amante?”

            Desta vez ficaria rubra! Mas não: sorria sem embaraço e sacudia a cabeça. Em seu reino, uma estação desabrocha as flores; o outono, os frutos; outra, o amor: a vida é simples.

            "Sabe o que faremos no futuro, Geneviève?" Pretendíamos fasciná- la e chamávamo-la mulher frágil. “Seremos conquistadores, mulher frágil" Nós lhe ensinávamos a vida: os conquistadores que retomam cobertos de glória e tomam por amante aquela a quem amam.

            “Então seremos seus amantes. Escrava, leia versos para nós...”

            Mas você parara de ler e fechara o livro. Como a árvore que sabe que cresce, como a semente que se desenvolve à luz do dia, assaltava-a bruscamente a segurança da vida. Isso era o essencial. Nós éramos conquistadores de fantasia, mas você se apoiava nas suas plantas, nas suas abelhas, nas suas cabras, nas suas estrelas, e ouvia o coaxar das rãs, tirava confiança de toda aquela vida que se edificava ao seu redor na paz noturna e em seu próprio corpo, dos pés à cabeça, pelo destino inexprimível e, apesar disso, bastante seguro.

            Como a lua ia alta e estava na hora de dormir, você fechava a janela e, atrás da vidraça, a lua brilhava. Dizíamos então que você havia encerrado o céu como dentro de uma vitrine, que a lua e uma porção de estrelas eram prisioneiras. Através de todos os símbolos e armadilhas, procurávamos conduzi-la, Geneviève, sob as aparências, àquele fundo de mares para onde nossa inquietude nos atraía.

            ... Encontrei a nascente. É dela que eu precisava para repousar da viagem. Está comigo. As outras... Há mulheres que são, como dizíamos, lançadas ao longe, após o amor, lançadas para as estreias, e sua existência e condicionada pela nossa imaginação. Geneviève... você se lembra, dizíamos que em seu intimo havia um mundo. Encontrei-a como se encontra o sentido das coisas e caminho a seu lado num mundo de que, finalmente, descubro o âmago...

            Ela emergia das coisas para Bemis. Após mil desilusões, era a intermediária para mil esperanças. Devolvia-lhe os castanheiros, o bulevar, a fonte. Cada coisa trazia novamente um segredo dentro da alma. 0 parque não era mais cuidado, aparado e limpo como para um proprietário americano; agora encontrava-se a desordem nas alamedas, as folhas secas, o lenço perdido à passagem dos amantes. Mas esse parque tomava-se uma cilada.

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