Lendo
esta palavra de Bernis, Geneviève, fechei os olhos e lembrei-me de você ainda
menina. Estávamos então com 13 anos e você tinha 15. Como poderia envelhecer em
nossas lembranças? Você continua a ser uma criança frágil, e, quando ouvíamos
falar em você, era a mesma menina que descobríamos em perigo, surpresos, diante
da vida.
Enquanto os outros levavam para o altar uma mulher já
feita, era com uma criança que, no mais longínquo da África, Bernis e eu noivávamos.
Você foi, criança de 15 anos, a mais jovem das mães. Na idade em que se ferem
as pernas nos ramos, você exigia um verdadeiro berço, brinquedo reaL E enquanto
entre os seus, que não desconfiavam do prodígio, você brincava de ser mulher,
fazendo humildes gestos femininos, vivia, ao mesmo tempo, aos nossos olhos, uma
lenda encantada e entrava no mundo por uma porta mágica — como num baile de
máscaras, um baile de criança — disfarçada em esposa, mãe e fada...
Porque você era fada. Eu me lembro. Você morava numa
velha casa de paredes espessas. Revejo-a debruçada à janela em forma de seteira,
contemplando a lua. Ela subia. E a planície começava a sussurrar: das asas das
cigarras saiam o fretenir, do ventre das rãs, os coaxos, e a sineta tocava no
pescoço dos bois, que se recolhiam aos estábulos. A hia subia. Às vezes,
elevavam-se da vila dobres dos sinos, trazendo aos grilos, aos trigais e às
cigarras a inexplicável ideia da morte. E você se inclinava ainda mais, apenas
preocupada com os noivos, pois nada é tão ameaçado quanto a esperança. Mas a
lua subia. As corujas chamavam-se umas às outras para o amor e abafavam com
seus gritos o dobre dos sinos. Os cães errantes assediavam a lua em círculo e
uivavam em sua direção. A cada árvore, cada relva, cada junco, todas as coisas
tinham vida. E a lua subia.
Então, você nos tomava as mãos e dizia-nos que
ouvíssemos, pois aqueles eram os ruídos da terra, que nos tranquilizavam e eram
bons.
Que abrigo era para você aquela casa e aquela natureza
que em tomo dela verdejava! Era tão grande a harmonia entre você e as tílias,
os carvalhos, os rebanhos, que a chamávamos princesa deles. Quando, ao
crepúsculo, o mundo se preparava para receber a noite, sua expressão tomava-se,
gradativamente, tranquila. “O rendeiro recolhe os animais." Você o lia nas
luzes longínquas dos estábulos. Um ruído surdo e você anunciava: "Estão
fechando a comporta." Em tudo reinava a ordem. Finalmente, o expresso das
sete horas da noite provocava uma espécie de trovoada, atravessava a província
e evadia-se, varrendo finalmente de seu mundo tudo quanto é inquieto, móvel e
indeciso como um rosto nas vidraças do comboio. Depois era a refeição na
espaçosa sala de jantar, à meia-luz. Você se tomava a rainha da noite, pois nós
a observávamos ininterruptamente, como espiões. Sentava-se em silêncio entre as
pessoas idosas, no centro dos lambris, e, inclinada para a frente oferecendo
apenas a cabeleira ao círculo dourado dos abajures, coroada de luzes, você
reinava. Parecia-nos eterna por estar assim tão ligada às coisas, tão segura de
tudo, de seus pensamentos, de seu futuro. Você reinava...
Queríamos, porém, saber se era possível fazê-la sofrer, encerrá-la
num abraço até sufocá-la, pois sentíamos em você uma presença humana que
desejávamos trazer à luz. Uma ternura, uma angústia que queríamos descortinar.
Bemis então a apertava nos braços: você corava. Ele a apertava mais forte ainda
e seus olhos tomavam-se brilhantes de lágrimas, sem que seus lábios perdessem o
encanto, como acontece às velhas que choram. Bemis explicava-me que aquelas
lágrimas vinham do coração, que se enchia subitamente, mais preciosas que os
diamantes, e quem as bebesse se tomaria imortal. Dizia-me também que, tal como
as fadas que moram sob as águas, você se escondia no mais recôndito de seu ser
e ele era possuidor de mil sortilégios para trazê-la à superfície, dos quais o mais
infalível era fazê-la chorar. Era assim que lhe roubávamos um pouco de amor.
Quando, porém, a soltávamos, você ria e aquele riso nos confundia. Como um
pássaro malpreso foge.
"Leia versos para nós, Geneviève..."
Você lia pouco, e acreditávamos que já conhecia tudo.
Jamais a víamos surpresa.
“Leia versos para nós..."
Você lia e, a nosso ver, eram ensinamentos sobre o mundo
e sobre a vida que vinham de sua sabedoria, e não do poeta. As angústias dos
amantes e os prantos das rainhas transformavam-se em grandes coisas tranquilas.
Em sua voz, morria-se de amor com tanta calma...
"Geneviève, é verdade que se morre de amor?”
Você interrompia a leitura e refletia solenemente. Sem
dúvida, procurava a resposta no meio das folhagens, dos grilos, das abelhas, respondendo
“sim”, pois as abelhas morrem: era necessário e pacífico.
“Geneviève, o que é um amante?”
Tentávamos fazê-la enrubescer, mas não conseguíamos. Um
pouco mais séria, você olhava de frente o lago, onde tremia a lua. Pensávamos
que, para você, um amante era aquela claridade.
“Geneviève, você tem um amante?”
Desta vez ficaria rubra! Mas não:
sorria sem embaraço e sacudia a cabeça. Em seu reino, uma estação desabrocha as
flores; o outono, os frutos; outra, o amor: a vida é simples.
"Sabe o que faremos no futuro,
Geneviève?" Pretendíamos fasciná- la e chamávamo-la mulher frágil.
“Seremos conquistadores, mulher frágil" Nós lhe ensinávamos a vida: os
conquistadores que retomam cobertos de glória e tomam por amante aquela a quem
amam.
“Então seremos seus amantes. Escrava,
leia versos para nós...”
Mas você parara de ler e fechara o
livro. Como a árvore que sabe que cresce, como a semente que se desenvolve à
luz do dia, assaltava-a bruscamente a segurança da vida. Isso era o essencial.
Nós éramos conquistadores de fantasia, mas você se apoiava nas suas plantas,
nas suas abelhas, nas suas cabras, nas suas estrelas, e ouvia o coaxar das rãs,
tirava confiança de toda aquela vida que se edificava ao seu redor na paz
noturna e em seu próprio corpo, dos pés à cabeça, pelo destino inexprimível e,
apesar disso, bastante seguro.
Como a lua ia alta e estava na hora
de dormir, você fechava a janela e, atrás da vidraça, a lua brilhava. Dizíamos
então que você havia encerrado o céu como dentro de uma vitrine, que a lua e
uma porção de estrelas eram prisioneiras. Através de todos os símbolos e
armadilhas, procurávamos conduzi-la, Geneviève, sob as aparências, àquele fundo
de mares para onde nossa inquietude nos atraía.
... Encontrei a
nascente. É dela que eu precisava para repousar da viagem. Está comigo. As
outras... Há mulheres que são, como dizíamos, lançadas ao longe, após o amor,
lançadas para as estreias, e sua existência e condicionada pela nossa
imaginação. Geneviève... você se lembra, dizíamos que em seu intimo havia um
mundo. Encontrei-a como se encontra o sentido das coisas e caminho a seu lado
num mundo de que, finalmente, descubro o âmago...
Ela emergia das coisas para Bemis.
Após mil desilusões, era a intermediária para mil esperanças. Devolvia-lhe os
castanheiros, o bulevar, a fonte. Cada coisa trazia novamente um segredo dentro
da alma. 0 parque não era mais cuidado, aparado e limpo como para um
proprietário americano; agora encontrava-se a desordem nas alamedas, as folhas
secas, o lenço perdido à passagem dos amantes. Mas esse parque tomava-se uma
cilada.
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