quarta-feira, 14 de junho de 2017

TERRA DOS HOMENS - 9

OS COMPANHEIROS

 I

             Alguns companheiros, entre eles Mermoz, fundaram a linha francesa de Casablanca a Dacar, através do Saara insubmisso. Os motores naquele tempo eram muito pouco resistentes e uma pane entregou Mermoz aos mouros. Hesitaram em massacrá-lo. Guardaram-no prisioneiro uns 15 dias e depois o venderam. E Mermoz recomeçou o serviço sobre aqueles mesmos territórios.

             Quando se abriu a linha da América, Mermoz, sempre na vanguarda, foi encarregado de estudar o trecho de Buenos Aires a Santiago. Depois de construir uma ponte sobre o Saara, devia lançar outra sobre os Andes. Confiaram-lhe um avião que ascendia a 5.200 metros. Os picos da cordilheira sobem a sete miL E Mermoz decolou para procurar as passagens. Depois do areal, Mermoz enfrentava as montanhas: cumes cujos mantos de neve o vento varre, paisagens que empalidecem quando a tempestade vem, remoinhos de ar tão fortes que o piloto, quando é apanhado entre duas muralhas de rocha, tem de travar uma espécie de luta a punhaL Mermoz lançava-se a esses combates sem nada saber do adversário, sem saber se sairia vivo da aventura. Mermoz "experimentava" para os outros.

             Um dia, afinal, de tanto "experimentar”, ficou prisioneiro dos Andes.

             Obrigados a descer, a quatro mil metros de altitude, em um platô de paredes verticais, ele e o mecânico procuraram durante dois dias o meio de fugir. Estavam presos. Então arriscaram a última chance: lançaram o avião no vácuo, movimentando-o aos saltos no chão desigual, duramente, até o precipício. Lançaram-se. Na queda, o avião tomou, enfim, velocidade bastante para obedecer de novo ao comando. Mermoz subiu em face de um pico, passou raspando por ele e, com água esguichando de todos os tubos arrebentados pelo gelo durante a noite, já em pane aos sete minutos apenas de voo, descobriu a planície chilena, em sua frente, como a terra prometida.

             No dia seguinte, recomeçou.

             Quando os Andes ficaram bem-explorados e a técnica da travessia, bem-estabelecida, Mermoz confiou esse trecho ao seu companheiro Guillaumet e foi explorar a noite.

             A iluminação de nossos postos de escala ainda não havia sido feita. E nos campos de aterrissagem era alinhada perante Mermoz, na noite negra, a magra iluminação de três fogueiras de gasolina.

             Ele ia descendo e abrindo as rotas.

             Quando a noite estava bem conquistada, Mermoz experimentou o oceano. E o correio, desde 1931, foi transportado pela primeira vez em quatro dias de Toulouse a Buenos Aires. Na volta, Mermoz sofreu uma pane de óleo no centro do Atlântico Sul, sobre um mar agitado. Um navio o salvou — a ele, ao seu aparelho e à sua tripulação.

             Assim Mermoz havia decifrado as areias, a montanha, a noite e o mar. Havia soçobrado mais de uma vez nas areias, na montanha, na noite, no mar. E sempre que voltava era para partir outra vez.

              Enfim. depois de 12 anos de trabalho, sobrevoando mais uma vez o Atlântico Sul, disse, numa rápida mensagem, que o motor da direita estava falhando. Depois, silêncio.

             A notícia não chegava a ser inquietante. Entretanto, após dez minutos de silêncio, todos os postos de rádio da linha, de Paris a Buenos Aires, começaram sua vigília de angústia. Porque se dez minutos de atraso quase não têm sentido na vida cotidiana, eles assumem, no correio aéreo, uma grave significação. No ventre desse tempo morto um acontecimento ainda desconhecido está encerrado. Insignificante ou sinistro, ele já se resolveu. O destino pronunciou sua sentença e contra essa sentença não há apelação: a mão de ferro dirigiu a tripulação para a amerissagem sem gravidade ou para o esfacelamento. Mas a sentença não é comunicada aos que esperam.

             Qual de nós não conheceu essas esperanças cada segundo mais frágeis, esse silêncio que piora de minuto a minuto como uma doença fatal? Esperamos. Mas as horas passam e pouco a pouco se fez tarde. Fomos obrigados a compreender que nossos companheiros não voltariam, que eles repousavam naquele Atlântico Sul cujos céus tantas vezes haviam rasgado. Mermoz ocultara-se no campo de seus trabalhos como o segador que, tendo amarrado bem seus feixes de trigo, se deita na terra.

             Quando um companheiro morre assim, a sua morte ainda parece um ato que está na ordem normal do ofício. A princípio fere menos, talvez, que qualquer outra morte. Certamente ele está afastado. Sofreu sua última transferência de escala, mas sua presença não nos falta ainda, em profundidade, como poderia nos faltar o pão.

             Temos, com efeito, o hábito de esperar durante muito tempo os encontros. De Paris a Santiago do Chile, esses companheiros de linha estão espalhados pelo mundo, um pouco isolados, como sentinelas que quase não se falam. Só o acaso das viagens reúne aqui e ali os membros dispersos da grande família profissional. Em volta de uma mesa, uma noite, em Casablanca, em Dacar, em Buenos Aires, retomam-se, depois de anos de silêncio, conversas interrompidas e reatam-se velhas lembranças. Depois, é partir novamente. A terra, assim, é ao mesmo tempo deserta e rica. Rica desses jardins secretos, escondidos, difíceis de atingir, mas aos quais o oficio nos conduz sempre, um dia ou outro. A vida nos separa talvez dos companheiros, e nos impede de pensar muito nisso. Eles estão em algum lugar, não se sabe bem onde, silenciosos e esquecidos, mas tão fiéis! E se cruzamos seus caminhos, eles nos sacodem pelos ombros com belos lampejos de alegria. Sim, nós temos o hábito de esperar...

             Mas pouco a pouco descobrimos que não ouviremos nunca mais o riso claro daquele companheiro; descobrimos que aquele jardim está fechado para sempre. Então começa nosso verdadeiro luto, que não é desesperado, mas um pouco amargo.

             Nada, jamais, na verdade, substituirá o companheiro perdido. Ninguém pode criar velhos companheiros. Nada vale o tesouro de tantas recordações comuns, de tantas horas más vividas juntos, de tantas desavenças, de tantas reconciliações, de tantos impulsos afetivos. Não se reconstroem essas amizades. Seria inútil plantar um carvalho na esperança de ter, em breve, o abrigo de suas folhas.

             Assim vai a vida. A princípio, enriquecemos; plantamos durante anos, mas os anos chegam e o tempo destrói esse trabalho, arranca essas árvores. Um a um, os companheiros nos retiram sua sombra. E aos nossos lutos mistura-se então a mágoa secreta de envelhecer.

              Esta é a moral que Mermoz. e tantos outros me ensinaram. A grandeza de uma profissão é talvez, antes de tudo, unir os homens; só há um luxo verdadeiro, o das relações humanas.

             Trabalhando só pelos bens materiais, construimos nós mesmos nossa prisão. Encerramo-nos lá dentro, solitários, com nossa moeda de cinzas que não pode ser trocada por coisa alguma que valha a pena viver.

             Se procuro entre minhas lembranças as que me deixaram um gosto durável, se faço o balanço das horas que valeram a pena, certamente só encontro aquelas que nenhuma fortuna do mundo ter-me-ia presenteado. Não se compra a amizade de um Mermoz, de um companheiro a quem estamos ligados para sempre pelas provas sofridas juntos.

             Esta noite de voo e suas cem mil estrelas, esta serenidade, esta soberania de algumas horas o dinheiro não compra.

             Esta face nova do mundo depois de uma etapa difídl, estas árvores, estas flores, estas mulheres, estes sorrisos docemente coloridos pela vida a que regressamos de madrugada, este mundo de pequenas coisas que nos recompensam, o dinheiro não compra.

             Nem esta noite vivida entre os revoltosos, cuja lembrança agora me vem.

             Éramos três tripulações da Aeropostale. Havíamos descido, ao cair do dia, na costa do rio do Ouro. Meu companheiro Riguelle havia descido primeiro com uma biela partida; um outro camarada, Bourgat, aterrissou então para socorrê-lo, mas não pôde retomar o voo devido a uma avaria sem gravidade. Afinal aterrissei, mas a noite já avançava. Resolvemos salvar o avião de Bourgat, e, para fazer o conserto bem-feito, era preciso esperar a manhã.

             Um ano antes, nossos companheiros Gourp e Erabie, descidos em pane naquele mesmo lugar, haviam sido massacrados pelos revoltosos. Sabíamos que naquele momento também um rezzoiê- de trezentos fuzis estava acampado em algum lugar de Bojador. Nossas três aterrissagens, visíveis de longe, haviam com certeza alertado os revoltosos. Começamos uma vigília que podia ser a última.

             Instalamo-nos para passar a noite. Tiramos dos aviões cinco ou seis caixas de mercadorias e as dispusemos em círculo, depois de esvaziá-las. No fundo de cada caixa, como dentro de uma guarita, acendemos uma pobre vela, malprotegida contra o vento. Assim, em pleno deserto, na crosta nua do planeta, num isolamento dos primeiros anos do mundo, construímos uma aldeia de homens.

             Reunidos para passar a noite na praça grande da nossa aldeia, naquele círculo de areia onde as velas jogavam suas luzes trêmulas, ficamos à espera. A espera da madrugada, que nos salvaria — ou dos mouros. E não sei o que dava àquela noite um gosto de noite de NataL Contamos velhas histórias, fizemos pilhérias e cantamos.

             Saboreávamos o mesmo fervor leve do melhor de uma festa bem- preparada. Entretanto, éramos infinitamente pobres. Vento, areia, estrelas. Um estilo duro para trapistas. Contudo, naquele círculo de areia mal-ihiminado, cinco ou seis homens que não possuíam mais coisa alguma no mundo a não ser suas lembranças trocavam invisíveis riquezas.

             Nós havíamos, finalmente, nos encontrado. Anda-se lado a lado muito tempo, cada um fechado em seu silêncio, ou trocando palavras que não encerram nada. Mas eis a hora do perigo. Então vem a ajuda mútua. Descobre-se que se pertence à mesma comunidade. Cada um se enriquece com a descoberta de outras consciências. Então os homens se olham com um grande sorriso. E parecem prisioneiros libertados que se maravilham com a imensidão do mar.

Jean Mermoz, um dos melhores amigos de Saint-Ex, primeiro a cruzar o Atlântico Sul, 
em 1930.  
Forte, excelente piloto, bonitão de ombros largos, simpático e amigo leal, 
sua perda foi um
 enorme choque para todos os amigos, e para Saint-Exupéry.



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