quinta-feira, 1 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 37


            Em 1931, a vida profissional, pessoal e literária de Saint-Exupéry parecia seguir uma curva ascendente rumo à felicidade e ao sucesso. Os desafios vencidos na África e na América do Sul valeram-lhe uma reputação de audácia e coragem. Algumas semanas antes de abandonar a Argentina, conheceu Consuelo Suncin de Sandoval, sua futura esposa. No final do mesmo ano era publicado seu segundo romance, Vôo Noturno, acolhido por uma crítica entusiasta. No entanto, em vez de rejubilar-se, Saint-Exupéry começou a oscilar desastradamente entre decepções sentimentais e desilusões profissionais. Como aviador, para não aceitar empregos rotineiros, freqüentemente ficava sem trabalho, enquanto suas tentativas de bater recordes de longa distância lamentavelmente fracassavam. Embora escrevesse artigos para jornais e revistas, suas altas ambições literárias fracassaram e só a publicação de Terra dos Homens, em 1939, renovou sua contribuição original à literatura francesa. Seu casamento foi o seu maior fracasso, oscilando entre a exaltação e a amargura.

            Suas relações com Consuelo começaram após um encontro em Buenos Aires, durante uma recepção na Aliança Francesa em honra de escritores e artistas que estavam fazendo uma viagem pelo país, proferindo palestras. A figura dominante do grupo, Benjamin Crémieux, que era colaborador da Nouvelle Revue Française, já encontrara Saint-Exupéry em Paris, nos escritórios da editora Gallimard. Entre os membros do grupo encontrava-se Consuelo, viúva de um escritor guatemalteco, Enrique Gomez Carríllo, personagem extravagante, famoso pelas suas conquistas femininas, seus impetuosos duelos e um livro sobre Mata Hari, fruto de sua amizade com a aventureira.

            Gomez Carríllo e Consuelo teriam sido apresentados um ao outro quando ela estava apenas com 17 anos. No entanto, pesquisas sobre a sua vida feitas em 1993 por um cineasta salvadorenho, Manuel Sorto, provocam dúvidas sobre a veracidade de alguns fatos e datas, até mesmo sobre seu nascimento em El Salvador. Tudo o que a ela se refere é confuso e contraditório, porque Consuelo gostava de manter mistério sobre seu passado. Nos editais de seu casamento com Saint-Exupéry ela declarou ter nascido em 1902, porém não pôde apresentar nenhum atestado, alegando que os arquivos salvadorenhos tinham sido destruídos durante uma revolução. Alguns de seus amigos achavam que ela era mais velha que Antoine pois teria nascido em 1898, porém no seu túmulo figura o ano de 1907.

            Além dos membros da família Suncin, a principal fonte de informação de Sorto é Francisco Mena Guerrero, jornalista e historiador salvadorenho, que entrevistou Consuelo diversas vezes. De acordo com ele, a jovem conheceu Gomez Carrillo em 1924, quando ele tinha 54 anos e ainda vivia com sua segunda esposa. Autor de mais de cinqüenta livros, era correspondente em Paris do jornal madrilenho ABC e de dois jornais argentinos. Após ter-se naturalizado argentino, foi nomeado cônsul da Argentina em Paris e, segundo Consuelo, tornou-se “imensamente rico”.

            A pesquisa salvadorenha revela que o casal viveu maritalmente durante alguns meses antes do casamento, em Nice, em dezembro de 1926. Gomez Carrillo faleceu menos de um ano após essa data, deixando à jovem esposa propriedades na França e na Argentina. Para recuperar sua herança e solicitar uma pensão diplomática do governo argentino, após três anos de viuvez, é que Consuelo decidiu integrar-se à viagem de conferências de Crémieux.

            Desde sua desastrada ligação com Louise de Vilmôrin, cerca de dez anos antes, Saint-Exupéry perdera muitas de suas ilusões românticas. Tornara-se até mesmo um pouco cínico com relação às mulheres, gastando todo seu dinheiro com prostitutas ou admiradoras frívolas. Mas o efeito causado por Consuelo sobre Antoine foi tão imediato quanto o produzido sobre o experiente sedutor que era Gomez Carrillo.

            As fotos da época mostram uma moça bonita e miúda. Seu rosto vivaz e cheio de vitalidade denota um caráter brincalhão e burlesco. Seus grandes olhos escuros brilham de forma provocativa, como se ela fosse consciente da sensibilidade dos homens à sua aparente vulnerabilidade e desejo de proteção.

           
Capa da autobiografia de Consuelo 
de Saint-Exupéry
onde ela revela que o personagem da rosa no 
Pequeno Principe era ela. 
Essa sedução natural era realçada por uma voz doce, com um leve sotaque exótico, que acrescentava um toque mágico a uma personalidade misteriosa e extraordinária, que contrastava com o ambiente monótono de Buenos Aires e com aquele, mais formal, do coquetel da Aliança Francesa.

            Dotada de imaginação fértil, ela mesclava inextricavelmente fatos reais e fictícios. Um amigo sul-americano, Damian-Carlos Bayon, crítico de arte internacional, descreve-a como uma mulher dotada de um excepcional talento para contar histórias. “Eu sabia que suas histórias eram uma versão muito colorida da verdade, mas não me importava com isso; ela era brilhante, trágica, engraçada e divertida, embora às vezes sua exuberância cansasse um pouco. Ela me fez rir muito ao lembrar os atributos sexuais de Saint-Ex, dizendo que ele tinha um pênis superdesenvolvido com forma de sifão. Eu não acreditava em tudo o que ela contava, mas sua forma de contar me fascinava.”

            Circulava uma história muito teatral sobre a cerimônia de seu casamento com Gomez Carrillo, quando a esposa anterior apareceu na saída da igreja. A mulher, vestida de negro, com um aspecto trágico, colocou-se diante da noiva, apontando-lhe um revólver; depois a amaldiçoou e apertou o gatilho, lembra-se Bayon. “O revólver travou e Consuelo caiu cambaleante nos braços do marido”, acrescenta.

            Ela afirmava ter nascido durante um terremoto e ter sido adotada por um casal de camponeses que a alimentou com leite de cabra. Outras versões apócrifas contêm manifestações de bruxaria ou intervenções divinas. Ela inventava incessantemente histórias sobre a família e aumentava ainda mais a confusão afirmando que sua mãe, cujo sobrenome de solteira era Sandoval, descendia da família real espanhola. Consuelo adotou a partícula “de” para impressionar os franceses.

            No entanto, para ser incomum, a realidade não precisava de tanta maquiagem. Ela provinha de uma família de militares originária de Armeni, uma aldeia no nordeste de El Salvador, minúsculo Estado latino-americano de 3 milhões de habitantes. Seu pai, coronel como dois de seus tios, comprara uma pequena propriedade onde cultivava o único produto de exportação do país, o café. Claudia Lars, poeta salvadorenha, forneceu uma primeira imagem de Consuelo. Claudia também morava em Armeni e conta que, por volta dos 12 anos de idade, elas confidenciaram mutuamente seus projetos de futuro. Quando Claudia confiou à amiga seu desejo de ser escritora, Consuelo, já extremamente bela na época, declarou que seria a rainha de um país longínquo.

             Com 15 anos obteve o diploma de professora, pois o sistema escolar permitia ensinar num estabelecimento primário após três anos de estudos secundários. Como desejasse ardentemente ir ao exterior aprender inglês, dirigiu-se a São Salvador e solicitou uma entrevista com o presidente, Alfonso Quinonez Molina, que lhe concedeu uma bolsa de estudos num colégio das irmãs ursulinas em São Francisco. Algum tempo mais tarde, com 17 anos, visitou o México e apaixonou-se pelo capitão Ricardo Cárdenas, com quem se casou no civil pouco tempo mais tarde. Foi uma aventura apaixonada e trágica, vivida num país em perpétua revolução. Alguns meses após a união, o oficial mexicano morreu quando seu trem foi atacado pelos guerrilheiros.

            A desgraça da jovem viúva chegou aos ouvidos do ministro da Educação do México, José Vasconcelos, que ela já encontrara por ocasião da transferência de sua bolsa dos Estados Unidos para aquele país. Segundo o historiador Mena Guerrero, ela se tornou sua amante e eles permaneceram bons amigos depois que ele deixou o cargo em 1924, durante o período anticlerical no México. Graças à sua reputação de escritor-filósofo, foi nomeado embaixador na França. Consuelo chegou a Paris alguns meses mais tarde, instalou-se num pequeno hotel perto dos Halles e retomou o relacionamento com seu protetor. Foi rapidamente adotada nos círculos latino-americanos mais influentes, nos quais sua beleza atraiu grande número de admiradores.

            Numa recepção oferecida pelo pintor Van Dongen para festejar a instalação em Paris do escritor e historiador mexicano Alfonso Reyes, Consuelo encontrou-se pela primeira vez com Enrique Gomez Carrillo. Van Dongen era um dos amigos da jovem no mundo das artes, no qual ela se engajou mais após a morte do marido. Quando Saint-Exupéry a conheceu, ela possuía boas noções de escultura, após ter freqüentado cursos em Nice e Paris. Sua primeira obra representava a máscara mortuária de Gomez Carrillo. Ela a pendurara em seu apartamento parisiense e atribuía-lhe poderes místicos, como a emissão de ruídos de desaprovação quando recebia convidados de quem seu marido não gostava.


            O caso foi relatado por uma atriz russa, Xenia Kouprine, que freqüentava o apartamento onde Consuelo acolhia uma multidão despreocupada e boêmia de escritores, pintores, atores e músicos. Segundo Kouprine, ela parecia muito jovem: “Era a sul-americana típica: pequena e graciosa, com mãos e braços de notável beleza”, escreveu ela numa revista soviética. “Seus olhos negros eram cativantes, como estrelas, e sua pele maravilhosa.” 

A bela e volúvel Consuelo, que conheceu Saint-Exupéry em Buenos Aires
 e provocou uma paixão fulminante

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