Mesmo se o casamento de
Saint-Exupéry tivesse sido exemplar, Consuelo não teria podido satisfazer o
apetite de pura reflexão cerebral do marido, que aumentou rapidamente nos anos
30. A inteligência de Consuelo e seu talento artístico eram mais instintivos
que analíticos, e é provável que ela se aborrecesse com a tendência de Antoine a
perder-se em problemas abstratos em vez de compartilhar seu entusiasmo
romântico, seu mundo imaginário e seu humor.
Cerca de quatro anos após sua união,
Saint-Exupéry começou a se sentir cada vez mais atraído pelas afinidades
intelectuais que o aproximavam de Nelly de Vogüé, mulher de negócios cujo pai,
Maximilien Jaunez, prosperara com uma importante fábrica de cerâmicas em
Sarreguemines. Tinha 19 anos quando Antoine a conheceu, na época em que desposou
um oficial da marinha, o conde Jean de Vogüé, membro de uma família
aristocrática muito influente no mundo industrial e financeiro. Ex-aluno
interno do colégio Bossuet, fazia parte do círculo de Louise de Vilmorin. A
influência de Nelly na carreira literária de Saint-Exupéry continuaria até
depois de sua morte, pois ela herdou o manuscrito de Cidadela e mandou publicá-lo. Ela também escreveu uma biografia do
escritor aviador, publicada em 1949 sob o pseudônimo de Pierre Chevrier, e
durante a vida inteira continuou a incentivar a publicação da obra de Saint-
Exupéry. Sem revelar que ela era uma de suas correspondentes preferidas nos
anos 30, publicou uma parte das cartas que ele lhe enviara do mundo inteiro.
Contribuiu enormemente para tornar
conhecida a figura de Saint-Exupéry bem como seu valor literário, tendo sido
fonte de numerosas informações utilizadas nas biografias ulteriores à sua; uma
delas lhe foi dedicada, com as iniciais N. de V. Também era romancista e usava
o nome artístico de Hélène Froment. Nelly de Vogüé dispunha de dinheiro, de
boas relações e das qualidades de organização necessárias para amenizar as
dificuldades de Saint-Exupéry. Era também uma compenetrada ouvinte para
intermináveis elaborações de suas teorias sociais, científicas, econômicas e
literárias, às quais Saint-Exupéry dedicou muito tempo nos anos anteriores à
guerra.
Nelly de Vogüé, nascida Hélène
Marie-Henriette Jaunez, tinha quase 30 anos quando sua amizade com
Saint-Exupéry se fortaleceu. Antes, ambos pertenciam ao mesmo meio social
privilegiado, dominado por Yvonne de Lestrange. Nelly era apaixonada por
pintura, que estudara na Escola de Belas Artes de Paris alguns anos antes de Saint-Exupéry
sair dessa academia. No entanto, os interesses industriais da família eram
mais importantes, e ela abandonou a vocação artística para se dedicar à promoção
dos investimentos franceses nos Estados Unidos, em colaboração com René de
Chambrun, genro de Pierre Laval, futuro vice-presidente do conselho do governo de
Vichy.
Suas relações com Saint-Exupéry consolavam-na
em parte dos sacrifícios culturais que tivera de fazer, e ela se considerava
uma de suas musas. A eclética imaginação de Antoine a fascinava e ela aceitava
gentilmente seus acessos de intolerância. Segundo Nelly, ele desprezava todos
os que não pensavam como ele ou eram incapazes de ter uma visão de mundo que
lhes permitisse escapar do que considerava uma poça de água estagnada. “No
entanto, ele também é caprichoso”, escrevia ela em 1949. “Refugia-se em
meditações silenciosas que podem parecer hostis ou é dominado pela cólera,
fica amuado como uma criança. Conservou da infância o frescor das emoções,
tanto na alegria quando na tristeza.”
Nelly de Vogüé descreveu a lendária
desordem de Antoine ao citar o exemplo do apartamento da rue de Chanaleilles,
onde sua presença era evidente pela confusão do quarto. “Cigarros, livros,
escovas de dentes, tubos vazios de pasta de dentes, pílulas esparramadas ao
lado de camisas, gravatas e sapatos. Para arrumar, Saint-Ex esparrama suas
coisas e, embora não possua grande coisa, todos os quartos do mundo serão
pequenos demais para conter essa arrumação. Somente os papéis dispõem de uma
organização privilegiada. Um quarto só poderá ser seu com essa disposição
extravagante das coisas. Se alguém se dispuser a arrumá-lo ele se nega a
retornar ali, como um animal cujo território foi violado.”
Como ela frequentemente jantava em
sua companhia, pôde fornecer informações precisas sobre seus gostos
gastronômicos, que, em sua biografia, se assemelham a um cardápio de
restaurante. De acordo com Nelly, ele gostava de morcela, curry, chocolate, ova
de carpa, aïoli, steak tartare, patê e guisado com aletria. Em compensação,
detestava verduras, afirmando que o espinafre e a couve-de-bruxelas não
passavam de alimento de coelhos. Sua aversão pela vagem foi objeto de
brincadeiras familiares na infância, porém tempos depois Gabrielle, sem se
lembrar desse detalhe, serviu esse prato num jantar em Agay; Antoine, que
estava passando uns dias com a irmã, começou a soluçar, acusando a irmã de não
o amar mais.
Nelly de Vogüe e Yvonne de Lestrange com St-Exupéry |
De Vogüé recebeu um grande número de
cartas, nas quais Saint-Exupéry mostrava crescente interesse por temas não
relacionados com a literatura. Grande parte de sua correspondência faz lembrar
um espírito inquieto, que tenta agarrar pedaços de ideias antes que elas
desapareçam. Às vezes suas cartas tinham um tom condescendente e didático,
como se o autor já estivesse se preparando para rechaçar eventuais
contradições. Nelas podem ser encontradas a mesma urgência febril que Nelly
observara quando ele arquitetava um livro.
Quando Nelly tornou-se sua
correspondente privilegiada, Saint- Exupéry estava preocupado com o que chamava
de seu “poema”, o primeiro esboço de Cidadela.
Algumas cartas contêm elementos desse trabalho filosófico que, ele esperava, se
tornaria tão importante quanto o Zaratustra,
de Nietzsche.
No entanto, uma parte de sua
correspondência parece o equivalente literário de seus truques de
prestidigitação. Á virtuosidade da linguagem é deslumbrante, porém tende a se
transformar na exposição de argumentos gratuitos, enquanto o autor se debate
para sair de um labirinto criado por ele mesmo.
Uma carta datilografada e corrigida
a mão ocupa onze páginas da biografia de Chevrier. Essa correspondência,
destinada ao físico René Plano, era a continuação de diversas conversas entre o
cientista e Saint-Exupéry, iniciadas a partir de seu primeiro encontro, em
1937. A carta começa com uma tentativa de Saint-Exupéry de explicar as
contradições entre “a ideia da relatividade do mundo externo e minha ideia de
absoluto nos campos espiritual e moral”. Praticamente sem qualquer transição,
Saint-Exupéry disserta sobre ciúme, sede, democracia, racismo, criação poética,
Descartes, leis da gravidade de Newton, e uma dúzia de outros assuntos
aparentemente ao acaso, às vezes ilustrados com equações, antes de chegar a
uma longa ladainha de definições pessoais sobre a ordem universal, bem como
sobre a atividade criadora do ser humano.
Sua análise final é a seguinte: “As
etapas biológicas são: Elétron, Átomo, Molécula, Célula, Organismo,
Consciência. As etapas materiais são: Elétron, Átomo, Molécula, Astro,
Galáxia, Universo”.
Apesar da importância do tema,
Saint-Exupéry parecia burlar-se de si mesmo na última linha da exposição de
5.000 palavras, ao acrescentar: “Mas que importa se, mais uma vez, essas
reflexões podem ser criticadas?”
Após ter superado o desastre
financeiro causado pelo acidente no deserto egípcio, Saint-Exupéry decidiu
provar que o fracasso de sua tentativa de bater o recorde Paris—Saigon era uma
aberração a ser corrigida. “Tenho uma velha conta a ajustar com o deserto”,
escrevia.
Em 1937, com um novo Simoun vermelho
flamejante, propôs a abertura de uma linha de Casablanca a Tombuctu; com essa
finalidade, recebeu uma subvenção de 40 mil francos do ministério da
Aeronáutica, além de apoio financeiro complementar da Air France. Essa viagem
de 9.000 quilômetros sobre o deserto, dessa vez impecavelmente organizada, restituiu-lhe
a confiança em sua capacidade de piloto e ressuscitou todos os prazeres dos voos
correio de longa distância. Numa carta publicada por Nelly de Vogüé, escrita em
Orã, em 16 de fevereiro de 1937, manifestava o orgulho por ter realizado uma
façanha de navegação ao utilizar pontos de referência no deserto que lhe
pareceram “ilhas em pleno mar”. “Fiquei contente quando o minúsculo quadrado
apareceu a 30 quilômetros no deserto, após 500, 1.000 ou 1.500 quilômetros de
vazio. Durante horas, o motor bateu como um coração, mas não era suficiente.
Não dava para falhar. Um belo castigo estaria à minha espera se eu fosse
inferior ao que pensava de mim mesmo. Estou regressando contente com a minha
viagem e comigo. As montanhas, as tempestades, a areia, estes são os meus
deuses familiares. Discutimos de igual para igual.”
Nessa expedição ocorreu uma nova
experiência de Saint-Exupéry com animais, história que se tornou ainda mais extraordinária
de tanto ser contada. Em Dacar, recebeu de presente um filhote de leão que
decidiu levar para a França, instalado a seu lado no assento do copiloto. Em
sua versão a Nelly de Vogüé, o leãozinho começou a pular na cabine, tentando
atacar o piloto. Para tranquilizá-lo, ele virou o avião e o animal desmaiou ao
bater com a cabeça no teto. Teve de repetir a manobra cada vez que o filhote recuperava
a consciência, até a escala técnica em Casablanca. Na verdade, o mecânico André
Prévot imobilizara o felino, que permaneceu deitado durante a maior parte da
viagem. Em Casablanca, Prévot teve de ser levado ao hospital para tratar de
profundos ferimentos em seus braços e mãos.
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