quarta-feira, 14 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 50


            Mesmo se o casamento de Saint-Exupéry tivesse sido exemplar, Consuelo não teria podido satisfazer o apetite de pura reflexão ce­rebral do marido, que aumentou rapidamente nos anos 30. A inte­ligência de Consuelo e seu talento artístico eram mais instintivos que analíticos, e é provável que ela se aborrecesse com a tendência de Antoine a perder-se em problemas abstratos em vez de compartilhar seu entusiasmo romântico, seu mundo imaginário e seu humor.

           Cerca de quatro anos após sua união, Saint-Exupéry começou a se sentir cada vez mais atraído pelas afinidades intelectuais que o aproximavam de Nelly de Vogüé, mulher de negócios cujo pai, Maximilien Jaunez, prosperara com uma importante fábrica de cerâmi­cas em Sarreguemines. Tinha 19 anos quando Antoine a conheceu, na época em que desposou um oficial da marinha, o conde Jean de Vogüé, membro de uma família aristocrática muito influente no mundo industrial e financeiro. Ex-aluno interno do colégio Bossuet, fazia parte do círculo de Louise de Vilmorin. A influência de Nelly na carreira literária de Saint-Exupéry continuaria até depois de sua morte, pois ela herdou o manuscrito de Cidadela e mandou publi­cá-lo. Ela também escreveu uma biografia do escritor aviador, publi­cada em 1949 sob o pseudônimo de Pierre Chevrier, e durante a vida inteira continuou a incentivar a publicação da obra de Saint- Exupéry. Sem revelar que ela era uma de suas correspondentes pre­feridas nos anos 30, publicou uma parte das cartas que ele lhe en­viara do mundo inteiro.


            Contribuiu enormemente para tornar conhecida a figura de Saint-Exupéry bem como seu valor literário, tendo sido fonte de nu­merosas informações utilizadas nas biografias ulteriores à sua; uma delas lhe foi dedicada, com as iniciais N. de V. Também era roman­cista e usava o nome artístico de Hélène Froment. Nelly de Vogüé dispunha de dinheiro, de boas relações e das qualidades de organi­zação necessárias para amenizar as dificuldades de Saint-Exupéry. Era também uma compenetrada ouvinte para intermináveis elabora­ções de suas teorias sociais, científicas, econômicas e literárias, às quais Saint-Exupéry dedicou muito tempo nos anos anteriores à guerra.

            Nelly de Vogüé, nascida Hélène Marie-Henriette Jaunez, tinha quase 30 anos quando sua amizade com Saint-Exupéry se fortaleceu. Antes, ambos pertenciam ao mesmo meio social privilegiado, dominado por Yvonne de Lestrange. Nelly era apaixonada por pintura, que estudara na Escola de Belas Artes de Paris alguns anos antes de Saint-Exupéry sair dessa academia. No entanto, os interesses indus­triais da família eram mais importantes, e ela abandonou a vocação artística para se dedicar à promoção dos investimentos franceses nos Estados Unidos, em colaboração com René de Chambrun, genro de Pierre Laval, futuro vice-presidente do conselho do governo de Vichy.

            Suas relações com Saint-Exupéry consolavam-na em parte dos sacrifícios culturais que tivera de fazer, e ela se considerava uma de suas musas. A eclética imaginação de Antoine a fascinava e ela acei­tava gentilmente seus acessos de intolerância. Segundo Nelly, ele desprezava todos os que não pensavam como ele ou eram incapazes de ter uma visão de mundo que lhes permitisse escapar do que considerava uma poça de água estagnada. “No entanto, ele também é caprichoso”, escrevia ela em 1949. “Refugia-se em meditações si­lenciosas que podem parecer hostis ou é dominado pela cólera, fica amuado como uma criança. Conservou da infância o frescor das emoções, tanto na alegria quando na tristeza.”

            Nelly de Vogüé descreveu a lendária desordem de Antoine ao citar o exemplo do apartamento da rue de Chanaleilles, onde sua presença era evidente pela confusão do quarto. “Cigarros, livros, escovas de dentes, tubos vazios de pasta de dentes, pílulas esparra­madas ao lado de camisas, gravatas e sapatos. Para arrumar, Saint-Ex esparrama suas coisas e, embora não possua grande coisa, todos os quartos do mundo serão pequenos demais para conter essa arruma­ção. Somente os papéis dispõem de uma organização privilegiada. Um quarto só poderá ser seu com essa disposição extravagante das coisas. Se alguém se dispuser a arrumá-lo ele se nega a retornar ali, como um animal cujo território foi violado.”

            Como ela frequentemente jantava em sua companhia, pôde for­necer informações precisas sobre seus gostos gastronômicos, que, em sua biografia, se assemelham a um cardápio de restaurante. De acordo com Nelly, ele gostava de morcela, curry, chocolate, ova de carpa, aïoli, steak tartare, patê e guisado com aletria. Em compensa­ção, detestava verduras, afirmando que o espinafre e a couve-de-bruxelas não passavam de alimento de coelhos. Sua aversão pela vagem foi objeto de brincadeiras familiares na infância, porém tempos de­pois Gabrielle, sem se lembrar desse detalhe, serviu esse prato num jantar em Agay; Antoine, que estava passando uns dias com a irmã, começou a soluçar, acusando a irmã de não o amar mais.

             
Nelly de Vogüe e Yvonne de Lestrange com St-Exupéry
Entre seus restaurantes habituais, após a Brasserie Lipp, vinha o Androuet, perto da estação de Saint-Lazare, famoso especialmente pelos queijos. Porém, seu refúgio predileto era o café Jarras, perto do apartamento de Yvonne de Lestrange, no cais Malaquais, que começara a frequentar na época de seus estudos na Escola de Belas Artes. Mesmo quando Antoine estava sem um tostão, o dono ser­via-lhe vinho em seu salão particular, tendo chegado a emprestar-lhe dinheiro em épocas particularmente difíceis. Além desses detalhes da vida cotidiana de Antoine, Nelly de Vogüé lembrou também seus métodos de escrita, após tê-lo visto trabalhar diversas vezes, na Fran­ça, nos Estados Unidos ou na África do Norte. Conta que ele es­crevia com uma espécie de febre física que o absorvia totalmente, “transpirando, rasgando, riscando e agredindo ferozmente alguns trechos”. Reescreveu trinta vezes a primeira frase do capítulo de Terra dos Homens, intitulado “O avião e o planeta”, enquanto supri­mia outras que em sua opinião enfraqueciam o texto, embora lhe parecessem belas. Quando jogava um rascunho no cesto de lixo, sorria como um menininho que tivesse feito alguma arte, ou como um homem despedindo-se de uma “pequena” com quem passara a noite.

            De Vogüé recebeu um grande número de cartas, nas quais Saint-Exupéry mostrava crescente interesse por temas não relacionados com a literatura. Grande parte de sua correspondência faz lembrar um espírito inquieto, que tenta agarrar pedaços de ideias antes que elas desapareçam. Às vezes suas cartas tinham um tom condes­cendente e didático, como se o autor já estivesse se preparando para rechaçar eventuais contradições. Nelas podem ser encontradas a mes­ma urgência febril que Nelly observara quando ele arquitetava um livro.

            Quando Nelly tornou-se sua correspondente privilegiada, Saint- Exupéry estava preocupado com o que chamava de seu “poema”, o primeiro esboço de Cidadela. Algumas cartas contêm elementos desse trabalho filosófico que, ele esperava, se tornaria tão importante quan­to o Zaratustra, de Nietzsche.

            No entanto, uma parte de sua correspondência parece o equi­valente literário de seus truques de prestidigitação. Á virtuosidade da linguagem é deslumbrante, porém tende a se transformar na ex­posição de argumentos gratuitos, enquanto o autor se debate para sair de um labirinto criado por ele mesmo.

            Uma carta datilografada e corrigida a mão ocupa onze páginas da biografia de Chevrier. Essa correspondência, destinada ao físico René Plano, era a continuação de diversas conversas entre o cien­tista e Saint-Exupéry, iniciadas a partir de seu primeiro encontro, em 1937. A carta começa com uma tentativa de Saint-Exupéry de explicar as contradições entre “a ideia da relatividade do mundo externo e minha ideia de absoluto nos campos espiritual e moral”. Praticamente sem qualquer transição, Saint-Exupéry disserta sobre ciúme, sede, democracia, racismo, criação poética, Descartes, leis da gravidade de Newton, e uma dúzia de outros assuntos aparentemen­te ao acaso, às vezes ilustrados com equações, antes de chegar a uma longa ladainha de definições pessoais sobre a ordem universal, bem como sobre a atividade criadora do ser humano.

            Sua análise final é a seguinte: “As etapas biológicas são: Elétron, Átomo, Molécula, Célula, Organismo, Consciência. As etapas mate­riais são: Elétron, Átomo, Molécula, Astro, Galáxia, Universo”.

            Apesar da importância do tema, Saint-Exupéry parecia burlar-se de si mesmo na última linha da exposição de 5.000 palavras, ao acrescentar: “Mas que importa se, mais uma vez, essas reflexões po­dem ser criticadas?”

            Após ter superado o desastre financeiro causado pelo acidente no deserto egípcio, Saint-Exupéry decidiu provar que o fracasso de sua tentativa de bater o recorde Paris—Saigon era uma aberração a ser corrigida. “Tenho uma velha conta a ajustar com o deserto”, escrevia.

            Em 1937, com um novo Simoun vermelho flamejante, propôs a abertura de uma linha de Casablanca a Tombuctu; com essa fina­lidade, recebeu uma subvenção de 40 mil francos do ministério da Aeronáutica, além de apoio financeiro complementar da Air France. Essa viagem de 9.000 quilômetros sobre o deserto, dessa vez impe­cavelmente organizada, restituiu-lhe a confiança em sua capacidade de piloto e ressuscitou todos os prazeres dos voos correio de longa distância. Numa carta publicada por Nelly de Vogüé, escrita em Orã, em 16 de fevereiro de 1937, manifestava o orgulho por ter realizado uma façanha de navegação ao utilizar pontos de referência no deserto que lhe pareceram “ilhas em pleno mar”. “Fiquei con­tente quando o minúsculo quadrado apareceu a 30 quilômetros no deserto, após 500, 1.000 ou 1.500 quilômetros de vazio. Durante horas, o motor bateu como um coração, mas não era suficiente. Não dava para falhar. Um belo castigo estaria à minha espera se eu fosse inferior ao que pensava de mim mesmo. Estou regressando contente com a minha viagem e comigo. As montanhas, as tempes­tades, a areia, estes são os meus deuses familiares. Discutimos de igual para igual.”

            Nessa expedição ocorreu uma nova experiência de Saint-Exupéry com animais, história que se tornou ainda mais extraordinária de tanto ser contada. Em Dacar, recebeu de presente um filhote de leão que decidiu levar para a França, instalado a seu lado no assento do copiloto. Em sua versão a Nelly de Vogüé, o leãozinho começou a pular na cabine, tentando atacar o piloto. Para tranquilizá-lo, ele virou o avião e o animal desmaiou ao bater com a cabeça no teto. Teve de repetir a manobra cada vez que o filhote recuperava a consciência, até a escala técnica em Casablanca. Na verdade, o mecânico André Prévot imobilizara o felino, que permaneceu deitado durante a maior parte da viagem. Em Casablanca, Prévot teve de ser levado ao hospital para tratar de profundos ferimentos em seus braços e mãos.

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