sexta-feira, 2 de junho de 2017

TERRA DOS HOMENS - 7


Assim, quando Mermoz, pela primeira vez, atravessou o Atlântico em um hidroavião, atingiu, ao cair da tarde, a região do Pot-au-Noir. Viu em sua frente as caudas dos ciclones, que se comprimiam de minuto a minuto, como se vê construir um muro; depois, a noite crescer sobre esses preparativos, e dissimulá-los. E quando, uma hora mais tarde, se insinuou sob as nuvens, desembocou num reino fantástico.

Trombas marinhas elevavam-se ali acumuladas, imóveis, na aparência, como pilares negros de um templo. Elas suportavam, em seus cumes túmidos, a abóbada escura e baixa da tempestade; mas, através dos rasgões da abóbada, feixes de luz caíam e a lua cheia brilhava, entre os pilares, nas lajes frias do mar. E Mermoz seguiu sua rota através daquelas ruínas desabitadas, obliquamente, pelos canais de luz, contornando os pilares gigantes onde bramia a ascensão do mar — marchando quatro horas, ao longo da esteira da lua, para a saída do templo. E o espetáculo era tão esmagador que Mermoz, uma vez transposto o Pot-au-Noir, percebeu que não tivera medo.

Recordo-me, também, de um desses momentos em que se transpõem os confins do mundo real: as indicações radiogoniométricas enviadas pelas escalas do Saara haviam sido falsas toda aquela noite e nos haviam perigosamente enganado, a mim e ao radiotelegrafista, Néri. Quando, tendo visto a água brilhar no fundo de uma abertura das brumas, virei bruscamente na direção da costa, não podíamos saber há quanto tempo estávamos avançando para o alto-mar.

Jean Mermoz, um dos melhores pilotos da 
Aéropostale, 
era um homem simpático, 
de ombros largos e corpo atlético
Era incerto chegar ao litoral, porque talvez faltasse gasolina; e além disso, uma vez atingida a costa, seria preciso achar o ponto de escala. Ora, a lua estava prestes a morrer. Sem indicações angulares, já surdos, nós íamos ficando, pouco a pouco, cegos. A lua acabara de se apagar, como uma brasa pálida, numa bruma que parecia um banco de neve. O céu, acima de nós, começou a se cobrir de nuvens. Navegávamos agora entre as nuvens e a bruma, num mundo vazio de toda luz e de toda substância.

As estações que nos respondiam renunciavam a dar indicações sobre nossa posição: “Nenhuma indicação... Nenhuma indicação...”, porque nossa voz lhes chegava de toda parte e de parte nenhuma.

E bruscamente, quando já nos desesperávamos, um ponto brilhante apareceu no horizonte, em nossa frente, um pouco à esquerda. Senti uma alegria tumultuosa; Néri curvou-se para mim e percebi que ele cantarolava. Só podia ser o ponto de escala, só podia ser o seu farol, porque, à noite, o Saara inteiro se apaga e forma um grande território morto. A luz, entretanto, cintilou um pouco e se extinguiu. Havíamos apontado a proa para uma estrela, visível em seu ocaso por alguns minutos somente, no horizonte, entre a camada de brumas e as nuvens!

Então vimos que se erguiam outras luzes e, com uma surda esperança, apontávamos a proa de cada vez sobre uma. E quando a luz se prolongava, tentávamos a experiência vital: “Luz à vista”, ordenava Néri à escala de Cisneros, “acenda e apague seu farol três vezes”. Cisneros acendia e apagava três vezes seu farol, mas a luz dura, a luz que espreitávamos, essa não piscava — incorruptível estrela.

Embora a gasolina devesse estar acabando, continuávamos a morder aqueles anzóis de ouro. De cada vez era a verdadeira luz de um farol, era a escala e a vida. Depois, era preciso mudar de estrela...

E então nos sentimos perdidos no espaço interplanetário, entre cem planetas inacessíveis, à procura do único planeta verdadeiro, do nosso, do único planeta onde estavam nossas paisagens familiares, nossas casas amigas, nossas ternuras. Do único planeta onde... Eu vos direi a imagem que me assaltou, e que talvez vos pareça pueril. Mas no centro do perigo o homem conserva suas inquietações, e eu tinha sede, e fome. Se encontrássemos Cisneros, prosseguiríamos a viagem, uma vez o tanque cheio novamente de gasolina; e desceríamos em Casablanca, na frescura da manhãzinha. Acabado o serviço! Néri e eu iríamos à cidade. Pela madrugada em Casablanca já há uns botequins abertos... Néri e eu sentaríamos a uma pequena mesa, bem seguros, rindo da noite passada, diante dos pãezinhos quentes em forma de meia-lua e do café com leite. Néri e eu receberíamos aquele presente matinal da vida. Assim também a velha camponesa só atinge o seu Deus através de uma imagem pintada, de uma ingênua medalhinha, de um rosário; é preciso que nos falem numa linguagem bem simples para que possamos entender. A alegria de viver se resumia para mim naquele primeiro gole matutino, cheiroso e quente, naquela mistura de leite, café e trigo que nos liga às pastagens calmas, às culturas exóticas e às searas — que nos liga à terra inteira. Entre tantas estrelas não havia nenhuma outra em que se enchesse para nós a xícara perfumada do café da manhã.

Mas entre nossa embarcação e essa terra habitada acumulavam-se distâncias intransponíveis. Todas as riquezas do mundo estavam em um grão de areia perdido entre as constelações. E o astrólogo Néri, que procurava reconhecê-lo, lançava sempre sua súplica às estrelas.

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