Assim, quando Mermoz, pela primeira vez, atravessou o Atlântico em um
hidroavião, atingiu, ao cair da tarde, a região do Pot-au-Noir. Viu em sua
frente as caudas dos ciclones, que se comprimiam de minuto a minuto, como se vê
construir um muro; depois, a noite crescer sobre esses preparativos, e
dissimulá-los. E quando, uma hora mais tarde, se insinuou sob as nuvens,
desembocou num reino fantástico.
Trombas marinhas elevavam-se ali acumuladas, imóveis, na aparência, como
pilares negros de um templo. Elas suportavam, em seus cumes túmidos, a abóbada
escura e baixa da tempestade; mas, através dos rasgões da abóbada, feixes de
luz caíam e a lua cheia brilhava, entre os pilares, nas lajes frias do mar. E
Mermoz seguiu sua rota através daquelas ruínas desabitadas, obliquamente, pelos
canais de luz, contornando os pilares gigantes onde bramia a ascensão do mar —
marchando quatro horas, ao longo da esteira da lua, para a saída do templo. E o
espetáculo era tão esmagador que Mermoz, uma vez transposto o Pot-au-Noir, percebeu
que não tivera medo.
Recordo-me, também, de um desses momentos em que se transpõem os confins
do mundo real: as indicações radiogoniométricas enviadas pelas escalas do Saara
haviam sido falsas toda aquela noite e nos haviam perigosamente enganado, a mim
e ao radiotelegrafista, Néri. Quando, tendo visto a água brilhar no fundo de
uma abertura das brumas, virei bruscamente na direção da costa, não podíamos
saber há quanto tempo estávamos avançando para o alto-mar.
Jean Mermoz, um dos melhores pilotos da
Aéropostale,
era um homem simpático,
de ombros largos e corpo atlético
|
As estações que nos respondiam renunciavam a dar indicações sobre nossa
posição: “Nenhuma indicação... Nenhuma indicação...”, porque nossa voz lhes
chegava de toda parte e de parte nenhuma.
E bruscamente, quando já nos desesperávamos, um ponto brilhante apareceu
no horizonte, em nossa frente, um pouco à esquerda. Senti uma alegria
tumultuosa; Néri curvou-se para mim e percebi que ele cantarolava. Só podia ser
o ponto de escala, só podia ser o seu farol, porque, à noite, o Saara inteiro
se apaga e forma um grande território morto. A luz, entretanto, cintilou um
pouco e se extinguiu. Havíamos apontado a proa para uma estrela, visível em seu
ocaso por alguns minutos somente, no horizonte, entre a camada de brumas e as
nuvens!
Então vimos que se erguiam outras luzes e, com uma surda esperança,
apontávamos a proa de cada vez sobre uma. E quando a luz se prolongava,
tentávamos a experiência vital: “Luz à vista”, ordenava Néri à escala de
Cisneros, “acenda e apague seu farol três vezes”. Cisneros acendia e apagava
três vezes seu farol, mas a luz dura, a luz que espreitávamos, essa não piscava
— incorruptível estrela.
Embora a gasolina devesse estar acabando, continuávamos a morder aqueles
anzóis de ouro. De cada vez era a verdadeira luz de um farol, era a escala e a
vida. Depois, era preciso mudar de estrela...
E então nos sentimos perdidos no espaço interplanetário, entre cem
planetas inacessíveis, à procura do único planeta verdadeiro, do nosso, do
único planeta onde estavam nossas paisagens familiares, nossas casas amigas,
nossas ternuras. Do único planeta onde... Eu vos direi a imagem que me
assaltou, e que talvez vos pareça pueril. Mas no centro do perigo o homem
conserva suas inquietações, e eu tinha sede, e fome. Se encontrássemos
Cisneros, prosseguiríamos a viagem, uma vez o tanque cheio novamente de
gasolina; e desceríamos em Casablanca, na frescura da manhãzinha. Acabado o
serviço! Néri e eu iríamos à cidade. Pela madrugada em Casablanca já há uns
botequins abertos... Néri e eu sentaríamos a uma pequena mesa, bem seguros,
rindo da noite passada, diante dos pãezinhos quentes em forma de meia-lua e do
café com leite. Néri e eu receberíamos aquele presente matinal da vida. Assim
também a velha camponesa só atinge o seu Deus através de uma imagem pintada, de
uma ingênua medalhinha, de um rosário; é preciso que nos falem numa linguagem
bem simples para que possamos entender. A alegria de viver se resumia para mim
naquele primeiro gole matutino, cheiroso e quente, naquela mistura de leite,
café e trigo que nos liga às pastagens calmas, às culturas exóticas e às searas
— que nos liga à terra inteira. Entre tantas estrelas não havia nenhuma outra
em que se enchesse para nós a xícara perfumada do café da manhã.
Mas entre nossa embarcação e essa terra habitada acumulavam-se
distâncias intransponíveis. Todas as riquezas do mundo estavam em um grão de
areia perdido entre as constelações. E o astrólogo Néri, que procurava
reconhecê-lo, lançava sempre sua súplica às estrelas.
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