terça-feira, 27 de junho de 2017

VOO NOTURNO - 11

A mulher do piloto , despertada pelo telefone, olhou para o marido e pensou: “Vou deixá-lo dormir um pouco mais”.

            Ela admirava aquele peito nu, bem-feito, pensava em um belo navio.

            Ele repousava naquele leito calmo, como em um porto e, para que nada agitasse o seu sono, ela apagava com o dedo aquela ruga, aquela sombra, aquela onda, apaziguava o leito, como o dedo divino acalma o mar.

            Levantou-se, abriu a janela e recebeu o vento no rosto. Aquele quarto dominava Buenos Aires. De uma casa de dança vizinha chegavam certas melodias trazidas pelo vento, pois era a hora dos prazeres e do repouso. Aquela cidade encerrava seus homens nas suas cem mil fortalezas; tudo estava calmo e seguro; mas parecia a essa mulher que iam gritar “Às armas!”. E que apenas um homem, o seu, iria se levantar. Ele repousava ainda, mas seu descanso era como o temível repouso das reservas que serão consumidas. Aquela vila adormecida não o protegia: suas luzes parecer-lhe-iam vãs, quando se levantasse do seu pó, como um jovem deus. Ela observava aqueles braços fortes que, dentro de uma hora, carregariam o destino do correio da Europa, responsáveis por algo de grandioso, como a sorte de uma cidade. Sentiu-se perturbada. Aquele homem, entre milhões, era o único preparado para aquele estranho sacrifício. Entristeceu-se. Ele escaparia também à sua ternura. Ela o havia alimentado, velado e acariciado, não para si mesma, mas para essa noite que lhe iria arrebatá-lo. Para lutas, angústias, vitórias, das quais não conhecia nada. Aquelas mãos ternas estavam apenas domesticadas, os seus verdadeiros trabalhos eram obscuros. Ela conhecia os sorrisos daquele homem, seus cuidados de amante, mas não as suas divinas cóleras, em meio à tempestade. Prendia-o com ternos laços: música, amor, flores; mas, na hora de cada partida, esses laços desatavam-se sem que ele parecesse sofrer.

            Ele abriu os olhos.

            — Que horas são?

            — Meia-noite.

            — Como está o tempo?

            — Não sei...

            Levantou-se. Caminhou lentamente em direção à janela, espreguiçando-se.

            — Não sentirei muito frio. Qual é a direção do vento?

            — Como você quer que eu saiba...

            Ele se inclinou:

            — Sul. Muito bom. Vai permanecer assim, pelo menos até o Brasil.          '

            Observou a lua e sentiu-se privilegiado. Em seguida, seus olhos desceram em direção à cidade.

             Não a julgou nem suave, nem luminosa, nem calorosa. Já via escoar-lhe entre os dedos a areia vã da sua luz.

            — Em que você está pensando?

            Pensava que possivelmente haveria névoa nas proximidades de Porto Alegre.

            — Tenho minha tática. Sei por onde contornar. Debruçado na janela, respirava profundamente, como antes de se atirar nu no mar.

            — Sequer está triste... Por quanto tempo vai partir?

            Oito, dez dias. Não sabia. Triste, não; por quê? Aqueles campos, cidades, montanhas... Parecia-lhe que partia livre para conquistá-los. Pensava também que, antes de uma hora, conquistaria e abandonaria Buenos Aires.

            Sorriu e respondeu:

            — Esta cidade... logo estarei distante dela. Partir à noite é lindo. Puxa-se a alavanca do gás, em direção ao Sul e, dez segundos mais tarde, a paisagem se transforma, na direção do Norte. A cidade não é mais que um fundo de mar.

            Ela pensava em tudo de que era preciso abrir mão para ir em busca de conquistas.

            — Você não gosta da sua casa?

            — Gosto da minha casa... •

            Mas sua mulher já o sentia partindo. Seus ombros largos já pesavam contra o céu.

            Ela lhe mostrou:

            — Você tem um tempo bom. Sua rota está repleta de estrelas. Ele riu.

            — Sim.

            Ela colocou a mão sobre seu ombro e emocionou-se por senti-lo quente: “Então, aquela carne estaria ameaçada?”.

            — Você é muito forte, mas seja prudente!

             — Prudente, com certeza...

            E riu novamente.

            Vestia-se. Escolheu, para aquela festa, os tecidos mais rudes, o couro mais pesado. Vestia-se como um camponês. Quanto mais pesado se tornava, mais ela o admirava. Ela mesma afivelava o cinto e ajudava-o a puxar as botas.

            — Estas botas me incomodam.

            — Aqui estão as outras.

            — Consiga-me um cordão para minha lâmpada de socorro.

            Ela o observava. Estava atenta ao último defeito na armadura: tudo está bem.

            — Você é muito bonito.

            Percebeu que ele se penteava cuidadosamente.

            — É para as estrelas?

            — É para que não me sinta velho.

            — Sou ciumenta...

            Ele riu mais uma vez, beijou-a e a apertou contra suas roupas pesadas. Em seguida, levantou-a com os braços esticados, como se fosse uma menininha e, sempre sorrindo, deitou-a:

            — Durma.

            E, fechando a porta atrás de si, chegou à rua, em meio aos desconhecidos habitantes da noite, o primeiro passo da sua conquista.

            Ela permaneceu ali, observando, com tristeza, as flores, os livros, a suavidade que, para ele, nada mais eram do que um fundo de mar.


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