quinta-feira, 15 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 51


            Saint-Exupéry foi tão bem-sucedido em criar uma imagem não convencional que seus amigos pintam-no de maneiras frequentemente contraditórias. Por outro lado, seu programa de trabalho, dividido entre o voo e a escrita, desafia qualquer ordem cronológi­ca. Às vezes é difícil imaginar que o pensador humanista absorvido pela gestação de Cidadela seja a mesma pessoa que redigiu reporta­gens de guerra ou roteiros de filmes B com o simples objetivo de sobreviver. Enquanto Nelly de Vogüé insiste no temperamento so­lene, impulsivo e sonhador de Saint-Exupéry, outros observadores, como o escritor Henri Jeanson, traçam dele um retrato quase cômi­co, apresentando Consuelo e Antoine como um casal que parecia ter saído de um desenho animado de Walt Disney, que poderia se chamar “O Urso e o Pássaro das Ilhas”. Em 1968, Jeanson escreveu suas recordações para a revista Constellation e, embora tenha usado um pouco de imaginação para suprir algumas lacunas de sua me­mória, sem dúvida ficava atento ao lado absurdo da personalidade de Saint-Exupéry. Esse traço de seu caráter aparece claramente na decoração de seu novo apartamento, no sexto e sétimo andares de um imóvel na Place Vauban, que dava para os Invalides.

            Esse luxuoso duplex, com uma água-furtada em sua parte su­perior, alugado entre 1936 e 1938 por vinte e 25 mil francos ao ano, isto é, três vezes o preço do aluguel da rue de Chanaleilles, estava situado no coração do elegante 72 arrondissement, mas Jeanson comenta: “Estávamos na casa de um boêmio que devia ter se enga­nado de casa”. Enquanto Consuelo mostrava o caminho para o seu ateliê no andar inferior a entregadores que carregavam enormes blocos de pedra, Saint-Exupéry levava Jeanson para visitar a vasta residência cujas janelas se abriam para uma das mais belas vistas da capital. No interior, Jeanson ficou impressionado principalmente com a mais absoluta falta das coisas necessárias.

            “De longe, via-se um móvel, uma poltrona, um piano de cauda, uma cadeira de jardim, um banquinho, uma mesa de madeira bran­ca. O quarto de Saint-Exupéry era uma obra-prima de desordem, um bricabraque exemplar. Tropeçava-se nos objetos mais heterogê­neos: uma frasqueira, uma bota, gravatas, um compasso, barbeado­res elétricos, diversas camisas espalhadas, revistas americanas, uma máscara africana, um visor, um par de alicates, maços de cigarros, um guarda-chuva.” Jeanson também descreveu a estranha vida con­jugal de Consuelo e Antoine, numa semi-separação, entre impulsos de afeição e acessos de recriminação. Ela tinha o irritante costume de se precipitar no aposento para interromper Saint-Exupéry, ocu­pado em distrair seus amigos com um variado repertório, que ia da declamação de Mallarmé com sotaque italiano à direção de um coral improvisado de canções folclóricas.

            Jeanson opinava sobre Consuelo: “Era um pequeno animal se­dutor, cujo gorjeio equivalia à plumagem... Divertida, inteligente, viva, tagarela, ela pintava, escrevia e esculpia bem. Um pássaro sá­bio”. As intrusões intempestivas de Consuelo eram acolhidas com nada além que recriminações leves e, apesar da tensão que provo­caria sua separação efetiva em 1938, Jeanson surpreendia-se com a ternura que Saint-Exupéry sempre demonstrava por ela em público. “Era tão frágil, tão pequena e tão insuportável... ela o surpreendia, fascinava e, numa palavra, ele a adorava.”

            Jeanson, que escrevia principalmente para Le Canard Enchainé, também foi observador privilegiado de outras duas facetas da vida de Saint-Exupéry, o cinema e o jornalismo, particularmente suas re­portagens sobre a Guerra Civil Espanhola. Embora Antoine tivesse ficado insatisfeito com a filmagem de Correio Sul, devido à sua falta de controle sobre o filme, Jeanson conseguiu convencê-lo a realizar um projeto de filme britânico, baseado na história da aviação desde suas origens, começando com o voo de Ícaro.

             O documentário nunca foi realizado, porém sua preparação inicial propiciou uma entrevista entre Saint-Exupéry e Blériot, em Paris, bem como uma viagem a Londres para uma discussão com o produtor do filme, Alexander Korda. A única passagem de Saint- Exupéry pela Grã-Bretanha foi marcada por uma conversa com H.G. Wells, uma saída noturna com o pintor Fernand Léger e uma visita a uma boate londrina de terceira categoria, onde reencontrou uma garçonete francesa que conhecera num bar de Dacar.

            Nesse encontro fortuito ocorreu o único episódio conhecido em que Saint-Exupéry se deixou levar por uma reação violenta. O dono da boate tentou interromper a conversa de Antoine com sua funcionária, com a qual estava trocando lembranças sobre conheci­dos comuns; segundo Jeanson, Saint-Exupéry agarrou o homem pela gravata exigindo que ele se desculpasse. “Houve empurrões, alguns golpes, uma mesa virada, como num filme ruim. O patrão descul­pou-se, e tudo acabou bem”, disse Jeanson.

            Em 1937, este último conviveu com Saint-Exupéry em Madri, os dois como enviados especiais. Antoine fora enviado pelo Paris-Soir, após uma reportagem para o Intransigeant no ano anterior. Em suas lembranças, o jornalista do Canard Enchainé revela os aspectos ao mesmo tempo juvenis e sérios de Saint-Exupéry.

Credencial de Saint-Exupéry como Correspondente na Guerra Civil da Espanha, em 1937

           
Numa reunião com um grupo de anarquistas, Saint-Exupéry divertiu-se com uma demonstração de lançamento de granada, as­sustadoramente semelhante à roleta-russa. Após ter observado um miliciano que conservava as granadas na mão até a última fração de segundo antes de lançá-las, Antoine quis imitá-lo para demons­trar seu sangue frio. “Esse jogo apaixona Saint-Ex”, escreveu Jean­son. “Desajeitado, ele o treina encantado. Observei-lhe que corre o risco de ser fuzilado se for surpreendido pelos outros.”

            Ele descartara a advertência dando de ombros e respondendo: “E daí, este é o jogo!” Mais seriamente, Jeanson lembra a admiração do piloto pelos anarquistas: “Não quer dizer que ele compartilhe suas doutrinas, mas foi conquistado pela maneira de morrer, pela elegante temeridade deles”. Em seguida, Saint-Exupéry prestou ho­menagem ao anarquismo: “Se sua adega ou seu celeiro produzirem uma bela flora humana e propiciarem tanta inteligência e paixão, salvemos a adega e o celeiro”.

            Mas o desprezo de Saint-Exupéry pelos convencionalismos não o transformava num anarquista. Na época em que foi à Espanha, como correspondente de guerra, em 1936 e 1937, suas opiniões po­líticas e religiosas tinham evoluído consideravelmente, com o aban­dono do conservadorismo reacionário de seu meio social e familiar. Naquele momento ele estava em busca de outras crenças capazes de substituir o catolicismo e a monarquia.

            Tentou reconciliar pontos de vista contraditórios afirmando que eram imputáveis à ignorância mais do que à cega convicção. Em sua opinião, a desordem resultante do enfrentamento das dou­trinas fascista e comunista devia-se a um problema de comunicação e a uma incapacidade de compreender os argumentos do outro.

            Em 1937, a França passava por um período de grandes confli­tos ideológicos. A direita não cessava de atacar a Frente Popular dirigida por Léon Blum. Saint-Exupéry anotou em seu diário que a origem de todos os problemas encontrava-se na ignorância dos fa­tos, pois nem fascistas nem comunistas se davam ao trabalho de ler a imprensa do adversário e nem tratavam de conciliar suas teorias.

            Sua convicção de que só uma profunda riqueza espiritual podia salvar o homem da loucura, sempre que fosse capaz de descobrir o objetivo comum que o transcendia, também permaneceu invariável. Esse ato de fé é ilustrado por uma das frases mais significativas de Terra dos Homens: “Amar não é olhar um para o outro mas sim olhar juntos na mesma direção”. Na edição americana Wind, Sand and Stars, Saint-Exupéry vai ainda mais longe, dando a impressão de que mesmo o pior dos ódios pode ser conciliado pelas “palavras essenciais... a verdade das verdades”.

            Nessa versão do livro figura o episódio em que dois soldados espanhóis, um republicano e outro fascista, cumprimentam-se de uma trincheira para a outra, na escuridão, e perguntam-se mutua­mente por que estão lutando. Um deles responde “pela Espanha” e o outro “pelo pão dos meus irmãos”. O episódio é encerrado com um “boa-noite, amigo” dos dois homens que tentarão se matar ao romper do dia. Quanto aos motivos para lutar, Saint-Exupéry escre­ve: “Suas palavras não eram as mesmas, porém suas verdades eram idênticas. Por que uma comunhão tão intensa nunca impediu que os homens morressem ao combater uns contra os outros?”

            Embora Saint-Exupéry tenha descrito esse intercâmbio com um luxo de detalhes, tudo não passava de uma alegoria destinada a re­forçar seus próprios argumentos sobre o sentimento de fraternidade implícito em cada homem. Essa ideia terá ainda mais valor quando a França conhecer os horrores da derrota, destroçada pelas rivali­dades entre gaullistas e pétainistas.


             Os dois combatentes espanhóis que se comunicaram durante uma curta trégua chamavam-se Léo e Antonio. O amigo mais pró­ximo de Antoine no âmbito literário era na época o escritor anar­quista Léon Werth. Passavam horas a discutir, cada um em sua trin­cheira política, um falando em nome da França, o outro em nome do pão de seus irmãos. No entanto, isso apenas reforçou sua amizade, uma das mais surpreendentes da literatura contemporânea.

A foto de Robert Capa que se tornou símbolo da violência e da crueldade da Guerra Civil Espanhola

Nenhum comentário:

Postar um comentário