quarta-feira, 21 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 57


             
Saint-Exupéry com uniforme da Força Aérea Francesa 
pouco depois de ser mobilizado na Segunda Guerra
No dia seguinte à declaração de guerra, 3 de setembro de 1939, Saint-Exupéry foi mobilizado, recebendo ordem de se apresentar à base militar de Toulouse, onde sua carreira na Aéropostale começara treze anos antes. Dessa vez, a euforia da aventura fora substituída pela consciência de que o avião tinha se tornado um instrumento de destruição maciça. Ao contrário de muitos outros escritores de sua geração, que imaginavam combates mortais segundo o modelo da Primeira Guerra Mundial, Saint-Exupéry compreendia o perigo representado pelo conflito nascente. Ele testemunhara bombardeios sistemáticos de civis pela Luftwaffe na Espanha e tivera contato com nazistas fanáticos na Alemanha.

           Suas reportagens sobre a guerra espanhola ressaltavam os sofrimentos das crianças, encurraladas numa engrenagem cega e mortífera, com uma insuportável percepção da destruição que, na sua opinião, ameaçava o resto da Europa. Essas imagens de crianças mártires determinaram sua escolha quando, durante a guerra, rejeitou a França livre de Charles de Gaulle, porém sua aversão à violência militar era bastante anterior à guerra da Espanha.

            Nos anos 30, Saint-Exupéry passou bastante tempo em companhia de pacifistas intransigentes, como Henri Jeanson e Léon Werth, e é provável que tivesse alegado objeção de consciência se não tivesse estudado bem de perto o sistema nazista, que o convenceu de que a força era inevitável para enfrentar um regime totalitário. Esteve duas vezes na Alemanha para tentar compreender a ditadura hitlerista; oriundo de uma tradicional linhagem de militares, foi o primeiro a entrar na guerra para combater uma ideologia ignóbil em vez de inspirar-se num patriotismo cego e revanchista. Sua primeira viagem ocorrera no verão de 1937, quando foi a Berlim no seu Simoun. Sua passageira, Nelly de Vogüé, escreveu que seu objetivo tinha sido descobrir o tipo de homem produzido pela doutrina nazista.

            No entanto, não se tratava de uma pesquisa teórica. Saint-Exupéry foi detido ao chegar a Wiesbaden, suspeito de espionagem por ter sobrevoado o campo militar de Kassel. Foi solto graças a uma intervenção diplomática, porém permaneceu preso um dia inteiro; seu avião foi vigiado por 50 jovens suboficiais. Quando finalmente foi autorizado a decolar, dirigiu o Simoun em picada sobre o grupo, e passou raspando por suas cabeças.

            De acordo com Nelly de Vogüé, os jovens alemães ergueram os braços para fazerem a saudação nazista, e foi possível ouvir claramente na cabine o Heil bradado por eles. Mais tarde, num bar às margens do Reno, onde se detiveram para beber vinho, Saint-Exupéry tentou convencer uma jovem alemã das contradições inerentes ao nazismo, que, na sua opinião, acabariam por destruir os valores que pretendia respeitar. Após seu regresso, a inevitabilidade da guerra tornou um dos seus principais temas de conversação, particularmente durante um tratamento médico em Vichy, em setembro de 1938, um pouco antes da crise de Munique.

            Preocupava-se com a credulidade popular nas propostas de paz, e por essa razão realizou outra viagem à Alemanha, muito mais longa dessa vez, em fevereiro de 1939, enquanto estava absorvido pela releitura das provas de Terra dos Homens e por transações pelo correio com Lewis Galantière, encarregado da tradução americana.

            Essa excursão foi muito mais arriscada que a anterior. Como viajava de carro, Saint Exupéry constantemente tinha de enfrentar ameaças militares e políticas. Entretanto, comoveu-se menos com o ruído provocado pelos comboios armados, que passavam pela frente do seu hotel, do que com o espetáculo das Juventudes Hitleristas desfilando em Nuremberg, diante de um café onde estava sentado. Percebendo o ar preocupado de Saint-Exupéry, uma mulher que trabalhava no bar aproximou-se dele e disse: “Olhe, meu filho está lá no meio. Eles os pegam quando ainda são bem pequenos. Depois disso, eles não são mais nossos filhos. Não há mais nada a esperar deles.”

             A viagem fora planejada por Otto Abetz, que logo mais seria embaixador da Alemanha em Paris sob a ocupação. Ele organizou para Saint-Exupéry, bem como para outro escritor francês, Henry Bordeaux, uma visita à Führerschule, onde eram formados os jovens dirigentes do III Reich. Saint-Exupéry sentiu-se tão repugnado com a propaganda e a disciplina que declarou a Otto Abetz: “O tipo de homem que vocês formam não me interessa”.

            Depois disso, escreveu que detestava o nazismo que teria mandado internar Cézanne e Van Gogh em campos de concentração e produzia gerações de gado submisso. Sabia intuitivamente que, num regime totalitário, os inconformistas como ele seriam condenados. O recrutamento e doutrinamento de crianças, comuns no nazismo, bastam para explicar o desprezo de Saint-Exupéry pelos regimes extremistas, porém sua análise das insuficiências da III República perdia clareza quando começava a debater as mudanças do sistema de governo.

            Seu interesse pela política interna fora despertado, como ocorrera com muitos franceses, pelas manifestações de fevereiro de 1934, nas quais a extrema direita francesa ameaçara instaurar uma forma de ditadura. Pela primeira vez, devido a esses acontecimentos, Saint-Exupéry manifestou seu desprezo por uma cruzada suscitada essencialmente pelas forças monarquistas que ele tanto admirara na infância.

            Nunca sentiu a tentação de se unir à causa fascistóide, que reunia os monarquistas intolerantes da Ação Francesa de Charles Maurras e o movimento de antigos combatentes da Grande Guerra, os Cruz de Ferro, sob a égide do coronel François de La Rocque. A campanha dos Cruz de Ferro contra a democracia causou um desentendimento com Jean Mermoz, que se aliou à causa do movimento populista. A aversão de Saint-Exupéry por de La Rocque devia-se, em parte, ao seu discurso vazio e demagógico. Com frequência Antoine o imitava para zombar dele, o que irritava Mermoz, sempre seduzido pelo anti-republicanismo até desaparecer no Atlântico a bordo de um hidravião, em 1936.

            O desprezo de Saint-Exupéry pelos ultraconservadores também causou sua única briga conhecida com a irmã Simone. Durante um jantar com amigos, Saint-Exupéry foi acusado de ter escrito um artigo a favor da Indochina francesa para um jornal notoriamente fascista e antissemita, Gringoire. O texto era assinado por S. de Saint-Exupéry, e Antoine compreendeu que fora escrito por Simone, que, na época, trabalhava como arquivista em Saigon. Segundo André de Fonscolombe, que participava do jantar, Saint-Exupéry, furioso, saltou sobre o telefone e ligou para a irmã a fim de censurá-la: “Você não tem nenhum direito de utilizar meu nome dessa forma”. Ele ficou particularmente transtornado devido a sua amizade com Léon Werth, autor de um livro que condenava a política colonialista da França na Indochina, e que tinha atraído a ira antissemita do Gringoire.

            Embora Saint-Exupéry rejeitasse o extremismo, não pôde evitar sentir um certo fascínio pelas novas teorias de governo e de gestão econômica, tendo demonstrado mesmo uma certa indulgência com relação ao comunismo, até o momento em que condenou o regime soviético por seu dogmatismo. Suas teorias pessoais a favor de um novo sistema econômico, com as quais tentava convencer Werth e outros amigos, eram decorrentes de sua associação com Gaston Bergery, uma das ovelhas negras de um grupo parlamentar de esquerda, que mais tarde se aliaria ao regime de Vichy. Como o pacifismo do grupo de Bergery assumiu uma forma muito rígida, Saint-Exupéry afastou-se dele bem antes de 1939.

            No entanto, nada nos livros de Saint-Exupéry evidencia um engajamento republicano, nem simpatia pelos ideais da Revolução, embora confirmasse sua fé num sistema democrático ao se negar a apoiar o projeto de De Gaulle de estabelecimento de um governo não eleito. Inevitavelmente, seu inconformismo sempre fazia com que ficasse de fora, e nunca encontrou uma convicção política tradicional tão forte que conseguisse substituir o monarquismo familiar, assim como nunca descobriu uma doutrina religiosa capaz de substituir o catolicismo.

            Não se sentia atraído por nenhum dos partidos políticos de sua geração e desconfiava das ideologias. Considerou-se obrigado então a elaborar um código pessoal de princípios, às vezes excêntrico, que tinha a intenção de desenvolver em Cidadela. Um estudo dessa obra inacabada revela como é difícil situar Saint-Exupéry numa posição política identificável, apesar de o tema principal, organizado em torno de um ditador esclarecido e paternalista, pudesse ser interpretado como uma justificação do pétainismo se tivesse sido publicado sob o regime de Vichy.

            Em Cidadela já não se trata da partilha do poder entre o chefe e seu povo, mas de uma forma de governo justa e tolerante nas mãos de um soberano hereditário. É difícil acreditar que Saint-Exupéry não fosse consciente da contradição entre essa ideia utópica e os abusos de poder dos ditadores da época. Tem-se a impressão de que Saint-Exupéry tentava ressuscitar sua fé juvenil num Deus protetor e infinitamente sábio.


            Contudo, o contexto é outro e refere-se indiretamente às questões políticas daquele período, especialmente à discriminação racial, fazendo pensar que a análise de Saint-Exupéry teria evoluído com os acontecimentos. Ele calculava que precisaria de pelo menos dez anos para polir o livro, que frequentemente chamava de obra póstuma.

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