sexta-feira, 2 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 38


            Existem diversas versões do encontro entre Consuelo e Antoine. Algumas perderam ou ganharam intensidade, segundo o folclore familiar, e a de Saint-Exupéry foi simplificada. Ele deve ter sido questionado de múltiplas formas sobre as circunstâncias que o levaram a romper com as tradições familiares e a ignorar a obrigação de casar-se com uma aristocrata, de preferência com um belo dote.

            Sua resposta se limitava geralmente à história na qual Consuelo, que ele denominava seu “pássaro das ilhas”, introduziu-se como passageira clandestina a bordo de seu avião, escondendo-se atrás do assento do piloto. Em pleno vôo, ela se ergueu triunfalmente, proclamando ser uma viúva respeitável que, a partir daquele momento, estaria comprometida, e, portanto, ele teria de casar-se com ela.

            Consuelo relatava o episódio com maiores detalhes. Além de contar como tudo acontecera em diversas palestras públicas, ela relatou o fato em suas memórias não publicadas. Segundo ela, Ben- jamin Crémieux elogiara entusiasticamente Saint-Exupéry antes de apresentá-lo, tendo inclusive lido uma de suas cartas para provar seu talento de escritor. Quando ela viu Antoine pela primeira vez na recepção, pouco depois de seu longo périplo pela Terra do Fogo, sentiu-se imediatamente atraída, embora intimidada por sua altura e corpulência.

            Em vez dos elogios que esperava ouvir, Saint-Exupéry iniciou a conversa com um comentário desastrado que parecia criticar a baixa estatura e a miudeza de Consuelo. Ela se ofendeu e ele teve de impedi-la de ir embora desculpando-se por ter-se comportado como um “grande urso” e convidando-a para um passeio de avião sobre Buenos Aires. “Não quer me domesticar?”, suplicou ele, explicando sua falta de tato pelo motivo de não ter dirigido nenhuma palavra a uma mulher desde sua partida, há mais de uma semana, para uma viagem de inspeção das longínquas instalações da Aéropostale. Aterrorizada pela idéia de um batismo do ar, ela tentou recusar o convite com o pretexto de que não podia se separar de seus amigos, porém Saint-Exupéry convidou-os também.

            Ele utilizou sua autoridade de chefe de tráfego da Aéropostale para conseguir um Latécoère 28 capaz de transportar nove passageiros. Enquanto os convidados se instalavam nas poltronas posteriores, Antoine ofereceu a Consuelo o assento do co-piloto, protegido dos olhares dos passageiros por um tabique envernizado. Ela estava absorta, contemplando a paisagem, quando ouviu uma ordem do piloto: “Beije-me”. Quando ela recusou, argumentando que uma latina só beija o homem que ama, ele assumiu um ar de extrema tristeza e respondeu que ela o rejeitava porque o achava muito feio. No silêncio que veio a seguir, ele desligou os motores e anunciou que o avião afundaria no Rio da Prata, onde eles se afogariam juntos. Ela conta que duas lágrimas que rolavam pelo seu rosto venceram sua recusa, e ela pousou os lábios na face de Antoine, afirmando que não lhe parecia nada feio.

            Provavelmente não era a primeira vez que Saint-Exupéry utilizava essa chantagem meio sentimental, meio profissional para impressionar uma mulher. Os vôos perigosos faziam parte do arsenal dos pilotos para seduzir suas namoradas, especialmente o belo Jean Mermoz, considerado por Saint-Exupéry como um rival na matéria. A referência à feiura parece verídica da parte de um Saint-Exupéry capaz de explorar, desde a infância, a sensibilidade feminina com ajuda de subterfúgios. Uma tristeza fingida ou sincera geralmente produzia milagres, e diversos anos mais tarde uma amiga lhe escreveu contando que se apaixonara por ele porque ele “sabia sofrer”.

            Com Consuelo, o que podería não ter passado de um flerte transformou-se numa paixão cega para Antoine, que esperava que esse amor fosse recíproco. Em suas memórias, Consuelo revela que, desde o início, Saint-Exupéry demonstrou um ciúme possessivo. Embora muito atencioso, seu lado tirânico levava-o a considerá-la sua propriedade. Em Buenos Aires, achou normal que ela ficasse à sua inteira disposição, sobretudo quando regressava de vôos longínquos e, durante toda a vida, essa exigência foi mantida; ela tinha de abandonar imediatamente todos os seus outros amigos para acompanhá-lo ao restaurante ou ao teatro, e ele frisava que o único amor que valia a pena era o de dois seres exclusivamente devotados um ao outro.

            Como ela estava acostumada a uma vida de artista bastante boêmia e possuía seu círculo de amigos pessoais, era impossível pedir-lhe que esperasse tranqüilamente em casa pelo regresso de um marido que partira em missões perigosas e potencialmente fatais. Era uma reedição do namoro com Louise de Vilmorin, porém sob outra forma — embora Saint-Exupéry tenha contado em Correio Sul o conflito insuportável, inevitável, da mulher forçada a abandonar seu meio para dedicar-se a um piloto.

            “Tentei levar Geneviève para o meu mundo”, lamenta-se Bernis quando abastece o avião em cabo Juby, antes do acidente que lhe custará a vida. “Tudo o que eu lhe mostrava tornava-se pálido e cinzento.”

            Mas, durante os primeiros dias vibrantes em Buenos Aires, Consuelo ainda estava bem longe das desilusões que a aguardavam no universo de Saint-Exupéry. Ele lhe parecia um aristocrata cheio de entusiasmo, proprietário de um castelo na França e prestes a ficar famoso, tanto como escritor quanto como diretor na aeronáutica, e parecia um digno sucessor para Gomez Carrillo, importante personagem.

            Quanto a Saint-Exupéry, Consuelo finalmente conseguira dar um pouco de alegria a Buenos Aires, cidade deprimente, onde as mais afetadas convenções importadas da Espanha conviviam com o deboche de uma prostituição internacional de notoriedade pública. Numa carta à irmã Sirnone, que ele chamava de “meu querido sapo com penas”, ele descrevia a capital argentina como “realmente enfadonha”, e mais tarde dirá à mãe que se tratava de “uma cidade odiosa, sem charme, sem recursos, sem nada”.

            Como seu emprego obrigava-o a inspecionar campos de aviação dispersos num raio de mais de 3.500 quilômetros, numa das regiões mais perigosas do mundo, ele aproveitava todas as oportunidades para escapulir. Mas freqüentemente sentia saudade de Paris e dos cafés literários na Rive Gaúche, quando relutantemente voltava a Buenos Aires.

            Apesar de sobrecarregado de trabalho, sempre encontrava algum tempo para trabalhar em seu novo livro, estimulado por seu amor por Consuelo. Pouco depois do primeiro encontro, ele mostrou-lhe 80 páginas daquilo que se transformaria em Vôo Noturno, e, quando regressou à França em janeiro, essa primeira versão compreendia 400 páginas. Essa manifestação de criatividade literária é explicada pelo desejo de impressionar Consuelo. Ela acreditava em seu gênio e incentivava-o como nenhuma mulher fizera antes, com exceção da mãe, sobretudo quando ele lhe ofereceu as primeiras 80 páginas do livro como se fossem uma carta de amor. Sua vida com Gomez Carrillo aguçara suas qualidades de crítica, e ela prometeu colocar seus próprios talentos a serviço de Antoine. De seu lado, ele aprovava com inocente alegria o fato de ela ter a ambição de esculpir, pintar e escrever. No entusiasmo de sua jovem paixão e de sua admiração recíproca, eles pareciam destinados a tornar-se um dos grandes casais míticos do século XX.


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