quarta-feira, 7 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 43

Jornalista na Rússia (1)

      Com muito dinheiro, é possível que a tensão entre Consuelo e Antoine se suavizasse. A escrita não enriquecera Saint-Exupéry, pelo menos não o suficiente para enfrentar suas extravagâncias pessoais, como a Bugatti e o avião particular. Em 1929, quando Correio Sul foi publicado, o contrato da Gallimard continha uma cláusula para a aceitação de pelo menos seis outras obras, porém a modesta receita de Voo Noturno não convenceu o autor de que poderia viver de seus livros. Inevitavelmente, o grande sonho dos escritores — o grande golpe que o livraria para sempre das dificuldades financeiras — o possuía.

Após o acidente de Saint-Raphael, ele foi obrigado a aceitar um cargo no serviço de relações públicas da Air France. Assim dissipou-se a esperança de poder ganhar bem a vida na aviação. Seu salário de 3.500 francos era apenas suficiente para pagar o consumo mensal de seus cigarros preferidos, os Craven A, como confessou a Jean Chitry, seu superior hierárquico. Suas responsabilidades abrangiam palestras no exterior, que lhe asseguravam 1.000 francos extras cada vez que pilotava um avião em direção a uma dessas reuniões. Durante os primeiros sete meses do contrato, a partir de abril de 1934, seus ganhos chegaram a mais de 40 mil francos, que se acrescentavam aos direitos autorais de Voo Noturno e aos honorários recebidos por diversas contribuições ao semanário ilustrado Marianne.

Havia três alternativas para tentar acabar com essa renda insuficiente: imaginar uma invenção rentável, escrever para o cinema ou ganhar o prêmio por bater o recorde de um voo de longa distância. Nos meses seguintes, tentou tirar proveito dessas três possibilidades, mas acabou ficando sem o dinheiro necessário para pagar as contas de gás, energia elétrica e telefone.

Em dezembro de 1934, patenteou sua primeira invenção de um sistema de aterrissagem que foi seguida, até 1940, por outras treze. Ele sugeria que elas lhe rendiam muito, porém isso não passava de blefe, pois a maioria não foi patenteada antes de 1939 e 1940. Seus projetos inovadores, junto com sua experiência de aviador, melhoravam a navegação noturna e os sistemas de segurança; também elaborou outros projetos relativos à propulsão de foguetes. Esses inventos altamente técnicos, inspirados por um crescente interesse pela geometria e pelas ciências aplicadas, eram a prova de uma imaginação fértil e variada; contudo, o cinema parecia ser uma via financeira mais promissora. Os produtores americanos consideravam Night Flight, o filme adaptado de Voo Noturno, um grande sucesso. Em Paris, permanecera em cartaz por dez semanas em 1934. Os direitos autorais não corresponderam àquilo que Antoine esperava, porém encontrou uma compensação intelectual nas impressionantes cenas de voo, que, em sua opinão, recriavam fielmente pela primei ra vez a atmosfera real da aviação civil.

No início de 1935, Antoine recebe uma  carta de Luro Cambaceres, seu amigo e colega na Aéropostale na América do Sul,  enviada para a Rue de Chanaleille No 5. Mas nesse ínterim, Saint-Exupéry havia mudado  seu habitat. Pouco depois das manifestações antiparlamentares e direitistas  de 6 de fevereiro de 1934 na Place de la Concorde, encontrou por acaso  com Roger Beaucaire na Rue Royale e entraram no café Weber para tomar uma bebida. Beaucaire tinha muito a contar-lhe sobre a mentalidade curiosamente "dinâmica" das Jeunesses Patritotes e sobre os outros grupos ativistas que haviam organizado as manifestações. Havia lhe telefonado, apenas para ser saudado com algo parecido com um grunhido: "Tenho recebido  muitos telefonemas ultimamente. Você por acaso  não estaria me ligando para pedir proteção?” Como se os organizadores  já estivessem ocupados elaborando listas negras de suspeitos para serem liquidados quando assumissem o controle. Saint-Ex, depois de ouvi-lo com surpresa — pois aparentemente não havia percebido até que ponto a contaminação fascista havia se espalhado —  começou a queixar-se de sua vida sem rumo, ainda mais insuportável  por ter que viver na Margem Direita, a um passo do Boulevard Haussmann e das lojas Printemps e Galeries Lafayette. "Se ao menos pudéssemos encontrar outro lugar", suspirou, "Eu daria qualquer coisa para mudar para a margem esquerda".

Pouco tempo depois, Beaucaire ouviu falar de um apartamento que estava prestes a ser desocupado na Rue de Chanaleilles, perto dos Invalides. Saint-Ex nem se deu ao trabalho de ir vê-lo.  Sem muito espaço, tinha apenas quatro pequenos quartos localizados no segundo andar. Mas o pátio dos fundos, amparado por uma austera parede de convento, era adornado por uma árvore frondosa, cujos galhos acolhedores pareciam se estender para cumprimentar os inquilinos nas janelas. Os dois quartos que de frente para a rua ficavam davam para a  porte cochère e para os telhados das garagens de carruagens do Hôtel de Chanaleilles, uma charmosa mansão originalmente construída para o Duc du Maine e posteriormente ocupada por Paul Barras (o protetor de Joséphine Beauharnais, a futura esposa de Napoleão) e pela famosa Madame Tallien (sem falar de seu atual proprietário e restaurador, Stavros Niarchos, o magnata grego de transporte marítimo.) Automóveis em meados da década de 1930 ainda eram um luxo restrito a poucos felizardos, e a Rue de Chanaleilles — como sua vizinha mais em moda, a Rue Barbet de Jouy, cheia de jardins cuidados e elegantes hôtels particuliers — oferecia um refúgio tranquilo para quem havia convivido até pouco tempo atrás com o movimento intenso da Rue de Castellane. Consuelo não precisou ser convencida, e no início de Julho de 1934 ela e Antoine montaram seu lar neste pequeno “ninho de passarinhos”, como o chamava seu amigo Henri Jeanson.

“Ninho de passarinhos” seria muito mais adequado para descrever o abrigo acolhedor que Tonio havia encontrado para sua cativante “oiseau des îles”, pois o “pássaro sedutor cujo canto se igualava à beleza de sua plumagem” — para citar Jeanson novamente. “Sempre  divertida, muito inteligente, muito alegre, sempre cantando, pintando, escrevendo, e esculpindo com grande felicidade. Um pássaro inteligente, um pássaro raro — da raça das Consuelos — esse era seu nome. Nunca me esquecerei a forma com que Saint-Ex olhava para ela. O desarmava, tão frágil, tão diminuta, tão difícil de suportar que ele às vezes tentava colocá-la no seu devido lugar, e acho que ele conseguia. Ela surpreendia, o fascinava, em suma: ele a adorava. Um pássaro que se recusava a ficar quieto. Empoleirava, sempre que lhe vinha vontade, naquele urso macio, o Saint-Ex que parecia um urso voador. Eles pareciam ter saído de um desenho animado de Walt Disney. Saint-Ex, enfiado em um terno com duas filas de botões sempre amassado e frequentemente abotoado errado, não ligava para a elegância. Nem ligava para o luxo, e os apartamentos onde ele acampava costumavam ser muito grandes ou muito pequenos. Eram apenas espaços que ele ocupava — como seus ternos.

Esse apartamento era claramente de tamanho mínimo, e seu minimalismo era ressaltado não só pelo tamanho de Antoine mas também pela agitação extraordinária de sua esposa. A vida com Consuelo pode ter sido às vezes difícil, até exaustiva, mas nunca monótona. Como ela era tão boêmia quanto ele, havia uma tendência à desarrumação — como o quarto dele, onde livros, gravatas, camisas, maços de cigarros, e escovas de dente ficavam indiscriminadamente jogados tal como os livros e pedaços de papel com os quais na juventude ele entupia sua carteira escolar. Frequentemente à noite chegavam visitas, o relógio passava das nove, quase chegando às dez horas, quando de repente Consuelo exclamava: “Santo Deus, esqueci do jantar!” E antes que ele percebesse o que estava ocorrendo, a visita com aspecto mais próspero era agarrado pelo braço e arrastado, enquanto Consuelo ia explicando à medida que eles atravessavam a porta “Vamos dar uma volta nos restaurantes e já voltamos.” E voltavam meia hora mais tarde, carregados de caviar e pâté de foie gras bem como garrafas de vinho e queijos que sempre que o dinheiro acabava — como era comum ocorrer — ela pedia a seu acompanhante que pagasse.

Pois se Saint-Ex frequentemente estava sem um tostão, com sua esposa isso ocorria ainda mais frequentemente, embora aparentemente ela ficasse menos preocupada com esse tipo de problema. Ela chamava um taxi, sem um tostão na bolsa, e o fazia levá-la a um café — como o Weber na Rue Royale — quando com agilidade descia do carro, dizendo para o porteiro: “Joseph, será que você poderia pagar a corrida?” e logo entrando no café com um farfalhar de seda ou casaco de peles como se tivesse acabado de comprar o estabelecimento. A entrada invariavelmente era grandiosa — mas um pouco grandiosa demais para o temperamento tímido de Saint-Exupéry: principalmente quando o porteiro aparecia, com o quepe na mão e um sorriso solícito no rosto, e ele era obrigado a catar no fundo dos bolsos moedas para pagar o táxi e mais a generosa pourboire que habitualmente era necessária.

Seu próprio meio de locomoção costumava ser diferente, embora de certa forma tão extravagante como. O enorme volume de royalties recebido por Vol de Nuit  e pelo Prêmio Femina lhe haviam permitido, em 1932, investir em um carro de luxo de cor prata marca Voisin no qual havia levado Consuelo e sua mãe em viagens durante as semanas do verão em que havia ajudado a sua mudança de Saint-Maurice para Cannes. Suas dificuldades financeiras mais tarde deveriam tê-lo logicamente trocar o carro por outro menos luxuoso, mas ele não resistia à tentação das máquinas cheias de glamour que observava nas vitrines da principal loja da Bugatti na Avenue Montaigne. Frequentemente, quando passava perto, dava uma parada para uma conversa com o “Patron” – como Ettore Bugatti era universalmente conhecido pelos funcionários, amigos, e até pela família — ou quando ele não estava, com Frédéric Loiseau, o destemido oficial de cavalaria que o “Patrão” havia contratado com “inspetor viajante” e gerente geral de vendas com base no safari trans-Sahariano que ele havia completado.

Certo dia, contava Loiseau, Saint-Ex entrou em seu escritório com seu jeitão “distraído e cativante” porém dessa vez com um sorriso especialmente largo no rosto. Como o Patron não estava, tinha entabulado uma conversa com sua secretária — sobre o preço de um modelo de 2,3 litros (com compressor) cujas linhas aerodinâmicas havia admirado na vitrine.

“Para os amigos de Monsieur Bugatti — entre os quais me incluo — existe um desconto, sem dúvida?” perguntara.

“Oh, claro, Monsieur.”

“Sabe de quanto?”

“Acho que de 10%.”

“10% para os amigos. . .e quanto para os outros?”

“Exatamente o mesmo,” foi a resposta simpática.

O resultado desta “intriga” especial foi a compra de uma máquina Bugatti muito superior ao Voisin quanto à velocidade e na qual (bem depois) ele quase morreu ao bater em uma carroça de um camponês atravessada na estrada. Porém a manutenção do ágil veículo provou ser uma carga a mais sobre as finanças já sobrecarregadas do proprietário, e à medida que o tempo passava o buraco aberto no assento traseiro, que nunca foi consertado, e a porta que tinha de ser mantida fechada com um barbante, quando a maçaneta parou de funcionar, tornaram-se aditivos veneráveis no carro, tal como havia ocorrido com as fendas no madeiramento do piso e a toca de víboras sob a mesa de jantar que tanto o haviam encantado no castillo de San Carlos.

Possuir um carro no qual pudesse percorrer as estradas rurais — quando não podia voar sobre elas em um avião — era quase uma necessidade psicológica para alguém que não suportava ficar preso em um quarto ou um escritório. Até mesmo seus textos ele preferia fazer em cafés, como o Deux Magots em Saint-Germain-des-Prés, onde o movimento era para ele um estímulo e não uma distração nas suas elucubrações noturnas. Não era como Georges Bernanos — outro grande escrevinhador em cafés — que gostava de ser envolvido pelo ruído de fundo das vozes humanas; certo dia Jean Ihler, que havia sido seu companheiro de internato na Villa Saint-Jean em Friburgo, o encontrou andando de um lado para outro na plataforma da estação de Perrache em Lyon.

“O que você está fazendo aqui?” perguntou surpreso.

“Ah, mon vieux,” foi a resposta, “Tenho necessidade dessa animação. Gosto das idas e vindas desses trens. Me traz inspiração. Aí eu sento no bufê e começo a escrever.”

Era também nos cafés, mais do que em casa, que Saint-Ex encontrava os amigos, frequentemente lia para eles algo que acabara de escrever a fim de saber seus comentários. Pois embora buscasse com tenacidade sua inspiração — tendo inclusive eventualmente fumado um cachimbo de “erva”, como Coleridge — ele ficava inseguro com essa mesma inspiração tão logo passava a febre criativa. Para cada parágrafo, para cada página que ele incluía, havia uma dúzia, às vezes até vinte, às vezes até cem, que ele rasgava e abandonava. Mas esse trabalho de Sisifo não o desanimava, e bem após a meia noite, quando todos os outros clientes já haviam ido embora, só o barulho das cadeiras sendo empilhadas nas mesas fazia com que ele percebesse que os garçons estavam fechando a casa — isso já na incrível madrugada de duas ou três da manhã! — e que teria de arrecadar seus papéis e ir embora.

Há um limite para a perfeição e no início de 1935 Saint-Exupéry estava começando a sentir os apertos inevitáveis. Joseph Kessel, um notívago como ele que gostava de levá-lo para ouvir violinos ciganos em algum night-club russo onde não só esvaziava mas literalmente comia as taças de champagne colocadas à sua frente, ficou tão impressionado com as páginas de seu “novo livro” que Saint-Ex havia lido para ele que as descreveu algum tempo depois como “as mais lindas, densas, criativas , e as mais inspiradas que alguém já escreveu. . .” — um generoso tributo de um autor que poderia até sentir inveja (o romance L’Equipage, escrito por Kessel, não havia recebido tantos elogios como Vol de Nuit). Foi também um julgamento profético, pois na época em que esse elogio foi escrito — início de 1936 — apenas uma pequena parte desse novo material havia sido publicado, nem mesmo em um semanário de aviação como L’Aéro, que se interessava por textos experimentais (Minha Inesquecível Experiência de Pilotagem) tanto quanto pelo desenvolvimento de técnicas aeronáuticas. Ele até aceitou escrever um ou dois prefácios — para a obra de  Maurice Bourdet, Grandeur et Misère de l’Aviation e para o livro de José Le Boucher, Le Destin de Joseph-Marie le Brix; mas embora o contrato com seu editor prometesse à Gallimard a entrega de cinco livros, Saint-Ex se recusava a produzir um manuscrito que, como dizia ele, “ainda não estava pronto para publicação”.

Enquanto isso ele e Consuelo tinham de viver — com um pouco mais do que esperanças. Seu emprego no “Serviço de Propaganda” da Air France era pouco mais do que um cargo honorifico, e a remuneração era pífia. Tinha de fazer uma palestra de vez em quando — nas quais nem sempre conseguia ser brilhante — mas pelo menos lhe proporcionava contatos com muita gente influente, incluindo editores de jornais dispostos a fazer propostas tentadoras.

A origem de seu primeiro trabalho jornalístico, que o tirou momentaneamente da situação de penúria financeira, provavelmente se originou em uma palestra que Saint-Exupéry deu no Aéro-Club de France em meados de fevereiro de 1935. A palestra incluía um filme documentário sobre o progresso aeronáutico na Rússia, e entre os presentes estava o General Vassilchenko, Adido Militar Soviético em Paris. A ocasião era parte de uma reaproximação Franco-Soviética provocada pela militância cada vez mais agressiva dos novos governantes do Reich, um dos quais — um certo Major von Helders — havia criado enorme rebuliço com a publicação dezoito meses antes de um livro de 300 páginas com o atraente título de Como Paris Será Destruída em 1936! Recusando-se a ser superados pelos alemães e italianos, que estavam avançando a todo vapor, os russos estavam realizando intensos esforços para construir uma moderna força aérea. Um de seus engenheiros, o Professor A. N. Tupoleff havia até projetado e produzido um monstro de 42 toneladas, com oito motores e que era o maior avião do mundo. Batizado de Maxim Gorki por ocasião do aniversário de sessenta e cinco anos do escritor, o leviatã aéreo era algo que Saint-Ex tinha curiosidade de examinar e que era mais uma razão para desejar visitar aquela imensa terra incógnita — tão ardentemente elogiada por alguns, e tão criticada por outros — conhecida como União Soviética.

* * *

Ao contrário de André Malraux, cujos romances eram tão políticos quanto seus compromissos ideológicos, Saint-Exupéry nunca havia se interessado muito pela política. Nunca havia participado ativamente de qualquer partido político, nem, como seu amigo Gide, se inscrevera como membro do Comitê Antifascista Mundial que Romain Rolland e Malraux organizaram em uma tentativa desesperada de combater atos com palavras. Mas os tumultos sangrentos de fevereiro de 1934, os esforços de Mermoz para recrutá-lo para a Croix de Feu e a crescente arrogância dos regimes totalitários na Itália e na Alemanha despertaram gradualmente uma preocupação com o que estava acontecendo na França e na Europa.

O único grupo político que Saint-Ex frequentou com alguma assiduidade nessa época foi um reunido em torno de Gaston Bergery, um deputado liberal de Mantes a quem ele foi apresentado por seu amigo jornalista Henri Jeanson. Chamar Jeanson de "jornalista" seria, obviamente, minimizar um iconoclasta esfuziante, cuja caneta ágil era tão habilidosa na confecção de diatribes como na composição de peças e cenários de filmes.* Na época já uma estrela em ascensão no satírico Canard Enchaîné, Jeanson tornou-se temido, bem como famoso, em uma época  em que um Savonarola local com o nome implausível de Abbé Bethléem, costumava destruir em público copias de publicações libidinosas exibidas nas bancas de jornais. Seguindo seus passos, Jeanson e seu amigo, o poeta surrealista Robert Desnos, foram de uma banca a outra, destruindo todas as cópias de Le Pèlerin e outros periódicos religiosos em que puderam colocar as mãos — uma performance que havia adicionado bastante combustível para o furor. Após os distúrbios de fevereiro de 1934, Jeanson uniu forças com Bergerie, o advogado Georges Izard, e Paul Langevin, o físico, para formar um Front Commun com o fim de combater os movimentos monárquicos e neofascistas de direita que ameaçavam a República. Todos eles eram enfaticamente antimilitaristas, bem como republicanos convictos, e seus alvos favoritos no semanário La Flèche eram os barões das munições internacionais (François de Wendel, Schneider-Creusot, Krupp, Albert Vickers, Basil Zaharof) e os patriotas agressivos (todos desde o general Weygand a "Arsène Lupin de la Rocque . . . Colonel de la Cambriole", ou seja, "Coronel de Arrombamentos  da Cruz de Fogo"), cujos esforços concentrados, alegavam eles, poderiam mergulhar o continente em novas guerras .

Seu pacifismo ativista era um pouco ingênuo, mas sua sinceridade era evidente, e Saint-Exupéry tornou-se logo um visitante frequente ao apartamento de Gaston Bergery, na Rue de Bourgogne, localizado a uma breve caminhada de cinco minutos da Rue de Chanaleilles. Essencialmente um livre-pensador, Bergery era um político independente que não pertencia a nenhum grupo rígido ou clã. Suas simpatias eram inequivocamente à esquerda e havia  se casado com a filha de Leonid Krassin, o revolucionário russo, embora ele próprio não fosse um marxista. Sua segunda esposa, Bettina, era americana, mas ele era também enfaticamente oposto ao capitalismo puro. Neste tipo de clima, Saint-Exupéry podia sentir-se em casa.

* Ele escreveu os diálogos para esses dois clássicos de pré-guerra, o Pépé-le-Moko de Julien Duvivier e o Hôtel du Nord de Marcel Carné, para não falar da obra-prima cômica, La Fête à Henriette, também dirigida por Duvivier, que veio mais tarde.

Provavelmente nenhum país naquela época era objeto de ódio e controvérsias mal informadas como a União Soviética. Aqui, também, Saint-Exupéry abrigava simpatias não muito distantes das de seu amigo Gide, mas não tendo podido julgar as realidades do comunismo em primeira mão,  preferiu manter uma mente aberta. Esta atitude agradou a Pierre Lazareif, que freqüentava bastante o mesmo círculo e a quem Saint-Ex havia sido apresentado no ano anterior por uma amiga comum, Nelly de Vogüé; também agradou seu amigo jornalista Hervé Mille, que Saint-Exupéry conhecia há mais tempo. Ainda relativamente jovem — nenhum deles tinha mais de trinta anos — Lazareif e Mille já eram editores influentes do Paris-Soir, o novo diário vespertino que o magnata têxtil Jean Prouvost estava construindo como o jornal mais dinâmico da França. "A Revolução Gráfica", como Daniel Boorstin a chamou, já estava transformando a imprensa francesa, e grande parte do sucesso crescente do Paris-Soir foi devido ao seu uso pioneiro de fotografias espalhafatosas. Seus editores também achavam que o público não queria mais um "jornal de opinião" — muitos deles haviam sido fechados desde a Primeira Guerra Mundial — e sim um jornal que pudesse manter os leitores informados sobre o que estava ocorrendo no mundo de forma vívida e rápida. O Paris-Soir já tinha um correspondente regular em Moscou, André Pierre; mas as realidades brutais da Rússia stalinista, com sua rígida censura de todas as matérias jornalísticas, ensinaram-no a ser cuidadoso, e muitas de suas reportagens nessa época ficavam limitadas a tópicos "seguros", como as últimas façanhas dos campeões soviéticos de paraquedismo ou os planos sendo elaborados pelo professor Molchanov, diretor do Instituto  Slutsk Aerológico, para colocar um foguete alado com um homem dentro (isto em abril de 1935!) para a exploração da estratosfera.

Como a maioria das "autoridades" jornalísticas na Rússia eram entusiastas raivosos que não conseguiam encontrar qualquer falta em Stalin ou “crentes” desiludidos  (como os trotskistas) que haviam  se tornado críticos ferozes, Lazareif sugeriu a Prouvost que seria bom para o Paris-Soir enviar Saint-Exupéry para Moscou como observador imparcial que não tinha nenhum histórico de discordância e como um escritor que já possuía um "nome". A ideia pareceu excelente a Prouvost. Hitler acabara de anunciar que a Alemanha não ficaria mais vinculada às restrições militares do Tratado de Versalhes, e os realistas, liderados por Pierre Laval, ministro francês das Relações Exteriores, insistiam em uma aproximação diplomática com a Rússia. O Primeiro de Maio estava se aproximando — quando centenas de aviões iriam sobrevoar Moscou, um evento que Saint-Exupéry poderia julgar com o olhar experiente de um aviador; e sendo politicamente descomprometido, sem dúvida iria conseguir evitar as armadilhas do preconceito e dar uma descrição eloquente e imparcial do que havia visto e ouvido.

Era atraente a oferta, mas encheu Saint-Exupéry de dúvidas. Embora gostasse de dar uma passada no Cadran, no Boulevard des Capucines, ou provar as Juliénas da Caves Mura, frequentada por Jeanson e outros jornalistas do Canard enchaíné, não era um jornalista e não tinha vontade de sê-lo. Relatos  de viagem, do tipo que Paul Morand havia tornado tão em voga, também eram algo para o que tinha pouco gosto. Mas a oportunidade de visitar a Rússia, a "pátria do Socialismo", era muito tentadora para que pudesse resistir. A beligerância crescente da Itália de Mussolini, claramente preparando-se para invadir a Etiópia, o passo de ganso da Alemanha de Hitler, tornaram a Rússia, em comparação, respeitável.

Mesmo assim, a perspectiva de visitar um país cuja língua desconhecia totalmente, e sobre o qual conhecia tão pouco, perturbou Saint-Exupéry consideravelmente. Num final de noite, estava sentado na Brasserie Lipp refletindo sobre o problema quando entrou Léon-Paul Fargue. Fargue na época vivia a uns cem metros mais acima do Boulevard Saint-Germain, em um hotel que se chamava (com incongruência deliciosa) O Palácio, embora na verdade fosse um estabelecimento relativamente modesto que hospedara Bertolt Brecht e Waldo Frank antes de ser inundado por uma invasão de intelectuais antifascistas (Alexei Tolstoy, Boris Pasternak, Thikhonov, etc.) depositados ali pelos seus mentores franceses - Gide, Malraux e Aragon. Um habitué da Maison des Amis des Livres de Adrienne Monnier e amigo íntimo de André Beucler, Fargue conhecia Saint-Exupéry desde o final da década de 1920. Eles primeiro se conheceram — ou, pelo menos, ele afirmou mais tarde — no mundialmente famoso "museu do queijo" dirigido por Androuet na Rue d'Amsterdam, onde o nariz hipersensível de Saint-Ex começou a tremer à vista de "um grande disco de Brie de Melun, quase fumegando de sedução e irradiando fagulhas como pinos saindo de um penteado japonês, ou talvez fosse um Livarot em sua jaqueta de couro curtido ".

O estilo é típico de um homem cuja cabeça neroniana, com uma mecha de cabelo escuro escovado através da testa romântica e cada vez mais calva, e cujos lábios de tartaruga ocultavam uma mente tão frenética como um pônei e tão vulgar como um monge rabelaisiano. Quando começava, era difícil detê-lo, pois o arquivo de histórias de Fargue e sua inventividade verbal eram praticamente inesgotáveis. Como Joyce (de quem ele era de certa forma uma versão gaulesa indolente), achava que as regras eram feitas para serem quebradas, a linguagem era algo para ser manipulado, e as frases deviam ser remexidas em novas e estranhas omeletes. “L’inciclos est dent”,  dizia, deixando que o som incomum se arrastasse um pouco nos dentes, “é melhor para os nervos estressados que L’incident est clos'" (o incidente está fechado). ‘Uma infirmemière’ — o trocadilho com a palavra “infirme" ou ‘doente” — é mais apropriada do que infirmière" (enfermeira). Um dos seus mais usados “trava-língua”, ou trouvailles, era “Ossitoyarmezin!” que ele achava muito melhor do que o trecho menos marcial da Marseillaise, “Aux Armes, Citoyens!” Um frasista incomparável — como Jean Galtier-Boissière (também um grande contador de estórias) disse certa vez — Fargue era a alegria e o desespero das anfitriãs dos salões. Uma alegria porque um jantar com Fargue era um sucesso garantido, um desespero devido ao seu inveterado hábito de chegar duas horas atrasado, quando a essa altura a carne já tinha passado muito do ponto ou o café estava prestes a ser servido.

Não haveria duas pessoas mais diferentes do que Saint-Ex, que não poderia ficar mais feliz do que quando estava em movimento, e Fargue, o poeta sedentário pantouflard que achava um enorme esforço descalçar suas sandálias e colocar os pés em um par de sapatos comuns. No entanto, uma qualidade eles compartilhavam: ambos eram notívagos, membros do que Fargue gostava de chamar de "le ministère de la nuit" — o Ministério da Noite. Quase todas as noites entre as dez e a meia-noite, Fargue aparecia na Brasserie Lipp, sentava no sofá de couro marrom perto dos azulejos que seu pai havia projetado e cozido para o dono da brasserie nascido no Auvergnat. Depois, saia andando, parando ao acaso no  Deux Magots ou no Flore, antes de aparecer no Le Boeuf sur le Toit (que Cocteau ajudara a tornar famoso) por volta das duas horas da manhã; por volta de quatro da manhã ia para o Florence, o clube noturno mais elegante de Paris, onde o fraque era obrigatório para todos, exceto para Fargue, que tinha uma maneira aconchegante de apertar calorosamente as mãos e fazer comentários espirituosos dentro de seu colarinho malpassado e seu terno comum, terno esse frequentemente salpicado generosamente com as cinzas do toco de cigarro que sempre tinha dependurado em um canto dos lábios inquietos.

        Como Saint-Exupéry, também, Fargue era habitualmente gastador, e inúmeras eram as histórias sobre sua ingenuidade na obtenção de fundos. Ele era capaz de gastar seu último centavo em um magnífico buquê de flores a ser enviado para uma anfitriã e não pensava duas vezes em entrar num táxi e pedir ao mordomo que pagasse o táxi. Combinar tarifas de táxi era uma tarefa para ele intoleravelmente irritante; e, como praticamente não havia bar ou restaurante em alguma viela de Paris que ele não houvesse explorado na cidade que conhecia como a palma da mão, frequentemente alugava um táxi por toda a noite, indo de um ponto a outro, até finalmente escapulir do pobre motorista entrando em um prédio com uma saída nos fundos de outra rua. Quando as coisas ficavam muito apertadas, ele ia ver seu editor Gaston Gallimard, que também era o de Saint-Ex, e explicava que estava tão duro que  teria que vender o velho guarda-roupa da mãe (que ocupava uma quantidade impressionante de espaço no apartamento que ocupava há muitos anos perto da Gare Montparnasse). A súplica colocada em nome desta "antiga propriedade da família" geralmente era suficiente para espremer mais algumas notas  de um adiantamento ou as últimas gotas de um pagamento de royalties do arguto editor, que tinha sangue Normando nas veias, famosos por sua argúcia; por outro lado Gallimard, que tinha um bom senso de humor, não se condoía ao saber que Fargue havia usado a mesma história triste em diversas outras “vítimas”.

          "Devo dizer que nos tornamos amigos de imediato?" Fargue escreveu mais tarde sobre Saint-Exupéry. A resposta aparentemente era "sim"; pois Saint-Ex tinha uma "maneira de atacar perguntas e queijos que me atraíam. Era hábil e direto, embora meio escondido por uma cortina impalpável de negligência e fantasia. Era extrovertido e jovial. . . Mas de repente atento, como alguém que de repente ver passar na sua frente algo que nunca foi vislumbrado antes.”

          O que Saint-Exupéry disse a Fargue naquela noite na Brasserie Lipp não sabemos, mas aparentemente suas palavras causaram uma impressão considerável. Por um ou dois dias, depois disso, Fargue apareceu no salão das tardes de Terça da Comtesse Marthe de Fels, no elegante arrondissement 16, dizendo: "Ah, le pauvre Saint-Ex! Ele está aflito. Está sendo enviado para a Rússia para fazer uma reportagem e se sente completamente perdido. O que podemos fazer para ajudá-lo? "

"Eu tenho a pessoa certa", disse Marthe de Fels, ela também autora publicada pela  Gallimard e uma anfitriã literária que tinha Valéry, Claudel e St. John Perse entre seus amigos. Levando Fargue pelo braço, levou-o ao príncipe Alexander Makinskv, que estava perto do buffet a uma curta distância de um canapé. Um russo branco refugiado, que se instalara em Paris com seus pais, Makinskv conhecia Fargue, mas não Saint-Exupéry, a quem ele concordou com prazer em "iluminar".

Fargue entrou em contato com seu amigo Saint-Ex e concordaram que os três se encontrariam na Brasserie Lipp às 11 horas, um ou dois dias mais tarde. Saint-Exupéry apareceu na hora marcada, assim como Makinsky, mas — tipicamente como sempre — não havia sinal de Fargue. Finalmente, depois de uma longa e infrutífera espera, Saint-Ex, que estava sentada perto da entrada, observando os clientes entrarem e atravessarem as portas giratórias, levantou-se e aproximou-se de um estranho que  notou sentado à espera de alguém no meio desse fluxo de gente entrando e saindo. Por acaso ele era. . .o Príncipe Makinsky? Ele era.

O que mais impressionou Makinsky durante a conversa que se seguiu foi a ignorância quase total de Saint-Exupéry sobre a história russa recente. Eventos como o assassinato de Kirov em Leningrado (dezembro anterior) ou as lutas intransigentes que estavam acontecendo dentro do Partido entre Kamenev, Zinoviev, Bukharin e seus seguidores, por um lado, e Stalin e seus capangas, por outro, passaram por ele em branco ou não o interessaram em particular. As complexidades da política soviética, era claro, o intrigavam muito menos do que a situação do povo russo e, como um Latino,  que ele era — até as raízes do cabelo — ele não podia deixar de se perguntar como iria se relacionar com o homem Soviético na rua.

"Deixe-me contar-lhe uma história", disse Makinsky, "que certamente vai incentivá-lo —  quero dizer, as coisas nem sempre são tão ruins quanto parecem. É como se fosse  uma versão russa da legenda de Fausto . . . Não sei se você a conhece? "

Saint-Exupéry balançou a cabeça.

"Bem, era uma vez um homem — vamos chamá-lo de Ivan Ivanovich — que, em situação de desespero decidiu vender sua alma ao Diabo. Então lhe escreveu uma carta e alguns dias depois recebeu uma resposta: o Diabo estaria esperando por ele em determinada hora de certa noite na Montanha Calva — como você sabe, em histórias russas sempre há uma montanha calva por perto. Então, Ivan Ivanovich conseguiu chegar  no local que ficava no meio da mata, mas não encontrou nenhum vestígio do Diabo. Ele estava começando a perder as esperanças quando  avistou um patriarca barbudo sentado silenciosamente sobre um tronco. A última pessoa que esperava encontrar em uma noite no meio da floresta era um santo homem, mas finalmente conseguiu reunir alguma coragem,  se aproximou dele e perguntou: "Padre, você viu alguém por aqui recentemente?"

"Não" respondeu o homem santo. 'Por quê ? Você está esperando alguém?

"Bem, na verdade estou".

"E posso perguntar quem?"

"Como você pode imaginar, houve um momento de silêncio encabulado, e Ivan Ivanovich não sabia o que dizer.

"Seria o diabo, por acaso?" disse o patriarca.

"Bem, sim", foi a resposta assustada. "Mas como você adivinhou?"

"Porque eu sou o Diabo", respondeu o santo homem tranquilamente. "

Makinsky fez uma pausa, divertido com o brilho de interesse nos olhos escuros de Saint-Exupéry.

"E o que aconteceu então?"

"Por que você parece tão surpreso?" Disse o santo homem a Ivan Ivanovich. "

“Porque . . . Porque . . . Bem, francamente, eu esperava que o Diabo fosse um pouco diferente.”

"Ah!" Exclamou o patriarca, "você não percebe que a caneta sempre esteve nas mãos dos meus inimigos?"

TRADUÇÃO: VIRGILIO FREIRE


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