domingo, 4 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT- EXUPÉRY - 40


            Por trás dos rostos melancólicos das fotos da cerimônia, escondiam-se diversas preocupações inquietantes. A Aéropostale e sua filial, Aeroposta Argentina, tinham falido e estavam em processo de liquidação judicial. A conexão com a Patagônia, inaugurada por Saint- Exupéry, não estava mais funcionando, e ele não sabia se conservaria seu emprego na companhia. Dez dias depois, quando foi realizado o casamento civil na prefeitura de Nice, a situação era sombria. Atribuía-se a falência da empresa à inconsequência de investimentos financeiros duvidosos realizados pelo proprietário, Maurice Bouilloux- Lafont, cuja fortuna fora constituída na América do Sul. Nos meses seguintes, a imagem da aviação pioneira era denegrida por múltiplas intrigas políticas e lutas sórdidas, e finalmente pela demissão de Didier Daurat da Aéropostale, após acusações capciosas. A idílica lua-de-mel na casa de Cimiez acabou rapidamente.

            Quase imediatamente após o escândalo da Aéropostale, Saint-Exupéry aceitou um cargo de piloto na linha que transportava o correio de Casablanca a Port-Étienne, e confiou a jovem esposa aos cuidados da mãe até sua partida para Casablanca, algumas semanas mais tarde. Aparentemente, Antoine optara pela linha africana para que sua mulher pudesse aproveitar o clima marroquino, atenuando assim sua asma.

            Durante sete meses, em 1931, até seu retorno a Agay, onde passou o Natal com a família, Saint-Exupéry permaneceu à margem da questão da Aéropostale, recolhendo novos materiais para aquilo que seria Terra dos Homens. Os problemas da Aeroposta Argentina despertavam seu senso de humor fatalista, como é revelado num trecho em que ele “desliza para além dos confins deste mundo”, durante uma viagem durante a qual seu operador de rádio, Jacques Néri, recebe uma informação errada sobre sua posição, numa noite em que sobrevoavam Rio de Oro, rumo ao norte. No limite da reserva de combustível, esperavam desesperadamente ajuda das bases do deserto, que permaneciam mudas. Ironicamente, receberam apenas uma mensagem intempestiva da base de Casablanca, informando Saint-Exupéry que os serviços de controle estavam lhe infligindo uma sanção por ter roçado nos hangares no momento da decolagem de um voo anterior, rumo ao sul.

            No livro, seu desprezo pela estupidez da administração demonstra sua aversão pela burocracia que asfixiava a Aéropostale antes de ela ser obrigada a associar-se a outras companhias para formar a Air France, em 1933.

            A aventura com Jacques Néri quase teve um fim trágico, porém em Terra dos Homens Saint-Exupéry não faz qualquer alusão à angústia sentida pelas mulheres de piloto que esperavam ansiosamente o retorno do marido, algumas vezes com diversas horas de atraso. No entanto, este é um dos temas principais de Voo Noturno. Fabien, o jovem aviador que morre no final do romance, estava casado há apenas seis semanas. Sua jovem esposa, Simone, que o espera em casa com um jantar à luz de velas, liga para Rivière para saber se o marido chegara. A brusca irritação do diretor ante esse angustiado apelo — “as mães e esposas não estão autorizadas a penetrar no teatro de operações” — leva o autor a pensar nos sofrimentos de uma família de piloto. Rivière considera uma inimiga a esposa de Fabien porque ela “defende um mundo absoluto com seus direitos e deveres”, mas dificilmente encontra argumentos para contradizer o que chama de “verdade de Simone”. E quando Rivière tenta justificar-se, ela não pode ouvi-lo. “Ela havia caído”, achava ele, “machucando os pulsos frágeis contra a parede.”        

            Nenhum texto de Saint-Exupéry explicita a maneira com que ele compreendia o medo que afetava Consuelo, particularmente depois de sua chegada a Casablanca, quando ela se reuniu a outras mulheres ansiosas pelo regresso dos maridos, que haviam partido para um longo percurso numa região costeira hostil. A entrada em operação do Latécoère 26 tornara o itinerário muito mais seguro. Contudo, as tempestades de areia, as panes no motor, os acidentes e sequestros ainda faziam parte das tragédias previsíveis. Recentemente, os dissidentes tinham sequestrado o operador de rádio Jacques Néri e outros dois aviadores, após uma aterrissagem de emergência.

            Agora as decolagens eram feitas na hora do crepúsculo, e essas viagens noturnas aumentavam ainda mais o receio das mulheres que velavam em casa. Os pilotos eram obrigados a realizar voos cada vez mais longos, diminuindo as escalas técnicas. Chegavam esgotados à base, às vezes após um périplo de vários dias consecutivos. Mesmo deixando de lado o terror que sentia enquanto esperava por Antoine, os meses passados no Marrocos devem ter sido uma amarga revelação para Consuelo. Ela abandonara sua vida de boêmia e o ambiente artístico parisiense por uma cidade que o próprio Saint-Exupéry considerava desinteressante. Ele detestava a vida social artificial dos colonos franceses, que, para Consuelo, representava a única alternativa à companhia das mulheres de piloto durante as longas missões do marido. Ela descobriu sozinha o que Louise de Vilmorin pressentira: em Antoine, com frequência a paixão pela aviação superava o amor. Isso teria sido suportável na Argentina, onde se falava sua língua materna e onde seu temperamento latino teria sido mais tolerado, porém em Casablanca, numa vida dividida entre a arrogância francesa e o rancor árabe, ela se sentia uma estranha.

            A ausência de Saint-Exupéry era uma forma de tirania ainda pior que a exigência de sua presença. Consuelo tinha tempo demais para meditar sobre as questionáveis vantagens de ter um esposo aviador, que nem sequer tinha a certeza de receber seu salário no fim do mês. Seu grande consolo era a correspondência apaixonada que recebia, que chegava às suas mãos pelo serviço regular da Aéropostale, quando Saint-Exupéry cruzava com outros pilotos pelas pistas do deserto. O volume de sua correspondência divertia seus colegas, e às vezes ele atrasava os horários de decolagem para permitir que suas cartas partissem no último momento.

            A eloquência das missivas fazia Consuelo pensar que ele abandonaria a aviação para consagrar-se à literatura. Essa esperança aumentou quando, numa escala em cabo Juby, em 4 de dezembro de 1931, Antoine encontrou uma mensagem anunciando-lhe a atribuição do prêmio Fémina por Voo Noturno, uma prestigiosa recompensa literária outorgada por um júri composto exclusivamente por mulheres. O ofício estava acompanhado de uma autorização para viajar à França a fim de receber o prêmio, com a condição de transportar o correio de cabo Juby a Toulouse. Vinte horas mais tarde, ele aterrissava lá, viva imagem do piloto veterano desafiando os elementos. Além de uma barba de dois dias, tinha o rosto coberto de graxa de motor e estava usando um uniforme sujo e esfarrapado, bem como uma gasta capa puída amarrada à cintura por um barbante. Após um breve intervalo para escrever o relatório de um voo sem incidentes, vestiu um terno amarrotado e pegou um trem para Paris, onde finalmente pôde saborear o luxo de um banho no hotel Lutétia.

            Só uma metáfora aeronáutica pode descrever o que ocorreu quase imediatamente depois disso. Em plena ascensão à glória literária, Saint-Exupéry caiu numa turbulência que o empurrou brutalmente até o nível em que se encontrava quatro anos antes, na época em que percorria as estradas como representante comercial. A publicação de Voo Noturno valeu-lhe tantas desilusões que nunca mais escreveu outro romance. A reação desfavorável dos aviadores da Aéropostale o surpreendeu e magoou, fazendo-o sentir que cometera um crime ao glorificar seu heroísmo.

            Embora às vezes fosse demasiadamente sensível à crítica, o choque que sentiu se justificava em parte. Muitos de seus colegas passaram a tratá-lo como inimigo, evidenciando antigos rancores da época de cabo Juby ou da América do Sul. Os conflitos internos tinham dividido a Aéropostale em dois clãs, um pró-Daurat e outro anti-Daurat. Após a publicação do livro, era impossível ignorar de que lado estava Saint-Exupéry, bem antes de sua campanha com Mermoz e Guillaumet, para a reabilitação do antigo diretor. Por ciúme ou espírito de vingança, alguns pilotos e membros da equipe de solo da Aéropostale uniram-se ao coro de queixas contra Saint-Exupéry, afirmando que era um pretensioso e que tinha explorado sua experiência para aumentar sua glória pessoal. Em compensação, outros defendiam-no abertamente. Mermoz enviou-lhe um telegrama expressando sua felicidade por ver recompensado o talento do amigo e desejando-lhe futuros sucessos. Guillaumet estava na América do Sul, e Saint-Exupéry não tentou entrar em contato com ele, temendo a reação do colega. Escreveu-lhe quando ficou sabendo que voltara à França para um período de férias. Angustiado, Antoine contava-lhe como fora renegado pelos companheiros por ter escrito “este desgraçado livro”, suplicando ao amigo que não acabasse com sua amizade. Confessava que estava arrependido de ter escrito Voo Noturno, e convidava humildemente Henri para vir discutir o livro com ele, em Paris. Com mais bom senso que imaginação, Guillaumet deve ter-se perguntado por que o amigo estava tão alarmado. Fora um dos primeiros a ler o manuscrito em Buenos Aires, e no momento de dar sua opinião esquivou-se, frisando que a morte de Fabien fizera chorar sua mulher, Noëlle.

            Levando em conta suas relações fraternais, o livro certamente não causou nenhuma reprovação de Guillaumet. Quando ele foi ocupar um cargo em Casablanca e reencontrou-se com Saint-Exupéry, que voltava pela terceira vez à África ocidental, sua amizade continuou, e Noëlle foi incluída nela. Um dia, Guillaumet foi dado como desaparecido no meio de uma tempestade de areia; Saint-Exupéry não contou nada a Noëlle e convidou-a para ir ao cinema. A cada meia hora ele saía discretamente para saber se havia alguma novidade, e só mencionou o fato quando o avião de Henri chegou à base.

            Esse fato prova novamente que Saint-Exupéry conhecia perfeitamente a terrível tensão que se abatia sobre as mulheres dos pilotos, particularmente sobre a sua. No entanto, apesar da enorme emotividade que lhe fazia sentir uma desproporcionada inquietação quando Consuelo simplesmente se atrasava para um encontro, nunca pensou em encerrar suas atividades.

            Embora Voo Noturno se tornasse um dos romances franceses mais populares do século XX, a controvérsia sobre seu elogio ao dever e à disciplina continuou durante muito tempo após a morte do autor, quando Daurat não quis se reconhecer no personagem de Rivière. Quando o livro foi publicado, alguns críticos acharam que o autoritarismo do personagem chegava a ser quase fascista.


            Mais tarde, as inquietantes concepções de obediência cega às ordens e respeito escrupuloso ao regulamento foram questionadas pela guerra. No conturbado período do regime de Vichy, em que a filosofia da ordem primava sobre o espírito de justiça, numerosos leitores sentiam um certo mal-estar diante da interpretação de André Gide da mensagem central de Voo Noturno. Ele dizia que Saint-Exupéry acentuava o sentimento de que “a felicidade humana não se encontra na liberdade, mas sim na aceitação do dever”, um princípio que levou muitos franceses a seguirem as diretrizes do governo e a colaborar com os alemães.


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