quarta-feira, 21 de junho de 2017

VOO NOTURNO - 10

Enquanto retornava à mesa de trabalho, com um maço de papéis na mão, Rivière voltou a sentir aquela dor aguda do lado esquerdo, que já o atormentava havia algumas semanas. “Isto não é bom...”

            Apoiou-se por um segundo contra a parede:

            “É ridículo”.

            Em seguida, conseguiu chegar à sua poltrona.

            Sentia-se, uma vez mais, imobilizado como um velho leão, e uma grande tristeza o invadiu.

            “Tanto trabalho para chegar a isso! Tenho cinquenta anos; por cinquenta anos preenchi minha vida, fui me formando, lutei, modifiquei o curso dos acontecimentos e eis agora o que me ocupa, preenche e ultrapassa o mundo em importância... É ridículo.”

            Esperou, enxugou um pouco de suor e, quando se sentiu melhor, voltou a trabalhar.

            Examinava lentamente as notas.

            “Constatamos em Buenos Aires, durante o desmonte do motor 301... aplicaremos uma grave sanção ao responsável.”

            Assinou.

            “Não tendo a escala de Florianópolis observado as instruções...”

            Assinou.

            “Será transferido, como medida disciplinar, o chefe de aeroporto Richard, que...”

            Assinou.

            Em seguida, a dor entorpecida, mas presente e nova, como um novo sentido da vida, obrigava-o a pensar em si mesmo. E ele foi quase amargo.

            “Sou justo ou injusto? Ignoro-o. Se eu o castigo, as avarias diminuem. O responsável não é o homem, é algo como uma potência obscura que nunca alcançamos, se não alcançarmos todo o mundo. Se eu fosse extremamente justo, um voo noturno significaria, a cada vez, uma possibilidade de morte.”

            Veio-lhe certa lassidão por ter traçado o caminho com tanta dureza. Pensou que a compaixão era um sentimento bom. Absorto no seu sonho, continuava folheando as notas.

            “...quanto a Roblet, a partir de hoje, ele não faz mais parte da nossa equipe.”

            Relembrou o bom velho e reviveu a conversa daquela tarde:

            — O que você quer? Trata-se de dar o exemplo.

            — Mas, senhor... mas, senhor. Uma vez, uma só vez, e eu trabalhei toda a minha vida!

            — É preciso dar o exemplo.

            — Mas, senhor! Olhe, senhor!

            Então, pegou a carteira usada e a velha folha de jornal, em que ele, o jovem Roblet, posava em pé, ao lado do avião.

            Rivière via as velhas mãos tremerem diante dessa glória ingênua.

            — Esta foto data de 1910, senhor... Fui eu que fiz a montagem, aqui, do primeiro avião da Argentina! A aviação, desde 1910... Senhor, são vinte anos! Então, como pode dizer... E os jovens, senhor, vão rir lá na oficina! Ah! Vão rir com gosto.

            — Isso me é indiferente.

            — E os meus filhos, senhor! Tenho filhos!

            — Eu já lhe disse: ofereço-lhe um cargo como auxiliar de serviços gerais.

            — Minha dignidade. Minha dignidade, senhor, minha dignidade. Veja, senhor, vinte anos de aviação, um velho operário como eu...

            — De auxiliar.

            — Eu recuso, senhor, recuso!

            E as velhas mãos tremiam, e Rivière desviava os olhos daquela pele enrugada, espessa e bela.

            — De auxiliar.

            — Não, senhor, não... Eu quero lhe dizer ainda...

            — Pode retirar-se.

            Não é a ele que eu despedi assim brutalmente, é ao mal pelo qual, talvez, ele não era o responsável, mas que passava por ele.

            “Porque nós comandamos os acontecimentos, e eles obedecem; e assim criamos”, pensava. “Os homens são coisas pobres, que nós criamos também ou os afastamos quando o mal passa por eles.

            “Vou lhe dizer ainda... O que esse pobre velho queria falar? Que lhe arrancávamos suas velhas alegrias? Que ele amava o som das ferramentas batendo no aço dos aviões, que privávamos sua vida de uma grande poesia e, além disso... que era preciso viver? Estou muito cansado”, pensava Rivière.

            A febre subia em seu corpo, acariciando-o. Batendo com os dedos na folha de papel, pensava: “Eu bem que gostava da cara daquele velho companheiro...” E via novamente aquelas mãos.

            Pensava no frágil movimento que esboçariam para se juntar. Bastaria dizer: “Está bem. Está bem. Fique”. Rivière sonhava com o fluxo de alegria que desceria daquelas velhas mãos. E aquela alegria que diriam, que iriam expressar, não aquele rosto, mas aquelas velhas mãos de operário, pareceu-lhe a coisa mais bela do mundo. “Vou rasgar essa nota?” E a família do velho, e a volta para casa ao anoitecer, e este modesto orgulho:

            — Então, não o despediram?

            — Ora! Mandarem-me embora? Fui eu que fiz a montagem do primeiro avião da Argentina.

            E tendo o ancião reconquistado o prestígio, os jovens já não ririam...

            “Rasgo?”

            O telefone tocou e Rivière tirou o fone do gancho.

            Um longo tempo, em seguida essa ressonância, essa profundidade que o vento trazia às vozes humanas. Por fim, falaram:

            — Aqui fala do campo de aviação. Quem fala?

            — Rivière.

            — Senhor diretor, o 650 está na pista.

            — Está bem.

            — Enfim, tudo está pronto, mas na última hora tivemos de refazer o circuito elétrico, pois as conexões estavam com defeito.

            — Está bem. Quem montou o circuito?

            — Verificaremos. Se o senhor permitir, gostaríamos de punir o responsável. Uma avaria na luz a bordo pode ser grave!

            — Certamente.

            Rivière pensava: “Se não cortamos o mal pela raiz, quando o encontramos, onde quer que ele esteja, acontecem avarias elétricas; é um crime deixar que o mal escape quando, por acaso, ele descobre seus instrumentos: Roblet deve partir”.

            O secretário, que não percebeu nada, continuou teclando.

            — O quê?

            — A contabilidade da quinzena.

            — Por que não está pronta?

            — Eu...

            — Veremos isso.

            “E curioso como os acontecimentos assumem o controle, como uma grande força obscura se revela, a mesma que levanta as florestas virgens, que cresce, força, brota por todos os lados ao redor das grandes obras.” Rivière pensava nos templos que pequenas trepadeiras fazem desmoronar.

            “Uma grande obra...”

            Pensou ainda para se tranquilizar: “Amo a todos esses homens e não é a eles que combato. É o que passa por eles...”

            Seu coração batia a compassos rápidos, que o faziam sofrer.

            “Não sei se o que eu fiz é bom. Não sei o valor exato da vida humana, nem da justiça, nem da dor. Não sei exatamente quanto vale a alegria dos homens, nem uma mão que treme, nem a piedade, nem a doçura...”

            Sonhou:

            “A vida se contradiz tanto, viramo-nos como podemos com a vida... Mas permanecer, criar, trocar o corpo perecível...”

           

            Rivière refletiu e depois tocou a campainha.

            — Por favor, telefone para o piloto do correio da Europa e peça que venha me ver antes de partir.

            Pensava:

           
“Não é necessário que esse correio dê meia-volta desnecessariamente. Se não sacudo meus homens, a noite sempre vai inquietá-los”.

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