André Paul Guillaume Gide (Paris, 22 de novembro de 1869 — Paris, 19 de fevereiro de 1951) foi um escritor francês.
Recebeu o Nobel de Literatura de 1947. Oriundo de
uma família da alta burguesia, foi o fundador da Editora
Gallimard e da revista Nouvelle Revue Française.
Gide não somente era homossexual assumido, como também falava abertamente em
favor dos direitos dos homossexuais, tendo escrito e publicado, entre 1910 e
1924, um livro destinado a combater os preconceitos homofóbicos da sociedade de
seu tempo, Corydon.
Liberdade e libertação recusando
restrições morais e puritanas, a sua obra articula-se ao redor da busca
permanente da honestidade intelectual: como ser igual a si mesmo, ao ponto de
assumir a sua pederastia e a sua homossexualidade.
Entre as suas obras mais importantes estão Os Frutos da Terra, a já mencionada Corydon, A Sinfonia Pastoral, O Imoralista e Os Moedeiros Falsos.
Infância
André Gide nasceu no dia 22 de Novembro de 1869 em Paris,
filho de Paul Gide, um professor de direito na Universidade de Paris, e de
Juliette Rondeaux. O pai, natural de Uzés, descendia de uma austera
família protestante. A mãe era filha de burgueses ricos
de Rouen,
originalmente católicos, mas convertidos ao protestantismo. A
infância de Gide foi marcada por uma alternância de residência entre a Normandia (em
Rouen) e La Roque, junto da família materna, e Uzés, na casa da sua avó
paterna, onde se apaixona fortemente pela paisagem campestre. Gide atribuirá
grande importância a estas influências contraditórias, exagerando o seu
carácter de antitético.
Em Paris, os Gide residiram sucessivamente
na rue de Médicis e, posteriormente, na rue de Tournon (a
partir de 1875), junto ao Jardim do Luxemburgo. Não muito longe,
instalou-se Anna Shackleton, uma devota escocesa,
que seria governanta e professora de Juliette, que acabaria por lhe dedicar uma
amizade indefectível. Anna, pela sua delicadeza, jovialidade e inteligência,
tem um papel importante na infância do jovem Gide. Evocada em Porte
Étroite e em Si le grain ne meurt, a sua morte em 1884
marcará André profunda e dolorosamente.
O jovem André inicia a sua
aprendizagem do piano, que será a companhia de toda a sua vida. Pianista nato,
Gide lamentará nunca ter tido professores que o tivessem transformado num
verdadeiro músico. Em 1877, é admitido na École alsacienne, um
internato, iniciando uma escolaridade irregular e descontínua. Com efeito, é
rapidamente suspenso por três meses por se ter deixado levar pelos seus
"maus hábitos" durante o período escolar. Pouco depois do seu
regresso à escola - "curado" pelas ameaças de castração de um médico
e pela tristeza dos seus pais - a "doença" reincide: a masturbação,
a que ele chama "vice" e
que pratica sem deixar de se sentir pecador e tristemente defeituoso,
rapidamente retomará o seu lugar entre os seus hábitos levando-o a escrever,
aos 23 anos, que viveu até essa idade "completamente virgem e depravado".
A morte do seu pai, em 28 de Outubro
de 1880, afasta-o um pouco mais da escolaridade normal. Já marcado pela morte
de uma jovem prima, Émile Widmer, que lhe provoca profunda crise de angústia,
André perde, com a morte do seu pai, um relacionamento feliz e terno que o
deixa só face à sua mãe "E senti-me de repente todo envolvido por esse
amor, que infelizmente se encerrou em mim". Juliette
Gide, muitas vezes descrita como uma mãe rigorosa e castradora, não deixa de
amar profundamente o seu filho, amor que este retribui. Acompanhá-lo-á
constantemente no seu caminho de desenvolvimento intelectual - pronta a
prestar-se ao contraditório - e revelará uma agilidade espiritual bem superior
á que seria de esperar de uma jovem Rondeaux.
Durante o ano de 1881, Juliette Gide
leva-o para a Normandia onde o entrega aos cuidados de um professor pouco
inspirado. André conhece um segundo período de grande depressão (Schaudern):
"Não sou igual aos outros! Não sou igual aos outros!". Vai
depois para Montpellier, para junto do seu tio Charles Gide. Perseguido
pelos seus colegas, Gide escapa do liceu graças a uma doença nervosa mais ou
menos simulada. Depois de uma sequência de curas, é reintegrado na École
alsacienne em 1882, onde é assolado por violentas enxaquecas,
seguindo-se uma alternância entre Paris e Rouen e entre um conjunto de
professores particulares de eficácia variável.
As vocações
Durante uma das suas estadas em Rouen, no Outono de 1882,
descobre a mágoa secreta da sua prima Madeleine em relação às relações adúlteras da
sua mãe. Afundado em emoção, Gide descobre "um novo oriente para a
(sua) vida". Nasce
então uma relação longa e tortuosa. Gide deixa-se fascinar por esta rapariga,
pela sua consciência do mal, pelo seu feito rígido e conformista; um conjunto
de diferenças que o fascina. Constrói da sua prima, pouco a pouco, uma imagem
de perfeição pela qual se apaixona, de forma puramente intelectual, mas não
menos ardente.
A partir de 1883, tem aulas
particulares com Madame Bauer, com quem descobre, entre outros, o Journal d'Amiel, que o incentiva a escrever o seu
próprio diário intímo. O seu primo, Albert Démarest, pela sua atenção bondosa e
aberta, tem também um papel importante junto de Gide, conseguindo que a a sua
mãe reticente lhe conceda acesso à biblioteca paternal.
Entre 1885 e 1888, o jovem André
vive um período de exaltação religiosa - qualificada de "estado
seráfico" -
que ele partilha com a sua prima graças a uma correspondência alimentada por
leituras comuns. Consulta abundamentemente a Bíblia,
os autores gregos e pratica o ascetismo.
Em 1885, trava conhecimento em La Roque com François Witt-Guizot, que associa
durante algum tempo ao seu misticismo.
No ano seguinte, é o pastor Élie Allégret, seu professor de Verão, que se torna
seu amigo.
Em 1887, regressa à École
alsacienne para aprender retórica e
conhece Pierre Louys, com quem se
envolve numa amizade apaixonada, que gravita em redor da literatura e do seu
desejo comum de escrever. No ano seguinte, enquanto prepara o exame de filosofia no
liceu Henri-IV, Gide descobre Schopenhauer.
Passa a frequentar os salões literários de Paris, onde conhece numerosos
escritores. O seu primeiro trabalho, Les Cahiers d'André Walter,
com o qual espera obter o primeiro sucesso literário e a mão da sua prima,
obtem críticas favoráveis e atrai a atenção do público.
Os Cahiers proporcionam-lhe
conhecer Maurice Barrès (de o Culte du moi,
não o de Déracinés, a quem se oporá) e Mallarmé, que catalisará a transformação do
misticismo religioso de Gide em misticismo ético. O despontar de uma amizade
duradoura com Paul Valéry é acompanhada da deterioração
das relações com Pierre Louys, que o acusa, tal como a sua prima, de
egocentrismo. Madeleine, entretanto, recusa o casamento e afasta-se
inquietamente dele. Inicia-se então uma longa luta para vencer a sua
resistência e convencer a família, que também se opõe à união. No seu conjunto,
Gide classifica este período de frequência assídua e vã dos salões como uma
"selva obscura" que
o deprime.
A "tentação de viver”
Em 1891, pouco depois de ter escrito o Traité du Narcisse, conhece Oscar Wilde, personalidade que tanto o assusta como o fascina. Para Gide, que começa a afastar-se de André Walter, do seu ideal ascético, da rejeição da vida, Wilde é o exemplo vivo de uma alternativa.
Na Primavera de 1892, uma viagem
pela Alemanha,
sem a sua mãe, é a ocasião para aprofundar o seu conhecimento sobre Goethe.
Gide começa então a pensar que "é um dever ser feliz". Nas Élégies
romaines, Gide descobre a legitimidade do prazer - em oposição ao
puritanismo que sempre havia conhecido - que resulta para ele numa
"tentação de viver". É então que começam as tensões com a sua mãe,
que continua decidida em defender as pretensões do filho em relação a
Madeleine, contra o resto da família Rondeaux e da própria, determinados em não
permitir o casamento entre os primos.
Durante o Verão de 1892, escreve
a Voyage d'Urien. Após a publicação, o livro é ignorado pela
crítica e os encorajamentos dos amigos próximos são pouco convincentes. No
Outono, depois de uma breve passagem pelas casernas e cinco juntas, Gide é
considerado inapto para o serviço militar. O ano seguinte é marcado pelo
nascimento de uma nova amizade, inicialmente apenas epistolar, com Francis James, que o
apresentou a Eugène Rouart.
André Gide em 1893 |
Enquanto Paul Laurens regressa a
França, Gide ruma à Suíça para consultar o Doutor Andreae, que lhe
diagnostica uma doença essencialmente nervosa e lhe dá esperança na cura.
Depois de uma passagem por La Roque, Gide regressa à Suíça e instala-se
em La Brévine, que servirá de
cenário a La Symphonie pastorale. Aí escreve Paludes e
planeia Les nourritures terrestres.
O casamento
O ano de 1895 inicia-se para André Gide com uma segunda
viagem à Argélia, onde encontra de novo Wilde acompanhado de Lord Alfred
Douglas ("Bosie")
e onde acontece uma outra noite decisiva na companhia de um jovem músico. A
correspondência com a sua mãe regista uma oposição entre ambos cada vez mais
veemente. No entanto, no seu regresso a França, a situação está tranquila.
Madeleine, que revê nessa altura, reaproxima-se finalmente dele e a morte da
sua mãe, Juliette, em 31 de Maio de 1895 - que marca simultaneamente um momento
de grande dor mas também de libertação - precipita os acontecimentos. O noivado
é anunciado em Junho e o casamento, que nunca será consumado, é marcado para
Outubro. Durante a viagem de núpcias de sete meses, André, apesar de bem de
saúde, sente-se incessantemente travado pela uma esposa doentia. Na Suíça,
trabalha em Traité du Narcisse, que havia começado em Biskra.
Escreve também um pósfacio para Paludes, declarando encerrado, de
forma satírica, o período simbolista e considerando as Nourritures a
nova via. Gide manterá futuramente o hábito de imaginar as suas obras como
balizas no seu caminho, escritas em reacção umas às outras e impossíveis de
compreender completamente senão através de uma leitura conjunta.
A viagem dos recém-casados prossegue
em Itália e, novamente, na Argélia onde, em Biskra, os Gide recebem a visita
de Francis James e de
Rouart. De regresso a França, na Primavera de 1896, Gide descobre que foi
eleito presidente da municipalidade de La Roque. Exerce o seu mandato
recusando-se a filiar-se politicamente, tal como recusará sempre pertencer a
uma determinada escola literária. No Verão, escreve El Hadj (publicado
na revista Centaure) e termina Les Nourritures.
Publicado em 1897, este livro recebe um acolhimento elogioso, embora tanto no
que respeita aos temas de fundo (Francis James e outros censuram o seu
individualismo e a sua alegria indecente) quanto à forma, a crítica tenha tido
dificuldade de compreender a estrutura da obra, com a notável excepção de Henri Ghéon. Os
dois homens acabam por criar uma amizade profunda que durará até à conversão ao
catolicismo de Ghéon, em 1916.
Teatro e crónicas
Durante o Inverno de 1898, Gide começa a interessar-se
pelo caso Dreyfus. Subscreve a petição de apoio
a Zola,
mas recusa romper o diálogo com os que, de entre os que o rodeiam, tomam o
partido contrário. Sem transigir, esforça-se por compreender, senão mesmo
convencer, os seus adversários. Uma estadia de dez semanas em Roma - de que ele
finalmente começa a gostar - é marcado pela descoberta de Nietzsche, onde revê os seus pensamentos mais
secretos: "O grande reconhecimento que lhe devoto é o de ter aberto uma
estrada real onde eu não ousei, talvez, traçar mais que uma vereda".
Trabalha na peça de teatro Saül.
Contraponto de Nourritures, esta obra deve revelar o perigo de uma
disposição exagerada à abertura, o risco da dissolução da personalidade. Uma
vez terminada a peça, Gide tenta obstinadamente, mas em vão, levá-la à cena, o
que explica a sua publicação tardia em 1903.
O ano de 1898 traduz-se igualmente
numa actividade cada vez mais sustentada de crítico e cronista, especialmente
na L'Ermitage, revista em que desempenha um papel proeminente,
embora não seja o seu director. Escreve sobre Nietzsche, faz o elogio fúnebre
de Mallarmé e responde aos Déracinés de Barrès.
É, no entanto, na revista Revue Blanche que publica Philoctète.
Pouco depois, a publicação de Prométhée mal enchaîné, mal
compreendido pela crítica, passa depercebido.
Na Primavera de 1899, Gide
aproxima-se do casal van Rysselberghe. Os Cahiers de la Petite Dame (Maria
van Rysselberghe), iniciados em 1918, e que Gide desconhecia, prosseguiram até
à sua morte, e constituem um testemunho precioso para os seus biógrafos. No ano
seguinte, Gide inicia uma colaboração regular com a La Revue Blanche.
Finalmente, em 1901, consegue encenar uma das suas peças de teatro, mas a
estreia de Roi Caudaule (escrita em 1899) é um desastre. A
peça é demolida pela crítica e Gide passa, a partir daí, a desdenhar o grande
público e o teatro.
De L'immoraliste a Porte
étroite
Em 1902, L'immoraliste obtem maior sucesso mas o autor, rapidamente asociado pela crítica ao personagem Michel, sente-se incompreendido. Segundo ele, Michel não passa de uma virtualização dele próprio, de que ele se purga escrevendo. Depois de L'Immoraliste, segue-se um período vazio que se prolonga até à publicação de La Porte étroite en 1909. Nesse período, tem dificuldade em escrever, publicando apenas Prétextes (colectânea de críticas, em 1903), 'Amyntas (em 1906, sem nenhum impacto na crítica) e o Retour de l'enfant prodigue (1907). Publica igualmente uma homenagem a Oscar Wilde em 1902: a batalha assim iniciada para preservar a memória do romancista contra as críticas hipócritas de Bosie prosseguirá com Si le grain ne meurt.
Durante estes anos novas amizades se
criam ou se aprofundam (com Jacques
Copeau, Jean Schlumberger, Charles du Bos). Outras
diluem-se progressivamente, como com James, após a conversão
por Paul Claudel, mesmo se as dissensões entre os
dois amigos já precediam a conversão. Gide é também abordado por Claudel, que
se apelida a si próprio de "zelota" e de "fanático". A
tentativa de Claudel é mal sucedida uma vez que Gide parece preferir apenas
viver a experiência da fé através de Claudel, por empatia,ao invés de se
converter. É também durante este período, depois de ter vendido La Roque em
1900, que Gide manda construir a sua mansão em Auteuil, que classifica de
inabitável, pela qual Madeleine se apaixona imediatamente, e na qual Gide
viverá vinte e dois anos (de 1906 a 1928).
O fim do decénio é marcado por um
regresso à escrita, com La Porte
étroite, e pela criação da NRF (Nouvelle Revue Française). La
Porte étroite é o primeiro livro de Gide que lhe traz alguns proveitos
financeiros. A crítica não o elogia e Gide sente-se, uma vez mais,
incompreendido. Tal como já o haviam associado antes a Michel, associam-no
agora a Alissa, embora o seu esforço de empatia para com a sua heroína não
constitua uma aprovação. A dimensão irónica e crítica da obra passa
generalizadamente despercebida.
No que respeita à NRF, se Gide não é
oficialmente o director, é na prática o chefe, rodeado por Jean Schlumberger e Jacques
Copeau. Em 1911, o grupo associa-se à Gaston Gallimard para
obter o apoio de uma editora para a revista. Isabelle será um
dos primeiros títulos do catálogo.
Corydon
André Gide em 1920 |
O ano de 1913 é marcado pelo
nascimento de uma nova e profunda amizade, unindo Gide a Roger Martin du Gard, após a publicação
de Jean Barois pela Gallimard. Amigo fiel e
crítico desprovido de indulgência, Roger Martin du Gard manter-se-á no círculo
de relações próxima de Gide até à morte deste.
No ano seguinte, a publicação
de Les Caves du Vatican, concebido como
um "livro surpreendente, cheio de falhas, de buracos, mas também de
divertimento, de bizarrias e de sucessos parciais", é
um insucesso. O livro aborrece em particular Paul Claudel, que aí descobre tons
pederastas. Depois de exigir a Gide que se explique, passa a recusar qualquer
colaboração com ele. Progressivamente afastado da direcção efectiva da NRF,
abandonado a Jacques Rivière e
Gaston Gallimard, Gide fica sem trabalho nos inícios da Primeira Guerra Mundial. Depois de um
primeiro instinto nacionalista, desenvolve uma reflexão sobre a
complementaridade possível entre a França e a Alemanha,
visão do futuro de uma Europa cultural que defenderá a partir do fim da guerra (encontros
com Walter Rathenau).
O ano de 1916 assiste a uma nova
tentativa de conversão ao catolicismo, após crise provocada pela conversão
de Henri Ghéon. Para Gide, o
problema é mais moral que religioso: Gide hesita entre um paganismo que
lhe permite afirmar-se na alegria e uma religião que lhe proporciona as
ferramentas para combater o seu pecado. Esta sua reflexão resulta na escrita
de Numquid et tu. No final, a conversão falha, pela rejeição da
instituição eclesiástica, pela recusa de substituir uma verdade pessoal por uma
verdade institucional e de abandonar a sua liberdade de pensar. O dogmatismo dos
católicos que o rodeiam, como Paul Claudel, afasta-o também dessa via. Para
seguir o seu caminho, começa a redacção de Si le grain ne meurt.
O ano seguinte é bem diferente. Em
Maio (de 1917), Gide inicia uma relação como o jovem Marc Allégret.
O amor e o desejo, que até então haviam seguido vias separadas, vibram desta
vez em uníssono no coração e no corpo. Ao mesmo tempo que retoma a escrita
de Corydon, Henri Ghéon afasta-se definitivamente. Em 1918, é
Madalena que se desliga dele. Enquanto viaja na Inglaterra com
Marc, um problema confirma as dúvidas que ela conseguia ainda calar. Queima as
cartas do marido e recolhe-se na sua casa de Cuverville. Gide, a quem a
destruição da sua correspondência deixara inconsolável ("Sofro como se ela
tivesse assassinado o nosso filho"),
torna-se o espectador impotente do lento estiolar da mulher que ainda era o
suporte da sua vida. Este drama dá-lhe, no entanto, uma nova liberdade: a de
publicar Corydon e as suas memórias.
A glória e o seu preço
No seio de uma NRF dividida (a editora
que suportava a revista passou a ser a Librairie Gallimard), Gide
mantém a função simbólica de figura tutelar. Para além de autor, é também
responsável pela descoberta de novos talentos e por facilitar a colaboração
entre escritores já estabelecidos e jovens promessas (Louis Aragon, André Breton, Henry de Montherlant). Na década de 1920,
a sua reputação não pára de aumentar: a sua voz, que fala de mudança dos
espíritos sem invocar a palavra revolução, é escutada com grande respeito. O
seu papel de guia da juventude é-lhe reconhecido, ora com entusiasmo, ora com
consternação. Gide conserva a impressão de que atingiu a calebridade sem nunca
ter sido lido nem compreendido.
A sua influência traz-lhe ataques
virulentos da direita católica (Henri Massis, Henri Béraud),
que lhe censura os seus valores morais, o seu intelectualismo, a hegemonia
da NRFsobre a literatura e, até, sobre a língua francesa. Gide, firmemente apoiado por Roger Martin du Gard, defende-se pouco
pessoalmente mas defende tenazmente a NRF. Vários intelectuais de
direita (Léon Daudet, François Mauriac), que o admiram apesar das
divergências mútuas, recusam-se a participar nessa campanha contra Gide, embora
não saiam a defendê-lo. Com a publicação de Corydon, que apenas
havia sido objecto de uma edição limitada para amigos, Gide fornecerá
argumentos aos seus inimigos. Mas Gide prefere encarar de frente a sua situação
e deixar cair a máscara, recordando-se do caso doloroso de Oscar Wilde.
No entanto, o livro é recebido com indiferença, por ser demasiado explícito, porque
a opinião pública, sempre pronta a levantar novos tabus, ainda não está capaz
de afrontar este. O escândalo chegará apenas dois anos mais tarde com Si le grain ne meurt.
Paternidade
No entanto, a vida de Gide foi perturbada por um outro
acontecimento: o nascimento de Catherine Gide (Abril
de 1923) faz dele um pai, com a cumplicidade de Elisabeth van Rysselberghe,
filha de Maria, a quem tinha escrito: "Não me resigno a ver-te sem filhos
e a não ter, eu mesmo, um". Catherine
apenas será reconhecida oficialmente pelo seu pai depois da morte de Madeleine,
de quem este nascimento havia sido cuidadosamente escondido.
Gide ocupa-se igualmente da instalação de Marc Allégret, criando assim uma família alargada, à margem dos costumes e normas, que reside com ele na rue Vaneau, após a venda da villa Montmorency, em 1928. Na nova residência, um quarto é dedicado a Madeleine e à sua ausência presente, que muito lhe pesa. Les Faux-Monnayeurs, publicado em 1925, é o primeiro livro que não se centra em Madeleine. Pese embora a modernidade da única obra que ele próprio classificou de romance, Gide teme que esta seja antiquada e sofre de apatia, de que recupera apenas na sua viagem ao Congo com Marc Allégret.
A questão colonial
Durante esse périplo de onze meses, Gide reencontra o
prazer do exotismo e do gosto pela história natural. Mas o que deveria
constituir apenas uma viagem de esteta, ganha outro pendor face à realidade do
colonialismo. Gide revolta-se contra a prática do ideal colonial, denunciando
erros administrativos e inexperiência. A sua curiosidade leva-o a compreender a
perversidade de todo o sistema colonial, incluindo o recuo voluntário da
administração pública para abrir caminho ao livre arbítrio das companhias
coloniais. Apercebe-se igualmente que os dirigentes parisienses não só não
desconhecem essas práticas, mas que as chegam a caucionar. Gide envia o seu
testemunho a Blum, que o publica no Le Populaire (Voyage au Congo será
publicado pela NRF em 1927). A direita e as
companhias acusadas reagem acusando o escritor de não ter competência para
julgar o colonialismo, o que é corroborado por alguns inquéritos
administrativos de averiguação. Um debate na Assembleia Nacional termina com
diversas promessas do Governo. Gide teme que a opinião pública esqueça
rapidamente o assunto, mas recusa-se a tomar uma posição de princípio sobre a
questão colonial: o tempo do combate político ainda não havia chegado.
Combate e desilusão
As conversões ao catolicismo multiplicam-se em redor de
Gide (Jacques Copeau, Charles Du Bos). Muitos
esperam com impaciência a sua capitulação. O desejo de ver tombar a cidadela
inexpugnável é reforçado por Gide ter inegáveis raízes cristãs e por se
movimentar nos mesmos terrenos que eles: os terrenos da moralidade e da
espiritualidade. Cansado destes ataques e tentativas de sedução, Gide replica
publicando L'immoraliste (1935).
Pese embora a composição deste
evangelho à alegria, Gide sofre, na década de 1930, um certo sufoco que afecta
a sua escrita, os seus amores e as suas viagens, que ele sente agora mais como
curiosidade do que como paixão. O contacto com Pierre Herbart –
futuro general Le Vigan, que desposa Élisabeth van Rysselberghe em 1931 -–
e Bernard Groethuysen,
desperta-lhe o interesse pelo comunismo,
entusiasmando-o pela experiência russa na qual vê uma esperança, um laboratório
para o homem novo, nos planos moral, psicológico e espiritual.
Ao comprometer-se com esta solução,
Gide cede também à tentação de deixar o purismo estético e de utilizar a
influência que ganhou. A sua tomada de posição não é compreendida pelos que lhe
estão próximos. Roger Martin du Gard aceita mal que
uma vida ocupada no combate aos dogmas desemboque num "acto de fé". Embora
Gide coloque em risco a fama alcançada, não traz à causa nada mais que o seu
nome, uma vez que nunca se sentirá confortável em reuniões políticas. Mas
também é só o seu nome que Gide - muito consciente de ser instrumentalizado -
compromete, recusando-se a comprometer a sua autonomia no campo literário, como
por exemplo, quando não aceita aderir à Associação
dos Escritores e Artistas Revolucionários.
Muitos dos seus novos companheiros
encaram com desdém esse grande burguês que se junta à sua luta, considerando, a
exemplo de Jean Guéhenno, que "o pensamento do Sr.
Gide parece frequentemente não ter para ele nenhum custo associado. O Sr. Gide
não sofreu o suficiente". Rapidamente,
embora aceite presidir a tudo o que se lhe pede para presidir, o seu espírito
debate-se contra a ortodoxia comunista. Gide acaba por desenvolver a sua
própria visão de um comunismo que concilia equalitarismo com individualismo,
evocando nos seus diários "uma religião comunista" que o
intimida. Gide
participa activamente em diversas acções de luta antifascista. Em
1936, as autoridades soviéticas convidam-no a visitar a União Soviética. Acompanhado de alguns amigos
próximos (Jef Last, Pierre Herbart, Louis
Guilloux, Eugène Dabit), aceita o
convite. As suas ilusões desfazem-se: em vez do homem novo, Gide encontra
apenas uma outra forma de totalitarismo.
Aceita progressivamente a amarga decepção que partilha com a dos seus
companheiros, e decide publicar o seu testemunho, Retour de l’URSS.
O Partido Comunista Francês, com Louis Aragon à
cabeça, e as autoridades soviéticas tentam impedir a publicação e asfixiar a
questão em silêncio. Gide reage com Retouches à mon retour d’URSS,
onde não se limita a relatar as suas observações mas escreve um discurso
inflamatório contra o estalinismo. "Que o povo dos
trabalhadores compreenda que se deixou enganar pelos comunistas, como os que
pelos dias de hoje estão em Moscovo". Gera-se então nova onde de ataques contra
si: apelidam-no de fascista, empurram-no para a direita. A hora do abandono soou:
o homem novo não nasceu na URSS, a política não lhe trouxe o que ambicionava.
Mantendo o seu apoio à causa dos republicanos espanhóis (defende, em
particular, os militantes caluniados do Partido Operário de Unificação
Marxista), depressa se concilia com a sua desilusão (sem cair no
anticomunismo odioso ou numa consciência pesada) e tenta voltar a mergulhar na
literatura. Afirma estar arrependido de ter "desaprendido a viver",
ele que o "sabia tão bem" fazer.
A esse luto político sucede um outro
mais pessoal, com a morte de Madeleine, em 17 de Abril de 1938. Depois de haver
amaldiçoado o seu esposo, tinha acabado por aceitar o papel distante mas
essencial que tinha para ele, bem como o amor tão especial que Gide lhe dedicava.
Amor de que ele confessa a estranheza e as dificuldades em Et nunc
manet in te, publicado inicialmente em tiragem reservada aos mais íntimos.
Gide parte à descoberta da
serenidade perdida. O contexto histórico é, no entanto, pouco favorável. O fim da
Guerra de Espanha - "heroísmo ridicularizado, fé traída e vileza
triunfante" - enchem o seu "coração de desgosto, de
indignação, de rancor e de desespero". A
velhice retira-lhe igualmente alguns prazeres: o piano que as suas mãos já não
conseguem percorrer suavemente; as viagens pelas quais perde o entusiasmo que
ele sabia tão bem partilhar; o desejo que se extingue.
A Segunda Guerra Mundial
Bastam alguns dias para que Gide passe do apoio à condenação do Marechal Pétain. Rapidamente é acusado pelos jornais colaboracionistas de haver contribuído para a derrota devido à sua má influência sobre a juventude. Os alemães retomam a NRF, agora dirigida por Drieu la Rochelle. Gide recusa-se a ser associado ao comité de direcção. Escreve um texto para o primeiro número mas, apercebendo-se da orientação tomada pela revista, abstém-se de qualquer outra colaboração, tal como François Mauriac. Independentemente das pressões, amigáveis ou não, anuncia no Le Figaro a sua vontade de abandonar a NRF e recusa também um lugar como académico.
Ao ambiente de Paris, prefere um exílio
dourado e sereno na Côte d’Azur, publicando apenas
ocasionalmente alguns artigos de crítica literária no Le Figaro. A
partir de 1942, os ataques que lhe são dirigidos (e também a outros)
intensificam-se, sem que ele se possa defender, devido à censura. Só, embarca
para Tunis.
Durante a ocupação alemã da cidade, constata com profundo desgosto os efeitos do antisemitismo.
Mais que outras privações, sofre com o isolamento em que se encontra. Acaba por
trocar a Tunis libertada por Argel, onde se encontra com o General de Gaulle.
Aceita a direcção (honorária) do l'Arche, uma revista literária
criada para fazer frente à NRF.
Após o fim da Segunda Guerra
Mundial, decide não regressar directamente a Paris. Teme a "épuration"
(a depuração dos colaboracionistas do regime deposto), não tanto por si próprio
ou pelos seus amigos próximos, que não se sentiam comprometidos, mas pela
perigosa unanimidade criada nessa altura, e que ele considera totalitária. As
suas diferenças de atitude e as suas dúvidas, valem-lhe novos ataque de Louis
Aragon. Gide permite que Jean Paulhan, Mauriac e Pierre Herbart o
defendam publicamente. Quando finalmente decide regressar, em Maio de 1946, tem
dificuldade em encontrar o seu lugar num mundo literário super-politizado, ele
que sempre desejou uma literatura autónoma. Enquanto Sartre utiliza
de bom grado a sua notoriedade para suportar os seus desígnios políticos, Gide
recusa assumir a sua, procurando escapar às solicitações. Para se exprimir,
prefere a publicação de Thésée às tribunas.
O fim
A partir de 1947, cessa quase completamente de escrever.
Continuando a afirmar alto e forte que não renega nada do seu passado -
incluindo 'Corydon, o seu livro mais engajado e menos conseguido - o
escritor anteriormente escandaloso, aceita agora as homenagens de instituições
conservadoras (Universidade de Oxford, Nobel de Literatura de 1947). Provas,
segundo ele, que tinha razão quando acreditava na "virtude da minoria" que
acaba mais cedo ou mais tarde por vencer. Reafirma igualmente o papel do
intelectual distante da actualidade. Foi
através da literatura que se opôs aos preconceitos da sua época, e a sua
influência deve menos às suas opções políticas que à sua arte. Sartre decide
seguir outra via: sem deixar de ser literário, não deixa de colocar a
literatura no centro da sua actividade política.
A sua principal preocupação é a publicação das duas últimas obras, em especial o seu Journal ("Diário"), que não pretende deixar ao cuidado da sua descendência familiar ou espiritual. Em Julho de 1950, inicia um último caderno, Ainsi soit-il ou Les jeux sont faits ("Assim seja ou Os dados estão lançados"), no qual se esforça por deixar correr a pena. "Creio mesmo que, no momento da morte, diria a mim mesmo: ai está! morreu". Doente déspota rodeado dos seus fiéis admiradores, encaminha-se para uma morte calma, desprovida de angústia e sem os sobressaltos religiosos que afectavam ainda alguns. Morre no dia 19 de Fevereiro de 1951, e é enterrado alguns dias mais tarde em Cuverville, ao lado de Madeleine. A sua obra foi incluída no Index de livros proibidos pelo Vaticano em 1952.
Obra publicada em português (lista parcial)
·
A
escola das mulheres. ("L'ećole
des femmes") Porto Alegre: Globo, 1944.
·
A porta
estreita ("La
porte étroite") Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1984.
·
A
sinfonia pastoral ("La
simphonie pastorale") Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1985.
·
A
tentativa amorosa in A
volta do filho pródigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1984.
·
A
volta do filho pródigo. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira. 1984.
·
Betsabé in A volta do filho pródigo. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira. 1984.
·
Córidon. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1985.
·
De
volta da U.R.S.S. Rio de
Janeiro: Vecchi. 1937.
·
El
Hadj in A volta do filho
pródigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1984.
·
Filoctetes in A volta do filho pródigo. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira. 1984.
·
Isabel ("Isabelle") Rio de Janeiro: Nova
Fronteira. 1985.
·
O imoralista ("L'imoraliste") São Paulo:
Círculo do Livro. 1991.
·
O
processo de Franz Kafka ("le
proces"). Lisboa: Editorial Presença. 1962.
·
O
regresso do filho pródigo. Lisboa:
Tinta Permanente. 1984. Na Revista Ficções nº11, 2005.
·
O
tratado de Narciso in A
volta do filho pródigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1984.
·
Os frutos da terra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1982. ISBN
85-209-1510-8.
·
Os
moedeiros falsos ("Les
faux monnayeurs") Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1983.
·
Os
novos frutos in Os frutos da terra
seguido de Os novos frutos. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1982.
·
O
pensamento vivo de Montaigne. São
Paulo: Martins/Edusp. 1975.
·
Os subterrâneos do Vaticano. São Paulo: Abril Cultural. 1982.
·
Paludes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1988.
·
Pântanos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1972.
·
Retoques
ao meu De volta da U.R.S.S. Rio
de janeiro: Vecchi.
·
Se o grão não morre 7. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2004. ISBN 85-209-1511-6.
·
O
pombo-torcaz São Paulo: Estação Liberdade,
2009. ISBN
978-85-7448-162-3.
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