quinta-feira, 22 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 58


            Nas cartas que trocavam ou escreviam aos mais íntimos, Consuelo e Antoine não escondiam sua tristeza por viverem separados desde a mudança da Place Vauban. Embora Saint-Exupéry recriminasse a mulher por passar todo o tempo em companhia de amigos que ele não apreciava, as cartas de Consuelo permitem entrever uma solidão extrema, agravada por preocupações com sua saúde, causadas pela asma. Às vezes ela superava o tédio fazendo curtas viagens a Londres ou à Riviera, mas suas cartas refletiam uma tristeza constante.

            A causa principal desse desentendimento provinha de uma mútua incapacidade de compreender as exigências sentimentais exorbitantes um do outro. Saint-Exupéry refere-se constantemente à sua própria perplexidade, numa correspondência que provavelmente seja a mais volumosa que uma personalidade de seu porte tenha escrito ao cônjuge.

            Perto do fim de sua vida, após seu reingresso na aeronáutica, Antoine escrevia a Consuelo mais de uma vez por dia. Suas mensagens eram longas e desordenadas, e exigiam a reconciliação a qualquer preço. As respostas de Consuelo, raras e bastante curtas em comparação com as suas, que podiam chegar a 20 páginas, apenas aumentavam sua angústia pela segurança da esposa, ou confirmavam seus temores de que ela não o amava mais. Seu interesse por Consuelo às vezes exasperava as amizades femininas de Antoine, pois ele insistia em sua paixão por ela e no tormento que esse desentendimento lhe causava. Numa das cartas escritas a Sylvia Hamilton durante a guerra, ele afirmava que, embora a atitude de Consuelo frequentemente o deprimisse, ela nunca tinha se mostrado “fútil, mesquinha nem indigna”.

            Com frequência suas cartas a Consuelo continham recriminações, porém houve diversos períodos de afetuosa cumplicidade, particularmente quando decidiram comprar uma casa de campo, pouco tempo depois da instalação de Antoine na rue Michel-Ange. Numa emissão radiofônica gravada após a guerra, Consuelo contou como realizaram impulsivamente essa aquisição e se referiu eufemisticamente à separação como um pedido de trégua conjugal da parte de Saint-Exupéry.

           
La Feuilleraie (o Refúgio das Folhas)
Num dia em que passeavam de carro pela floresta de Sénart, detiveram-se na praça do povoado de La Verennes-Jarcy. Na calçada da frente, viram um cartaz que apontava para uma casa a ser alugada ou vendida. No jardim havia árvores de diversas essências que davam nome à propriedade: La Feuilleraie (o Refúgio das Folhas). De acordo com Consuelo, Antoine decidiu comprá-la quando o corretor imobiliário, que também era gerente do café, os fez visitar a cozinha, na qual havia um lustre de cristal “suficientemente grande para um teatro”.

            Saint-Exupéry assinou o contrato de venda sem saber como financiaria a aquisição, um problema que desapareceu após o sucesso de Terra dos Homens. Consuelo passou a viver nessa casa a partir de 1939 e permaneceu até a derrota francesa, em companhia de uma criada, do pequinês e cercada de galinhas e coelhos. A distância da esposa aumentou a tristeza que Saint-Exupéry sentia com a separação. Durante o ano de 1939, quando se encontrava em Paris, ele pulava frequentemente na Bugatti ou na moto para ir passar a tarde em companhia de Consuelo. Nem sempre anunciava suas visitas, e às vezes dava marcha à ré quando via carros parados na frente da casa, pois Consuelo recriou em La Feuilleraie o ambiente boêmio de seu apartamento parisiense, para o qual convergiam seus amigos artistas. Quando isso ocorria, Antoine rabiscava às pressas um bilhete que lhe mandava entregar.

            Consuelo conservou todas as cartas de Antoine. Esse tesouro epistolar compreende uma grande quantidade de bilhetes acusando-a de falta de atenção ou de indiferença, escritos impulsivamente pelo marido. Várias mensagens enumeram uma ladainha de encontros não realizados, de escapadas noturnas ou de cartas que ficaram sem resposta.

            Pode-se compreender, por meio desses escritos, que Saint-Exupéry não conseguia admitir que a mulher que ele amava não se consagrasse exclusivamente a ele e a sua obra. Como menciona em uma de suas cartas, Consuelo lhe avisara que seria uma tarefa impossível tentar capturar a essência de sua personalidade, que ela mesma comparava a uma nebulosa complexa, incapaz de ser apreendida sob uma única forma.

            À frustração sentimental de Antoine acrescentava-se a lamentação constante pelo fato de Consuelo manifestar apenas um interesse efêmero por suas ambições literárias e científicas, e particularmente por seu “grande livro”, o projeto de Cidadela. Ele precisava então de outras almas caridosas para satisfazer sua insaciável necessidade de ser escutado, e para prestar atenção às prolixas teorias de sua imaginação fértil.

          
  Nessas circunstâncias, Nelly de Vogüé desempenhou um papel preponderante. Uma parte da correspondência, cujo destinatário não é citado, que figura na biografia de Pierre Chevrier (seu nome artístico), assim como nos Escritos de Guerra, foi dirigida a ela. Seu papel de ouvinte cheia de compreensão e atenção foi determinante na decisão de prosseguir Cidadela. Por outro lado, seus contatos financeiros e políticos revelaram-se igualmente importantes, sobretudo após a convocação de Saint-Exupéry para a força aérea. A partir de sua chegada a Toulouse, ele lutou para ser destinado ao serviço ativo, embora um exame médico preliminar o tenha considerado inapto para o treinamento de piloto de bombardeiro. Havia a possibilidade de ser transferido para o comando do transporte militar aéreo, onde um dos chefes era Didier Daurat, mas numa carta publicada por Nelly de Vogüé, na qual solicita seu apoio para ser integrado a uma unidade de combate, Saint-Exupéry recomenda que seu antigo patrão só seja contatado em último caso.

            Sua estadia no hotel do Grand Balcon, em Toulouse, fez com que lembrasse da época da Aéropostale, e isso não contribuiu de forma alguma para dissipar seus temores de estar velho demais para a profissão de piloto. “Sinto-me cada vez mais sufocado”, escreve na carta mencionada. “O clima desta região é insuportável. Tenho muitas coisas a dizer sobre os acontecimentos. Posso dizê-las a título de combatente, e não de turista.” Encontrou um de seus melhores aliados na pessoa de René Davet, um general da aeronáutica que tinha conhecido durante a Guerra Civil Espanhola, quando lhe confiara seu desprezo pelos burocratas. Segundo Davet, Saint-Exupéry estava pronto para se bater por uma ou outra causa espanhola, desde que fosse na primeira linha. Ele sentiu a mesma repugnância pelos burocratas da retaguarda, quando a guerra na França eclodiu.

            A influência de Davet permitiu que o relatório médico inicial fosse deixado de lado; logo depois, Saint-Exupéry solicitou a intervenção do ministro da Aeronáutica, Guy La Chambre, a fim de ser destinado a uma unidade de combate. Em vez disso, foi designado para participar de uma patrulha de reconhecimento num grupo de fotografia aérea a altitudes elevadas, o 2/33, no qual serviu de dezembro de 1939 até julho de 1940, e depois de abril de 1943 até a sua morte, em julho de 1944.

            As condições de seu primeiro posto, em Orconte, no meio dos campos de batalha do Marne, preencheram parcialmente seu desejo de escapar das preocupações diárias e diminuíram um pouco sua saudade das alegrias simples e da camaradagem de cabo Juby. Com frequência ele manifestara o desejo de levar uma vida monástica, e tinha até mesmo confiado a Georges Pélissier: “Se pudesse ter fé, me tornaria dominicano”.

            Ficou tão encantado com as condições espartanas que o esperavam ao chegar ao 2/33, em dezembro de 1939, que pediu para ser tratado como um simples soldado. Isso significava o abandono dos privilégios e do conforto reservado a seu grau de capitão, que fazia dele o superior hierárquico de seu chefe-de-esquadrilha. O fato de ter o dobro da idade da maioria dos outros aviadores também o fazia muito respeitado, porém ele nunca tirou vantagem de seu prestígio de escritor, contentando-se com o conforto rudimentar da vida militar cotidiana, mesmo ao receber o prêmio da Academia Francesa, onze dias após sua nomeação.

            Como acontecera em cabo Juby, a vida na base aérea durante o inverno glacial de 1939-40 despertou-lhe a nostalgia dos anos da juventude em Saint-Maurice e no pensionato de Le Mans ou de Friburgo. Quando escreveu Piloto de Guerra nos Estados Unidos, evocou suas experiências da batalha da França com um segundo plano de cenas e sensações herdadas da infância, inclusive o prazer pueril sentido quando abandonava o calor do leito no quarto gelado da fazenda na qual estava hospedado em Orconte. Comparava o cômodo a uma cela monástica, e contava como se precipitava novamente entre as cobertas após ter acendido o fogo para derreter o gelo na bacia.

            Os pilotos que serviram com ele em 1940 e falaram sobre ele vários anos mais tarde transmitiram a imagem de um homem que se divertia ao reviver a despreocupação da infância durante tediosos meses, enquanto esperava o verdadeiro combate. René Gavoille, futuro general, contou que Saint-Exupéry era o animador do grupo, ficando contente quando maravilhava os jovens oficiais com seus truques de baralho, suas anedotas, canções ou trocadilhos. Às vezes propunha passeios surpreendentes em seu carro novo, um De Soto que dirigia a 40 por hora pelas estradas intransitáveis do leste da França. Seus passageiros recordam seu costume desconcertante de frear até quase deter o carro, ou de acelerar bruscamente, segundo a intensidade da conversação. Era no carro de Saint-Exupéry que os membros da patrulha corriam o perigo mais real. Enquanto esperavam pela batalha, o tédio, o frio e a inação representavam os únicos inimigos a serem derrotados.

            A maioria dos aviadores era de militares de carreira habituados à monotonia e à rotina de um exército em tempo de paz, porém suas recordações da vida passada em Orconte, ou em outras bases aéreas, revelam suas críticas à morosidade do alto comando em engajar-se no combate.

          
  Em dezembro de 1939, segundo o diário da patrulha, foi efetuada apenas uma operação que terminou em desastre, quando o avião de reconhecimento, um Potez 63, foi abatido ao regressar de uma missão fotográfica por um Hurricane da Royal Air Force. O acidente ilustra tragicamente a falta de coerência da estratégia militar. A aeronáutica tinha acabado de receber a ordem de reduzir ao tamanho de um prato as insígnias azul, branco e vermelho, o que também diminuía as chances de identificação. Após esse problema com um avião aliado, a unidade recebeu a ordem de aumentar a dimensão dos discos tricolores.

            O Potez 63 era lento demais para ser utilizado em atividades de reconhecimento e, além disso, apresentava diversos inconvenientes mecânicos. Por exemplo, as metralhadoras congelavam em altitudes elevadas. Seguindo o exemplo de todos os regimentos franceses que compensaram a letargia administrativa dando exemplos de iniciativa, o esquadrão esforçou-se para remediar a anomalia. Com a ajuda do professor Fernand Holweck, um cientista que expressou diversas vezes sua admiração pelo gênio inventivo de Saint-Exupéry, o escritor aconselhou a equipe de pesquisa encarregada de encontrar as causas desse defeito, e descobriu uma solução que há meses vinha escapando aos técnicos.


            Nesse momento considerou-se que o Potez 63 era um alvo muito fácil para a Luftwaffe, e a patrulha de reconhecimento recebeu a ordem de utilizar um novo avião, o Bloch 174, caça-bombardeiro bimotor que, graças a Saint-Exupéry, assumirá um lugar privilegiado na literatura.

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