sexta-feira, 30 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 66


            Para escapar do calor do verão em Manhattan, Saint-Exupéry alugou um chalé em Westport, em Long Island Sound. Consuelo foi com ele, assim como o acompanhou nas duas mudanças seguintes, primeiro para Northport, em Long Island, e finalmente para Beekman Place, em Nova York, para uma casa de quatro andares que dava para o East River. Eles a ocuparam desde o Natal de 1942 até a partida de Saint-Exupéry para a África do Norte, no dia 10 de abril de 1943.

            Raramente tinham ficado tanto tempo juntos desde os dias idílicos de Nice, um pouco antes de seu casamento em 1931. Esses poucos meses poderiam parecer pouco importantes para a vida do casal, se algumas cartas de Saint-Exupéry, bem como uma interpretação de Cidadela e de O Pequeno Príncipe, não proporcionassem uma prova do contrário. Tanto Denis de Rougemont como André Maurois foram testemunhas da harmonia e da afeição do casal, em um previsível contexto pouco convencional. Rougemont passou numerosos fins de semana em Westfort, como também em Northport, onde Saint-Exupéry alugara uma ampla residência chamada Bevin House, vagamente parecida com o castelo de Saint-Maurice. Rougemont também era seu vizinho em Beekman Place. Recebia constantes telefonemas de madrugada, de Antoine ou Consuelo, pedindo-lhe que arbitrasse diferenças conjugais ou literárias. Na época, Antoine preocupava-se com questões ao mesmo tempo científicas, políticas e militares. Não satisfeito com ser escritor e brilhante conversador, lançava-se continuamente na concepção de invenções irrealizáveis ou elaborava planos para acabar com a guerra. Após ter sido vítima em diversas madrugadas de leituras de Cidadela, e obrigado até mesmo em seu quarto a escutar a conversa interminável de Antoine, fumando como uma chaminé, sobre uma infinidade de temas, De Rougemont chegou à conclusão de que a agitação perpétua de Antoine devia-se à atividade de um cérebro incapaz de parar de funcionar.

            André Maurois, pétainistas apesar de suas origens judias, passou diversas semanas em Bevin House, onde sempre havia numerosos visitantes. Em seu diário, lembra-se das longas tardes jogando xadrez ou baralho com Antoine, e recorda também ter sido acordado de madrugada com seus berros: “Consuelo, Consuelo!” Saint-Exupéry, que estava trabalhando em O Pequeno Príncipe, acordava sua esposa para exigir-lhe ovos mexidos. Isso aconteceu duas vezes na mesma noite, e depois Saint-Exupéry obrigou Maurois a uma longa caminhada e a uma longa conversa em seu jardim, situado no meio de uma imensa floresta. Maurois tinha acabado de dormir novamente quando ouviu Saint-Exupéry chamar a esposa. “Preciso de Maurois ou de você para jogar xadrez comigo”, berrava ele.

            É difícil imaginar Consuelo como uma esposa dedicada, segundo os retratos anteriores que dela conhecemos. Mas ela agora tinha 40 anos e dependia mais do que nunca de Antoine, que lhe assegurava sua devoção através de uma “prece”, que Consuelo tinha de recitar todas as noites:

“Senhor, não é preciso que vos fatigueis muito. Fazei-me simplesmente como sou. Pareço vaidosa nas pequenas coisas, mas, nas grandes, sou humilde. Pareço egoísta nas coisas pequenas, mas, nas grandes, sou capaz de dar tudo, mesmo a vida. Com frequência pareço impura nas pequenas coisas, mas só sou feliz na pureza.
Senhor, fazei com que me pareça sempre com aquela que meu marido sabe ver em mim.
Senhor, Senhor, salvai meu marido, porque ele realmente me ama e sem ele eu seria totalmente órfã, mas fazei, Senhor, que ele morra primeiro, porque ele parece bastante sólido, mas se angustia demais quando não me escuta fazer barulho em casa. Senhor, poupai-o da angústia. Fazei com que eu sempre faça barulho em casa, embora de vez em quando também quebre alguma coisa.
Ajudai-me a ser fiel e a não frequentar aqueles que ele despreza ou que o detestam. Isto o deixa infeliz porque eu sou a sua vida.
 Protegei, Senhor, a nossa casa.
Amém!
Vossa Consuelo. ”

Consuelo com um busto de Saint-Exupéry feito 
por ela. 
            Naquela época, ela sentia seu casamento menos ameaçado. A rival que ela tanto temia em Paris permanecera na França e, apesar de ter ido a Nova York para encontrar Antoine antes da chegada de Consuelo, sua relação estava chegando ao fim. Provavelmente Consuelo teria se mostrado menos disposta a aceitar as obrigações domésticas impostas por Antoine se tivesse adivinhado que seu marido visitava regularmente Sylvia Hamilton. A jornalista conta que ele vinha vê-la todos os dias em seu apartamento, e mais tarde publicou cartas nas quais ele pedia desculpas por ter lhe causado “muita tristeza e muita mágoa” ao deixá-la.

            Se tinha dúvidas, é provável que Consuelo tenha encontrado consolo na mensagem de reconciliação e na promessa de amor contidas em O Pequeno Príncipe. Saint-Exupéry, que pedia incessantemente a opinião dos amigos sobre seus escritos, também deve ter pedido a opinião da esposa. Ele sempre a consultava com relação às suas obras, desde a publicação de Voo Noturno, e fora dela a decisão sobre o título de Piloto de Guerra. Se Saint-Exupéry admitia a Adèle Breaux não entender nada de pintura, pode-se imaginar que devia escutar os conselhos de Consuelo, uma artista reconhecida. Também é provável que ele a utilizasse como modelo. Sua professora de inglês reconheceu imediatamente Consuelo nas roupas e no lenço amarelo do Pequeno Príncipe, quando Antoine mostrou- lhe pela primeira vez os desenhos, em Bevin House.

            Após a guerra, quando houve brigas com relação aos direitos autorais de Saint-Exupéry e ressentimentos da família com a possível influência exercida por Consuelo sobre o marido, tentou-se de diversas formas negar ou dissimular o fato de que Antoine escrevera o livro para a esposa. Finalmente, ela mesma teve de provar que era a rosa de O Pequeno Príncipe.

            Consuelo sempre se negou a publicar as cartas de Antoine, porém mostrou a alguns amigos um trecho de uma delas que prova sem ambiguidade que o livro foi escrito em sua intenção. O historiador da aviação Edmond Petit teve a sorte de ver esse trecho antes que a carta fosse guardada, junto com centenas de outras, num cofre em Nice. “Sabe, a rosa é você”, escrevera Saint-Exupéry. “Talvez nem sempre eu tenha conseguido tomar conta de você, mas sempre achei você linda.” Em outra carta, Saint-Exupéry dizia à esposa que seu maior remorso era não lhe ter dedicado O Pequeno Príncipe.

            Tendo em vista esta confissão decisiva, podemos formular numerosas teorias sobre o verdadeiro significado das referências de Saint-Exupéry aos carneiros e às lagartas que ameaçam a sua rosa, assim como aos quatro infelizes espinhos que defendem a flor abandonada. As precauções tomadas para que o carneiro não destrua a rosa, a decisão do Pequeno Príncipe de abandonar seu planeta, fazem pensar irresistivelmente no isolamento de Consuelo numa Europa destroçada pela guerra, depois que Saint-Exupéry foi buscar refúgio nos Estados Unidos. A descoberta das outras rosas pelo Pequeno Príncipe refere-se às relações sentimentais de Saint-Exupéry após seu casamento, na maioria das vezes com mulheres inteligentes e independentes, ou infelizes no casamento. Mas, além do significado transparente que pode ser atribuído às metáforas da fábula, interessa ressaltar que nela Saint-Exupéry reconhece o seu amor por Consuelo. Ele admite que o mundo sem ela não teria luz, e que ficará para sempre ligado a ela devido às suas experiências compartilhadas.

            “Se alguém ama uma flor da qual só existe um exemplar em milhões e milhões de estrelas, isto basta para que seja feliz quando as contempla”, diz O Pequeno Príncipe. “Ele pensa: ‘Minha flor está lá, em algum lugar...’ Mas se o carneiro come a flor, é para ele, bruscamente, como se todas as estrelas se apagassem.” Se Consuelo é a rosa, os tormentos causados por sua vaidade, sua forma de chamar a atenção a qualquer preço, seu medo de tigres imaginários, sua obsessão com as correntes de ar, bem como a tosse destinada a disfarçar uma mentira ingênua podem ser interpretados como observações pessoais. Sua esposa provavelmente leu o rascunho dos seus textos, e necessariamente reconheceu essas recriminações mal disfarçadas. No entanto, deve ter ficado comovida ao ver que seu marido reconhecia implicitamente ter mal interpretado seus caprichos muitas vezes irritantes e seus esforços para chamar a atenção. “Deveria tê-la julgado pelos seus atos e não pelas palavras”, diz O Pequeno Príncipe. “Ela me perfumava, me iluminava. Não devia jamais ter fugido. Deveria ter-lhe adivinhado a ternura sob seus pobres ardis. São tão contraditórias as flores! Mas eu era jovem demais para saber amar.”

            Mas a rosa reconhece seu egoísmo, e O Pequeno Príncipe sente-se desconcertado quando ela confessa seu arrependimento por ter sido tão caprichosa, justamente antes de ele partir rumo à aventura em outros planetas. Ele não compreende essa “doçura calma”. “É claro que eu te amo”, disse-lhe a flor. “Foi por minha culpa que você não soube de nada. Mas você foi tão tolo quanto eu.”

            A partir do momento em que O Pequeno Príncipe abandona sua rosa, suas viagens correspondem a uma busca vã de paz interior, que pode ser seguida na vida aventureira de Saint-Exupéry, no abandono de Consuelo quando ele foi para os Estados Unidos e em sua descoberta de que as relações com outras mulheres eram sem sentido. O encontro com a raposa faz com que finalmente compreenda que a necessidade mútua criada nos anos difíceis com Consuelo unira-os para sempre. “Foi o tempo que você perdeu com sua rosa que fez sua rosa tão importante”, diz a raposa ao Pequeno Príncipe. “Os homens esqueceram essa verdade. Mas você não deve esquecê-la. Você se torna responsável por tudo o que cativou. Você é responsável por sua rosa...” A morte, com seu retorno implícito à inocência e à verdade esquecida pelos adultos, conclui uma das mais estranhas cartas de amor jamais escritas.

            A mesma reflexão prossegue em Cidadela, em numerosas alusões ao amor conjugal. Os trechos em que o chefe berbere abandona a esposa adormecida para partir em busca de um tesouro impossível são repletos de ternura e remorso. “Mas durma tranquila em sua imperfeição, esposa imperfeita”, medita ele. “Você não é objetivo, nem recompensa, nem joia venerada por si mesma, da qual logo eu me cansaria; você é o caminho, o meio e o transporte.”

            Algumas imagens de Cidadela são inábeis e às vezes sem graça, particularmente quando Saint-Exupéry se esforça para assumir um tom bíblico, mas com frequência os momentos de confissão são luminosos. Ele reconhece ter-se enganado ao vaguear inutilmente em busca de outras mulheres em aventuras sem sentido.

            Comparações são feitas com a busca frenética de um tesouro que não lhe proporcionará glória, nem riqueza, nem amor, como se fosse de colmeia em colmeia para recolher o mel e percebesse finalmente que o verdadeiro banquete estava em outro lugar. “Mas eu desejo perpetuar o amor. Só existe amor onde a escolha é irrevogável”, escreve numa reflexão sobre a fidelidade conjugal e a vaidade das ligações passageiras. “O prazer da emboscada, da caça e da captura não é o amor.”

            Nas noites profundas, durante seus longos voos solitários, Saint- Exupéry era levado por essa busca de um ideal que traduzia em fábulas ou parábolas, ou expressava em suas cartas. O Pequeno Príncipe, escrito na presença da esposa, deveria ter sido a apoteose de sua autoanálise, dando assim ao casal cansado e envelhecido um pretexto para depor as armas que já tinham causado tantos ferimentos. Infelizmente, o livro representou apenas uma curta trégua em suas relações tumultuosas que, no Natal de 1942, já estavam novamente em ponto de ruptura. O casal teve uma briga terrível à qual Saint-Exupéry se refere em suas cartas a Consuelo. Algumas semanas antes da publicação de O Pequeno Príncipe, a tensão entre eles era tão grande que ele lhe dizia que sua única esperança de reencontrar a paz interior residia na morte.


            Dois dias antes de abandonar os Estados Unidos e Consuelo, que nunca mais reveria, Antoine refere-se a outra briga a propósito das despesas exorbitantes da esposa. Porque faltava dinheiro, ele não pôde adquirir o uniforme regulamentar da Força Aérea, e teve de se arranjar com um uniforme quase ridículo feito para o Metropolitan Opera. A briga tinha se iniciado quando ele perguntou o preço de suas últimas aquisições, argumentando que não tinha nenhuma camisa limpa, nem meias sem buracos, nem sapatos, para juntar-se à sua unidade na África do Norte. Saint-Exupéry achava que Consuelo seria mais feliz sem ele. Sua decepção diante da indiferença da esposa era tão forte que ele desejava apenas a paz da morte. A paz acima de tudo. O resto não tinha importância.

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