quinta-feira, 22 de junho de 2017

CORREIO SUL - 10

IV

            Herlin voltava com tudo: “E você ainda tem coragem de se divertir, de passear pelos antiquários? Jamais a perdoarei por isso! procurava as palavras, “é monstruoso, inconcebível, indigno de uma mãe!". Tirara um cigarro com um gesto mecânico e agitava numa das mãos um estojo vermelho. Geneviève ainda o ouvira: "O respeito por si mesma!" Ela pensava: “Irá acender o cigarro?"

            — Sim... — disse Herlin, vagarosamente; guardara para o fim esta revelação: — Sim... E enquanto a mãe se diverte, o filho vomita sangue!

            Geneviève ficou pálida.

            Quis deixar o quarto, mas ele lhe barrou a saída. ‘Tique." Tinha a respiração apressada, como um animal Desejava vingar-se da angústia de que padecera sozinho!

            — Você vai me aborrecer e depois se arrependerá — disse-lhe Geneviève simplesmente.

            Essa advertência, endereçada à cabeça oca de Herlin, à sua nulidade frente às coisas, foi a chicotada decisiva na sua exaltação. E começou a declamar. Sim, ela sempre fora indiferente a seus esforços, vaidosa, volúvel Sim, ele fora por muito tempo o simplório que nela depositava toda sua força. Sim. Mas tudo isso nada representava: ele sofria sozinho, sentira-se sempre só na vida... Farta de ouvir, Geneviève tentou afastar-se; ele, porém, puxou-a para si e disse:

            — As mulheres, todavia, pagam por seus erros.

            E como Geneviève ainda se esquivasse, ele se impôs por um ultraje:

            — A criança está morrendo: é o dedo de Deus!



            Subitamente, como apôs um crime, sua cólera extingue-se. Ele próprio se sente estúpido ao lançar a notícia. Completamente sem cor, Geneviève se dirige à porta. Herlin adivinha que ideia ela faz dele quando sua única vontade era formar outra mais nobre. Assalta-o então o desejo de destruir essa imagem e reparar o erro, incutir-lhe à força uma outra, mais suave.

            E, com a voz repentinamente embargada, diz:

            — Perdão... volte... fui um louco!

            Com a mão no trinco e um pouco virada para Herlin, ela lhe parece um animal selvagem prestes a fugir a qualquer movimento seu. Ele não se move.

            —Venha... Quero falar com você... É difícil...

            Ela permanece imóvel: de que terá medo? Herlin quase se irrita com um temor assim completamente vão. Quer dizer-lhe que foi louco, injusto, cruel, que só ela é autêntica; porém, antes de tudo, é preciso que ela se aproxime, testemunhe confiança e se livre. Então, se humilhará aos seus olhos e ela compreenderá... Geneviève, porém, está virando o trinco.

            Estende o braço e agarra-lhe bruscamente o punho. Ela o observa com um desprezo esmagador. Ele ainda tenta dominá-la; agora, a qualquer preço, é preciso detê-la sob seu jugo, mostrar-lhe sua força e dizer-lhe:

             —Veja: abro as mãos.

            Puxou-lhe o braço frágil, primeiro com doçura, depois com mais força. Ela ergueu a mão, pronta a esbofeteá-lo, mas Herlin paralisou o movimento dessa outra mão. Agora a estava machucando. Sentiu isso. Pensava nas crianças que agarram um gato selvagem e, para amansá-lo e acariciá-lo, quase o estrangulam. Herlin respirava profundamente: “Machuquei-a, tudo está perdido." Assaltou-o por alguns segundos uma vontade louca de sufocar com Geneviève a imagem de si próprio que formava naquele instante e que o espantava.

            Por fim, descerrou os dedos com um estranho sentimento de impotência e vazio. Geneviève afastou-se sem pressa, como se na verdade nada tivesse a temer, como se, repentinamente, alguma coisa a tomasse inatingível. Ele não existia. Demorou-se, refez com lentidão o penteado e, altiva, saiu.

            À noite, quando Bemis foi visitá-la, nada lhe contou — não se confessam essas coisas. Pediu-lhe, porém, para rememorar fatos de sua infância em comum e de sua própria vida em outras terras; e isso porque, naquele momento, era como se lhe confiasse uma criança que precisava de consolo, e que se conforta vendo imagens.

            Apoiava a cabeça no ombro de Bemis, que via nesse gesto a procura de um refúgio. Ela também, certamente, pensava isso; ambos ignoravam, sem dúvida, que, numa carícia, arrisca-se muito pouco de si mesmo.


             V

            — Você, em minha casa, a esta hora, Geneviève... Como está pálida...

            Geneviève nada respondeu. Do relógio vem um insuportável tique- taque. A luz da lâmpada já se mistura à da aurora, infusão insípida que provoca arrepios. A janela a incomoda. Geneviève faz um esforço!

            —Vi luz, entrei... — e não encontra mais nada para dizer.

            — Sim, Geneviève, eu... eu estou lendo, veja...

            As brochuras formam manchas amarelas, brancas e vermelhas. "Pétalas", pensa ela. Bemis espera. Geneviève permanece imóvel

            — Sentado nesta poltrona, Geneviève, eu estava divagando: abria um livro, depois outro, e tinha a impressão de já ter lido tudo.

            Dá-lhe essa imagem de velho para dissimular a própria exaltação. E diz no seu tom mais tranquilo:

            —Você quer falar comigo?...

            Entretanto, no mais íntimo de si, pensa: “É um milagre do amor."

            Geneviève luta contra uma única ideia: “Ele não sabe..." E olha-o com surpresa. Diz em voz alta:

            —Vim...

            E passa a mão na cabeça. Clareiam-se as vidraças e penetra no aposento uma luz de aquário. "O brilho da lâmpada se atenua", pensa Geneviève.

             Depois, de súbito, exclama com angústia:

            — Jacques, Jacques, me leve embora!

            Bemis empalidece, toma-a nos braços e a embala.

            Ela fecha os olhos:

            — Você vai me levar...

            Naquele ombro, o tempo corre sem fazê-la sofrer. Renunciar a tudo é quase uma alegria: abandonamo-nos, deixamo-nos conduzir pela corrente, parece que a própria vida corre... corre. Ela sonha em voz alta:

            — Sem me magoar.

            Bemis acaricia-lhe a face. Ela se lembra de qualquer coisa: “Cinco anos... cinco anos... Como Deus o permitiu?" Pensa ainda: “Eu lhe dei tanto..."

            —Jacques!... Jacques!... Meu filho morreu...

            “Veja, fugi de casa. Tenho uma necessidade tão grande de paz! Não pude compreender ainda; ainda não sinto o desgosto. Serei uma mulher sem alma? Os outros choram e gostariam de me consolar. Comovem-se por serem tão bons. Mas, veja: ainda não tenho nem lembranças.

            “A você posso contar tudo. A morte chega numa grande desordem: as injeções, os curativos, os telegramas... Após algumas noites sem sono, acreditamos sonhar. Durante as visitas do médico, apoiamos a cabeça vazia na parede.

            “E as discussões com meu marido — que pesadelo! Hoje, um pouco antes... agarrou-me no punho e pensei que fosse torcê-lo. Tudo isso por causa de uma injeção. Mas eu sabia... não era a hora. Depois, queria meu perdão, mas isso não era importante! Respondi: “Sim, sim... Deixe-me ir para junto de meu filho.” Mas ele barrava a entrada. "Perdoe-me, necessito de seu perdão!" Um verdadeiro capricho.

             “Deixe-me passar. Perdoo-o." E ele falou: “Sim, mas só com os lábios, e não com o coração." E assim por diante, pondo-me louca.

            “E, lógico, depois de cenas assim, não se sente grande desespero. Sente-se quase surpresa pela paz, pelo silêncio. Eu pensava... pensava: “A criança dorme." Isso é tudo. Parecia-me também que desembarcava de madrugada, muito longe, não sei onde, e eu não sabia mais o que fazer. Pensava: "Chegamos." Olhava as seringas, os remédios, e dizia comigo: “Isso não tem mais sentido... chegamos." E desmaiei.

            Assusta-se de repente:

            — Fui louca em vir.

            Sente que, lá longe, a aurora descobre um grande desastre: lençóis frios e desfeitos. Guardanapos jogados sobre os móveis, uma cadeira caída. E preciso opor-se depressa à confusão das coisas. E preciso, apressadamente, arrumar nos seus lugares a poltrona, o vaso, o livro. E preciso fatigar-se inutilmente, recompondo a ordem das coisas que cercam a vida.



             VI

            Seguem-se as visitas de pêsames. Atitudes medidas acompanham as palavras. As pessoas deixam assentar em Geneviève as pobres lembranças que agitam, e prolonga-se um silêncio indiscreto... Ela se mantinha ereta. Pronunciava sem parar as palavras que os outros contornavam, a palavra: morte. Não queria que espreitasse nos seus olhos o eco das frases sugeridas... Olhava diretamente nos olhos para que não se atrevessem a olhá-la; porém, desde que baixava os seus...

            E os outros... Os que caminham tranquilamente até a sala de espera vão desta à sala de visitas em passos precipitados e perdem o equilíbrio nos braços. Estes nada dizem. Ela não lhes dirá palavra alguma. Eles sufocam seu pesar e apertam contra o peito uma criança encolhida.

            Seu marido agora fala em vender a casa. Alega: “Essas tristes recordações fazem-nos sofrer!" Mente, pois o sofrimento é quase um amigo. Mas ele se agita — agradam-lhes os grandes gestos. Parte esta tarde para Bruxelas. Geneviève deve juntar-se a ele: “Se soubesse em que desordem está a casa..."

            Seu passado completamente desfeito. Esta sala que uma longa paciência compôs, estes móveis dispostos ali, não pelo homem, pelo comerciante, mas pelo tempo. Estes móveis não mobíliam a sala, mas sua vida. Arrastam para longe da lareira a poltrona e afastam o consolo da parede. E eis que tudo fracassa fora do passado, que exibe pela primeira vez o seu rosto nu.

            — Você também vai partir? — Ela esboça um gesto desesperado.

            Mil pactos rompidos. Seria então uma criança que segurava os laços do mundo, e em tomo de quem o mundo se edificava? Uma criança cuja morte representa uma derrota tão grande para Geneviève? Ela se deixa levar;

            "Sofro...”

            Bemis fala-lhe docemente: “Eu a levarei comigo, eu a raptarei. Lembra-se? Disse-lhe que ainda voltaria. Disse-lhe...” Bemis aperta-a nos braços, e Geneviève mexe um pouco a cabeça e seus olhos tomam- se brilhantes de lágrimas; ele tem prisioneira nos braços apenas uma menina em prantos.

            Cabo Juby...

            Bemis. meu velho, é dia de correio. O avião deixou Cisneros. Logo passará por aqui e lhe levará algumas censuras. Pensei muito em suas cartas e em nossa princesa cativa. Passeando ontem pela praia, tão vazia, tão nua, eternamente beijada pelo mar, imaginei-nos semelhantes a ela. Não sei mesmo se existimos. Você viu, em certas tardes, em crepúsculos trágicos, todo o forte espanhol submergir na areia brilhante. Mas esse reflexo de um azul misterioso não é da mesma natureza que o forte; é o seu reino, Bernis. Não muito real, não muito seguro... Quanto a Geneviève, porém, deixe-a viver.

            Sim, eu a compreendo, em sua confusão de hoje. São raros, porém, os dramas na vida. Há tão poucas amizades, ternuras e amores a liquidar: Apesar do que você diz de Herlin, um homem não conta muito. Creio... a vida se funda noutra coisa.

            Os costumes, as convenções, as leis, tudo aquilo de que voei não sente necessidade, tudo aquilo de que fugiu é afinal o que a emoldura. Para vivermos, são necessárias realidades duradouras à nossa volta. Mas, absurdo ou injusto, tudo isso i apenas uma maneira de falar. E Geneviève. carregada por você, ficará privada de Geneviève.

            Além disso, ela saberá do que precisa? E esse hábito de fortuna que ignora em si mesma? O dinheiro é o que facilita a posse de bens, a agitação externa — e sua vida é interior mas afortunado que faz durarem as coisas. E o rio invisível, subterrâneo, que alimenta por um século as paredes de uma habitação, as lembranças: a alma. E você vai esvaziar lhe a vida, como se esvazia um apartamento de mil objetos que quase já não se viam mais, mas que o compõem.

            Imagino, porém, que, para você, amar é nascer. Acreditará levar uma Geneviève nova. O amor, para você, é aquela cor dos olhos que às vezes via em Geneviève e que será fácil alimentar como a uma lâmpada. Em determinados instantes, é verdade, as mais simples palavras parecem carregadas de um tal poder que é fácil nutrir o amor...


            Mas viver, sem dúvida, é outra coisa.


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