terça-feira, 6 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 42


            Dificilmente Saint-Exupéry teria podido escolher outra mulher capaz de chocar de tal maneira as concepções tradicionais de sua família, embora tivesse exprimido diversas vezes sua vontade de romper com um estilo de vida conservador.

            “Meu primo sempre repetia que desejava ser não-conformista”, frisa André de Fonscolombe. “Não-conformista, não-conformista — essas palavras ainda ressoam na minha cabeça.”

            Como o marido, Consuelo era excêntrica por natureza, com uma personalidade excessivamente exigente, cujo efeito sobre os amigos e parentes variava enormemente.

            Alguns de seus detratores estabeleceram um paralelo entre o rápido declínio de Saint-Exupéry e o dia de seu casamento com a viúva de Gomez Carrillo, enquanto outros consideravam-na sua fonte de inspiração. O amor de Antoine pela esposa deu-lhe forças para terminar Vôo Noturno e forneceu-lhe o tema de O Pequeno Príncipe.

            Deve-se também atribuir a Consuelo a melhora das qualidades gráficas do marido, talento que ele aperfeiçoou ao ilustrar sua fábula. Pintora consumada, ela vivia ao lado dele nos Estados Unidos enquanto ele preparava o boneco das ilustrações do livro. André de Fonscolombe relata que entre eles havia uma inegável cumplicidade em diversos campos. “Os desenhos são um excelente exemplo da sua influência”, acrescenta ele.

            Durante os treze anos de casamento, Antoine falava de Consuelo com adoração e ao mesmo tempo com exasperação. Nas cartas, chamava-a de “minha garotinha querida”, “meu pintinho” e “minha feiticeira”.

            A ansiedade patológica de Antoine era conhecida e alguns amigos pensavam que Consuelo o dominava explorando seu sentido de responsabilidade. Em certa medida, Saint-Exupéry reconhecia a chantagem sentimental exercida por ela, particularmente no que diz respeito à asma, quando revela em O Pequeno Príncipe que a rosa “tossiria enormemente e pareceria morrer. E eu teria de fazer de conta que a cuido porque se não, para me humilhar, ela se deixaria realmente morrer”.

            Existe outra interpretação, de acordo com a qual Saint-Exupéry teria redescoberto em Consuelo a alegre vitalidade que apreciava em Louise de Vilmorin. A cunhada de Louise, Andrée de Vilmorin, admitia que Consuelo era “bonita, alegre e charmosa”, porém não possuía a inteligência nem o fascínio do primeiro amor de Antoine. “Consuelo era meiga, uma bela criaturinha”, diz ela.

            Consuelo registrou horas de lembranças e relatou em detalhes sua vida com Antoine. Também escreveu um livro, Oppèãe, que relata o que aconteceu em sua estadia de dois anos numa aldeia da Provence durante a guerra, antes de se juntar ao marido nos Estados Unidos. Nenhuma dessas descrições possui o tom levemente histérico de algumas cartas em que confiava a amigos íntimos seus problemas de saúde ou seus temores de que Saint-Exupéry a abandonasse por outra mulher. Embora implicitamente admitisse ser cabeça-de-vento, seus textos revelam uma mulher que aprendeu a superar dificuldades sozinha, após ter sofrido uma série de dissabores amorosos.

            Em Oppède, publicado após a guerra, fala de sua fuga dos alemães após a derrota. Quando seu trem fez escala em Carcassone, desceu para comprar alimentos e o trem partiu sem ela. Além da bagagem, entre a qual se encontrava a mais recente carta de amor de Saint- Exupéry, ela lamentou a perda de uma capa de seda vermelha. Singularmente, esse relato corresponde a um incidente semelhante assistido por Charles Sallès, pouco antes da guerra.

            Saint-Exupéry chegara sozinho de carro a Tarascon; mais tarde, acompanhado por Sallès, dirigiu-se à estação para esperar Consuelo. Em vez de regressar com a esposa, trouxe apenas uma mala encontrada no corredor abarrotado. Consuelo perdera o trem em Nar- bonne após ter descido para comprar um sanduíche, deixando no bagageiro diversas sacolas e um soberbo casaco de vison. De Nar- bonne telefonou em vão para o chefe da estação de Tarascon, para tentar recuperar a valiosa pele. Apesar dessa contrariedade, a jovem estava de bom humor no dia seguinte, quando chegou numa velha caminhonete dirigida por um prestativo aldeão. “E ninguém mais ouviu falar daquele precioso vison”, afirma Sallès.

             O temperamento expansivo de Consuelo e sua atitude imprevisível provocavam numerosos comentários. Claude Werth, adolescente na época, encontrava-se freqüentemente com ela quando An- toine visitava seu pai, Léon Werth, num apartamento da rue d’Assas. Claude Werth recorda, com uma mescla de divertimento e embaraço, que ela frisava aos vendedores pouco atenciosos de algumas lojas que não deviam se esquecer que ela era a condessa de Saint-Exupéry. Também ficou surpreso com sua falta de bom senso no dia em que ela jogou água de colônia numa lareira e quase incendiou a casa da família Werth, no Jura.

            Outros amigos recordam que ficavam irritados quando ela os fazia esperar durante horas, enquanto se arrumava para sair. Esse costume é lembrado quando o Pequeno Príncipe enternece-se com sua rosa: “Vestia-se lentamente, ajustava uma a uma suas pétalas. Não queria sair como as papoulas, amarrotada. No radioso esplendor de sua beleza é que ela queria aparecer. Ah! Sim. Era vaidosa. Sua misteriosa toalete, portanto, durava dias e dias”.

            Jean d’Agay, sobrinho de Antoine, ficava ansioso quando a visitava. Ela o fazia esperar bastante na soleira e resmungava amuada se ele fazia um comentário considerado fora de lugar.

            Uma das mais implacáveis detratoras de Consuelo é sem dúvida Simone de Saint-Exupéry, que a criticou severamente em seu livro de memórias, Météores, publicado na Indochina em 1943. Transformando Consuelo em jovem esposa vietnamita que visita a França pela primeira vez acompanhada pelo marido francês, Simone relata a visita de Consuelo à governanta de Antoine, Moisy, que tinha se aposentado e vivia na região de Drôrne. Num dos contos, Pèlerinage, Consuelo, quase sem nenhum disfarce, é apresentada como uma jovem escandalosamente esnobe e caprichosa, que despreza todas as lembranças caras a Antoine e Simone e tenta ofender Moisy deliberadamente.

            Em particular, Simone insinuava que a cunhada seduzira seu irmão exclusivamente pela carne, como se Antoine ainda fosse virgem aos 31 anos. Suas considerações evidenciavam uma animosidade sentida por diversos membros da família para com uma mulher considerada intrusa, apesar da amizade e lealdade de Marie pela mulher do filho. Mesmo os que sentiam viva simpatia por Antoine e Consuelo eram conscientes da fragilidade de sua união, estimando que a responsabilidade era dos dois.

            “Não era um casal ideal, mas será que isso existe?”, pergunta André de Fonscolombe, primo de Antoine. “Não tinham sido feitos um para o outro. Consuelo possuía um imenso valor pessoal e amava-o muito, porém não era capaz de fazê-lo feliz. Não era a mulher ideal para Antoine, que frequentemente se sentia melancólico, mas não se pode dizer que ela era má com ele. Antoine provinha de um ambiente extremamente tradicional, ao qual ela não conseguia se adaptar. Não era culpa dela se ele tinha dificuldades para escrever, e é mesmo possível que ela o tenha ajudado. Não se diz que é preciso ser infeliz para escrever?”

            Não há dúvida de que as relações entre Antoine e Consuelo tornaram-se muito difíceis cerca de três anos após o casamento. Ele desaprovava cada vez mais a vida social que ela levava sem ele, e ela, do seu lado, acreditava que ele lhe era infiel. A partir desse momento, a falta de confiança e as recriminações pioraram. Em 1936, Consuelo escrevia a Suzanne, mulher de Léon Werth, que estava sofrendo por causa da “falta de sintonia entre Tonio e eu, mas isso terminará logo porque já não me restam forças”.

            Grande parte dos problemas do casal provinha da incapacidade de chegar a um acordo sobre a tentativa diferente de realizar as ambições artísticas de cada um. Consuelo qualificava de tirania o que Saint-Exupéry interpretava como dever conjugal. Ele expressava sua amargura em anotações praticamente ilegíveis, às vezes quase incoerentes. Suas cartas a Consuelo eram tão frequentes e seu tom mudava tão rapidamente que pareciam uma novela, na qual a acrimônia era substituída quase imediatamente pela reconciliação. Como não refletia antes de desnudar seus sentimentos, abandonava-se a acusações apressadas, das quais logo se arrependia. É provável que Consuelo recebesse o pedido de desculpas antes das cartas acusatórias. Com frequência Antoine acusava a esposa de ser negligente com ele, fazendo-o perder a vontade de escrever. O egoísmo da esposa o enraivecia. “Claro, estou cheio de rancor contra a vida”, escreveu-lhe numa carta sem data, provavelmente de Nova York, antes de retomar seu serviço na aeronáutica. “Você nunca consegue acalmar minha sede. Não seria melhor se ficasse um pouco mais em casa? Existe apenas a sombra de uma esperança? Tenho tanta fome de ser ajudado... a ajuda da mulher... ontem, essa manhã, essa noite, gostaria que me servisse um jantar. Ou que me oferecesse uma xícara de chá. Ou que colocasse uma mão em minha testa. Quando eu morrer, você saberá o que perdeu. Você me faz detestar a vida.”

            Naquela época, os inimigos de Consuelo dedicavam-se também a mexericos desagradáveis e sugeriam que ela fora infiel diversas vezes. Essa reputação sobreviveu até as gerações seguintes da família Saint-Exupéry, e ainda hoje são atribuídos a Consuelo diversos amantes, entre eles vários escritores. Convencida da veracidade dessas acusações de infidelidade, Yvonne de Lestrange, a prima de Antoine, que também ficara abalada por um casamento infeliz, aconselhou Antoine a romper definitivamente com Consuelo. No entanto, ele não aprovou essa interferência e disse a Consuelo, numa de suas últimas mensagens, que tinha acabado uma ligação extra-conjugal para dar uma nova oportunidade a seu casamento — na verdade, ele admitia que nenhuma mulher podia substituí-la. Mas ele desapareceu antes de poder cumprir sua promessa de reconciliação.

            Apesar das perpétuas discussões que prejudicavam sua concentração, ele reconhecia que sua imaginação sofria quando Consuelo não estava a seu lado, e suplicava-lhe que esquecesse as ofensas passadas. Uma correspondência do escritor Maurice Sachs deve ter-lhe fornecido a prova de que algumas de suas acusações não se justificavam. A amizade entre Consuelo e Sachs em meados dos anos 30 contribuiu para aumentar as suspeitas de Saint-Exupéry. Mas, no início da guerra, Sachs sentiu-se preocupado pelas conseqüências de suas relações com Consuelo, que terminaram em 1937, e entrou em contato com Saint-Exupéry pedindo desculpas por ter causado desentendimento entre eles. Ele contou ter-se sentido envaidecido pela simpatia da jovem mulher, porém logo percebera que ela se importava menos com ele do que lhe parecera no princípio.

            “É a mais pura verdade que durante os dias e as tardes que passamos juntos ela me falava sobretudo de você, e de tal forma que eu sabia muito bem que ela amava e só poderia amar você. Vi em Consuelo apenas uma mulher jovem um pouco triste que se embriagava um pouco, que não sabia onde colocar o pé nesse terreno movediço do mundo — e que amava unicamente você.”

            De Consuelo, ele recordava sobretudo “sua graça, doçura e fantasia”.

Antoine e Consuelo de Saint-Exupéry em seu apartamento em Paris

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