O avião de Saint-Exupéry espatifou-se no deserto
egípcio, a leste da fronteira Líbia, às 4h45 (hora local) de 30 de dezembro de
1935, enquanto voava a uma velocidade de 270 quilômetros por hora. Naquele
momento, o piloto pensava já ter atravessado o Nilo, e não é encontrada em
nenhuma parte de Terra dos Homens nem no boletim de ocorrência do seguro
qualquer explicação satisfatória para o fato de estar pelo menos uma hora
atrasado, de acordo com suas previsões de voo; também não foi possível explicar
por que bateu no solo se o altímetro indicava uma altitude de 400 metros.
Saint-Exupéry cobrira apenas três
quartas partes da distância que supunha ter percorrido, quando desceu abaixo
das nuvens para verificar seus pontos de referência. Esse erro de navegação é
tão imenso para um aviador experiente, que faz lembrar inevitavelmente outro
voo em que perdera toda noção do tempo e pousou num campo apenas dez minutos
após a decolagem, convencido de que seu combustível acabara.
Uma circunstância atenuante pode ter
sido a mudança de direção do vento, que tornara o Simoun mais lento. Quatro
horas antes a base de Benghazi confirmara que poderia contar com um vento
traseiro favorável. Em circunstâncias normais, teria sido avisado pelo rádio
sobre a evolução meteorológica, porém decidira não atravancar o avião com um
sistema de comunicação para encher ao máximo os tanques.
Preso numa espessa camada de
cúmulos, Saint-Exupéry decidiu perder altitude na esperança de perceber as
luzes do Cairo, mas um lençol de bruma cobria o deserto, criando uma impressão
de altitude. O acidente surpreendeu-o totalmente, escreveu no relatório
oficial; tanto ele quanto o mecânico teriam morrido se não tivessem capotado
num planalto recoberto de pedrinhas redondas e pretas, que desempenharam o
papel de rolamentos. O avião deslizou sobre o ventre “como um réptil” por 250
metros, enquanto o piloto tentava desesperadamente recuperar o controle do
aparelho, que se deteve brutalmente numa faixa de areia, após ter perdido uma asa.
Mais tarde Saint-Exupéry retornou de
carro ao local do desastre e pôde constatar o imenso equívoco nos seus cálculos
de posição, menos de vinte horas após sua partida de Paris. Mesmo levando em
conta um vento desfavorável e um altímetro defeituoso, seria preciso atribuir
uma das causas do acidente a um piloto debilitado pelo cansaço. É preciso não
esquecer também a excitação febril dos dias que antecederam a partida. Em Terra
dos Homens fica bem claro que um sentimento de euforia tomava conta de Saint-Exupéry
à medida que seus problemas se afastavam. Na escuridão segura da cabine, onde
seu fiel Sexta-feira, Prévot, cochilava no assento do copiloto, ele fumava
tranquilamente um cigarro ou bebia uma xícara de café. Uma luz mal camuflada no
cockpit causou certa irritação, porém Prévot consertou-a imediatamente; como
escreveu na versão americana Wind, Sand and Stars, Saint-Exupéry estava feliz e
“teria podido continuar dirigindo o avião durante dez anos”.
Nesse mundo fechado, onde era tecida
uma relação privilegiada entre o homem, a máquina e os elementos, ele
concordava com Jean Mermoz em que a alegria de voar é tão intensa que o
espatifamento final até vale a pena. Toda noção da passagem do tempo
desaparecia num céu sem lua, ouvindo-se apenas o barulho do motor.
Se o aviador Saint-Exupéry pode ser
culpado pelo acidente, o escritor compensou sua falha com as páginas mais
brilhantes de Terra dos Homens. Seus três dias vagueando pelo deserto, com o
consciencioso e discreto Prévot, são contados com tanta emoção quanto o
salvamento de Guillaumet nos Andes. As miragens, a sede, as alucinações, a
camaradagem e a chegada do beduíno que os salvou com água compõem elementos
clássicos de um relato de sobrevivência no deserto, enquanto na trama do texto
constantemente se repete a afirmação de que o risco é uma experiência
espiritual. Toda a humanidade engrandecida surge dessa terrível provação que
apaga qualquer divisão de raça, língua ou religião. A narração dessa aventura
com outras palavras que não fossem as de Saint-Exupéry diminuiria o valor de
uma das mais belas prosas do século XX, mas, como em todas as suas façanhas,
ele prefere deixar de lado uma série de detalhes para não quebrar o tom sóbrio
do relato.
No livro, ficamos sabendo que tudo o que recuperou
dos destroços foram uma laranja, meio litro de vinho e algumas xícaras de água.
Ele relata também que rasgou um para-quedas para recolher o orvalho, o que
quase os envenenou, devido ao revestimento químico do tecido. No Cairo, estimou
para um jornalista o custo do material desperdiçado em exatamente 6.203
francos, quantia suficiente para pagar o aluguel da rue de Chanaleilles durante
cerca de um ano. Ao voltar a Paris, foi visitar o escritor Marcei Achard e
pediu-lhe que o ajudasse a recordar a letra da canção Aux Marches du Palais,
que costumava cantar. No delírio causado pela sede, ele a esquecera e não
conseguia recordá-la.
Seu colega da Aéropostale Jean Lucas
comenta que, logo após o salvamento, Saint-Exupéry disse ter compreendido a
parábola bíblica de Esaú, que vendera seu direito de primogenitura a Jacó por
um prato de lentilhas. Após terem socorrido os dois homens, os nômades lhes
ofereceram um purê de lentilhas para amaciar suas gargantas intumescidas pela
sede, antes de deixá-los lamber a água de um tacho como bezerros. Assim como os
dois aviadores perdidos, Esaú regressara do deserto morrendo de sede e
renunciara a seus privilégios de primogenitura não por um prato de lentilhas,
mas pela água que tomaria depois. Por meio dessa interpretação, Esaú parece
menos tolo do que a Bíblia parece sugerir.
Boa parte das informações sobre a
catástrofe provêm de um jornal publicado pela família Raccaud, em Wadi-Natroun,
a oeste do Cairo, para onde Saint-Exupéry foi transportado em 2 de janeiro de
1936, após errar cegamente pelo deserto, por 180 quilômetros.
Após o resgate, Saint-Exupéry e
Prévot viajaram para leste no dorso de camelos, mas sua condição física era tão
preocupante que os beduínos decidiram deixá-los descansando num oásis para esperar
o socorro enviado de Wadi-Natroun, a cerca de 20 quilômetros de lá.
Émile Raccaud, de nacionalidade
suíça, era diretor da companhia egípcia Salt and Soda e vivia com a mulher e os
filhos num canto do deserto tão isolado quanto cabo Juby. Na tarde de 2 de
janeiro de 1936, um mensageiro árabe chegou à fábrica com um bilhete rabiscado
por Saint-Exupéry no verso de um mapa de voo. A mensagem pedia que o guia fosse
pago por seu trabalho e que um carro fosse buscá-los no oásis.
Os dois permaneceram com a família o
tempo suficiente para beber uma xícara de chá e um copo de uísque; depois
partiram de carro com Émile Raccaud para o Cairo, que ficava a seis horas dali;
no entanto, poucos quilômetros antes da capital, ficaram sem combustível.
Do hotel Mena House, ao pé das
pirâmides, Saint-Exupéry ligou para o embaixador da França para anunciar que
tinham sido salvos. À meia-noite, hora francesa, ao saber da notícia no hotel
Pont-Royal, em Paris, Consuelo deu um grito e desmaiou. Alguns minutos depois,
conversava alegremente e, em companhia de um grupo de amigos do marido, foi à
Brasserie Lipp celebrar o acontecimento de forma adequada.
Saint-Exupéry não se apressou para
voltar. Com Prévot, regressou ao retiro isolado dos Raccaud, um oásis de
conforto colonial à sombra de uma usina de soda. Durante mais de quinze dias,
ele relaxou naquele ambiente calmo, longe das dívidas, da papelada e dos
problemas sentimentais. Lá nem sequer havia telefone para incomodá-lo. Três
meses mais tarde, escreveu da França para seus anfitriões, reconhecendo a falta
que Wadi-Natroun lhe fazia, bem como a paz que lá experimentara. “Aqui o mundo
tem menos aparência de deserto, mas na verdade é muito mais”, acrescentou.
A família Raccaud tirou algumas
fotografias em que Saint-Exupéry parece Bibendum Michelin, num terno muito
apertado e com um boné que cobre a metade de sua testa. Numa delas ele se encontra
perto dos destroços do Simoun, cuja fuselagem surpreendentemente está em bom
estado. Émile Raccaud mandou rebocar o avião até Wadi-Natroun e depois enviou-o
à França de barco. Dois anos mais tarde ainda lutava com a companhia de seguros
para obter o reembolso de mais de 500 libras egípcias gastas pela empresa Salt
and Soda no repatriamento do Simoun.
Destroços do CAUDRON-SIMOUN de Saint-Exupéry após o acidente de 30 de dezembro de 1935 |
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