segunda-feira, 12 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 48


            O avião de Saint-Exupéry espatifou-se no deserto egípcio, a leste da fronteira Líbia, às 4h45 (hora local) de 30 de dezembro de 1935, enquanto voava a uma velocidade de 270 quilômetros por hora. Naquele momento, o piloto pensava já ter atravessado o Nilo, e não é encontrada em nenhuma parte de Terra dos Homens nem no boletim de ocorrência do seguro qualquer explicação satisfatória para o fato de estar pelo menos uma hora atrasado, de acordo com suas previsões de voo; também não foi possível explicar por que bateu no solo se o altímetro indicava uma altitude de 400 metros.

            Saint-Exupéry cobrira apenas três quartas partes da distância que supunha ter percorrido, quando desceu abaixo das nuvens para verificar seus pontos de referência. Esse erro de navegação é tão imenso para um aviador experiente, que faz lembrar inevitavelmente outro voo em que perdera toda noção do tempo e pousou num campo apenas dez minutos após a decolagem, convencido de que seu combustível acabara.

            Uma circunstância atenuante pode ter sido a mudança de direção do vento, que tornara o Simoun mais lento. Quatro horas antes a base de Benghazi confirmara que poderia contar com um vento traseiro favorável. Em circunstâncias normais, teria sido avisado pelo rádio sobre a evolução meteorológica, porém decidira não atravancar o avião com um sistema de comunicação para encher ao máximo os tanques.

            Preso numa espessa camada de cúmulos, Saint-Exupéry decidiu perder altitude na esperança de perceber as luzes do Cairo, mas um lençol de bruma cobria o deserto, criando uma impressão de altitude. O acidente surpreendeu-o totalmente, escreveu no relatório oficial; tanto ele quanto o mecânico teriam morrido se não tivessem capotado num planalto recoberto de pedrinhas redondas e pretas, que desempenharam o papel de rolamentos. O avião deslizou sobre o ventre “como um réptil” por 250 metros, enquanto o piloto tentava desesperadamente recuperar o controle do aparelho, que se deteve brutalmente numa faixa de areia, após ter perdido uma asa.

            Mais tarde Saint-Exupéry retornou de carro ao local do desastre e pôde constatar o imenso equívoco nos seus cálculos de posição, menos de vinte horas após sua partida de Paris. Mesmo levando em conta um vento desfavorável e um altímetro defeituoso, seria preciso atribuir uma das causas do acidente a um piloto debilitado pelo cansaço. É preciso não esquecer também a excitação febril dos dias que antecederam a partida. Em Terra dos Homens fica bem claro que um sentimento de euforia tomava conta de Saint-Exupéry à medida que seus problemas se afastavam. Na escuridão segura da cabine, onde seu fiel Sexta-feira, Prévot, cochilava no assento do copiloto, ele fumava tranquilamente um cigarro ou bebia uma xícara de café. Uma luz mal camuflada no cockpit causou certa irritação, porém Prévot consertou-a imediatamente; como escreveu na versão americana Wind, Sand and Stars, Saint-Exupéry estava feliz e “teria podido continuar dirigindo o avião durante dez anos”.

            Nesse mundo fechado, onde era tecida uma relação privilegiada entre o homem, a máquina e os elementos, ele concordava com Jean Mermoz em que a alegria de voar é tão intensa que o espatifamento final até vale a pena. Toda noção da passagem do tempo desaparecia num céu sem lua, ouvindo-se apenas o barulho do motor.

            Se o aviador Saint-Exupéry pode ser culpado pelo acidente, o escritor compensou sua falha com as páginas mais brilhantes de Terra dos Homens. Seus três dias vagueando pelo deserto, com o consciencioso e discreto Prévot, são contados com tanta emoção quanto o salvamento de Guillaumet nos Andes. As miragens, a sede, as alucinações, a camaradagem e a chegada do beduíno que os salvou com água compõem elementos clássicos de um relato de sobrevivência no deserto, enquanto na trama do texto constantemente se repete a afirmação de que o risco é uma experiência espiritual. Toda a humanidade engrandecida surge dessa terrível provação que apaga qualquer divisão de raça, língua ou religião. A narração dessa aventura com outras palavras que não fossem as de Saint-Exupéry diminuiria o valor de uma das mais belas prosas do século XX, mas, como em todas as suas façanhas, ele prefere deixar de lado uma série de detalhes para não quebrar o tom sóbrio do relato.

             No livro, ficamos sabendo que tudo o que recuperou dos destroços foram uma laranja, meio litro de vinho e algumas xícaras de água. Ele relata também que rasgou um para-quedas para recolher o orvalho, o que quase os envenenou, devido ao revestimento químico do tecido. No Cairo, estimou para um jornalista o custo do material desperdiçado em exatamente 6.203 francos, quantia suficiente para pagar o aluguel da rue de Chanaleilles durante cerca de um ano. Ao voltar a Paris, foi visitar o escritor Marcei Achard e pediu-lhe que o ajudasse a recordar a letra da canção Aux Marches du Palais, que costumava cantar. No delírio causado pela sede, ele a esquecera e não conseguia recordá-la.

            Seu colega da Aéropostale Jean Lucas comenta que, logo após o salvamento, Saint-Exupéry disse ter compreendido a parábola bíblica de Esaú, que vendera seu direito de primogenitura a Jacó por um prato de lentilhas. Após terem socorrido os dois homens, os nômades lhes ofereceram um purê de lentilhas para amaciar suas gargantas intumescidas pela sede, antes de deixá-los lamber a água de um tacho como bezerros. Assim como os dois aviadores perdidos, Esaú regressara do deserto morrendo de sede e renunciara a seus privilégios de primogenitura não por um prato de lentilhas, mas pela água que tomaria depois. Por meio dessa interpretação, Esaú parece menos tolo do que a Bíblia parece sugerir.

            Boa parte das informações sobre a catástrofe provêm de um jornal publicado pela família Raccaud, em Wadi-Natroun, a oeste do Cairo, para onde Saint-Exupéry foi transportado em 2 de janeiro de 1936, após errar cegamente pelo deserto, por 180 quilômetros.

            Após o resgate, Saint-Exupéry e Prévot viajaram para leste no dorso de camelos, mas sua condição física era tão preocupante que os beduínos decidiram deixá-los descansando num oásis para esperar o socorro enviado de Wadi-Natroun, a cerca de 20 quilômetros de lá.

            Émile Raccaud, de nacionalidade suíça, era diretor da companhia egípcia Salt and Soda e vivia com a mulher e os filhos num canto do deserto tão isolado quanto cabo Juby. Na tarde de 2 de janeiro de 1936, um mensageiro árabe chegou à fábrica com um bilhete rabiscado por Saint-Exupéry no verso de um mapa de voo. A mensagem pedia que o guia fosse pago por seu trabalho e que um carro fosse buscá-los no oásis.

            Os dois permaneceram com a família o tempo suficiente para beber uma xícara de chá e um copo de uísque; depois partiram de carro com Émile Raccaud para o Cairo, que ficava a seis horas dali; no entanto, poucos quilômetros antes da capital, ficaram sem combustível.

            Do hotel Mena House, ao pé das pirâmides, Saint-Exupéry ligou para o embaixador da França para anunciar que tinham sido salvos. À meia-noite, hora francesa, ao saber da notícia no hotel Pont-Royal, em Paris, Consuelo deu um grito e desmaiou. Alguns minutos depois, conversava alegremente e, em companhia de um grupo de amigos do marido, foi à Brasserie Lipp celebrar o acontecimento de forma adequada.

            Saint-Exupéry não se apressou para voltar. Com Prévot, regressou ao retiro isolado dos Raccaud, um oásis de conforto colonial à sombra de uma usina de soda. Durante mais de quinze dias, ele relaxou naquele ambiente calmo, longe das dívidas, da papelada e dos problemas sentimentais. Lá nem sequer havia telefone para incomodá-lo. Três meses mais tarde, escreveu da França para seus anfitriões, reconhecendo a falta que Wadi-Natroun lhe fazia, bem como a paz que lá experimentara. “Aqui o mundo tem menos aparência de deserto, mas na verdade é muito mais”, acrescentou.

            A família Raccaud tirou algumas fotografias em que Saint-Exupéry parece Bibendum Michelin, num terno muito apertado e com um boné que cobre a metade de sua testa. Numa delas ele se encontra perto dos destroços do Simoun, cuja fuselagem surpreendentemente está em bom estado. Émile Raccaud mandou rebocar o avião até Wadi-Natroun e depois enviou-o à França de barco. Dois anos mais tarde ainda lutava com a companhia de seguros para obter o reembolso de mais de 500 libras egípcias gastas pela empresa Salt and Soda no repatriamento do Simoun.

Destroços do CAUDRON-SIMOUN de Saint-Exupéry após o acidente de 30 de dezembro de 1935

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