Piloto de Guerra
A
missão realizada por Saint-Exupéry sobre a cidade de Arras em 23 de maio de
1940 foi um dos mais perigosos entre os 108 voos de reconhecimento realizados
pelo 2/33 até aquele momento. Em Piloto
de Guerra, Saint-Exupéry sugere que a ele tinha sido confiada missão
sobretudo honorífica e não uma intervenção de grande amplitude. De fato, era a
última chance de tentar descobrir uma brecha nas linhas alemãs. No momento em
que os Panzer se dirigiam para a Mancha, o general Maxime Weygand decidia
resistir no Somme e exigia a destruição de diversas cabeças de pontes inimigas
em Pas-de-Calais.
Os
primeiros aparelhos, com seus caraterísticos estabilizadores duplos, foram
entregues ao 2/33 no final do inverno de 1939. Saint- Exupéry realizou o voo
inaugural de reconhecimento em 29 de março, sobre Verdun e Bastogne, na
Bélgica, a uma altitude de 9.000 metros. O painel de bordo, equipado com 103 quadrantes,
manómetros e controles intrigou enormemente o piloto, perto dos dois ou três
instrumentos rudimentares de que dispunham os aviões utilizados por ele na
África ou na América do Sul.
Saint-Exupéry
fez duas outras expedições nos três dias seguintes e depois permaneceu no solo
até a missão sobre Arras em 23 de maio. Durante esse intervalo, foi a Paris
para realizar um exame médico e ao mesmo tempo fez abortar uma conspiração
tramada por seus amigos para conseguir sua transferência para o serviço de
propaganda ou de pesquisa científica, por evidentes razões de segurança. Ele
estava em Paris quando a “guerra louca” acabou, em 10 de maio, e em vão tentou
persuadir o primeiro-ministro Paul Reynaud a enviá-lo como delegado aos Estados
Unidos para fazer campanha a favor da intervenção americana. René de Chambrun,
genro de Pierre Lavai, foi designado em seu lugar.
Saint-Exupéry
não teria sido autorizado a retomar o serviço ativo se não tivesse mentido
sobre seu verdadeiro estado de saúde. Seus antigos ferimentos causavam-lhe
terríveis acessos de febre durante o voo, mas sua determinação de pilotar o
fazia guardar silêncio sobre esses sofrimentos, mesmo quando sua temperatura
atingia 41 graus e ele ficava paralisado pelo reumatismo. Para acabar com as
suspeitas dos médicos, ele afirmou ter contraído malária na África, e a verdade
só se tornou conhecida após sua morte, com a publicação de cartas pessoais.
Ao
contrário dos aparelhos de reconhecimento construídos posteriormente, como por
exemplo o P-38, de apenas um lugar, no qual encontrou a morte, o Bloch era
armado e servido por uma tripulação de três homens. A presença do metralhador, na
parte de trás da cabine, poderia parecer supérflua devido à velocidade do Bloch
e a sua capacidade de voar a uma altitude elevada. Mas em 22 de maio dois
aviões do 2/33 tinham sido abatidos por aviões de caça durante uma operação no
mesmo setor. Um dos pilotos morreu e o segundo, Jean Israël, foi capturado,
tendo passado os cinco anos seguintes num campo de prisioneiros, onde seu
tesouro mais precioso foi um exemplar de Piloto
de Guerra, introduzido clandestinamente no campo.
O
tenente Jean Dutertre, observador-navegador que acompanhava Saint-Exupéry, redigiu
o relatório oficial do voo de 23 de maio. Suas anotações lacônicas formam a
trama técnica do livro. Saint- Exupéry não pinta nenhum retrato de Dutertre,
apenas algumas réplicas permitem imaginá-lo como um soldado sólido e
imperturbável, que permanece impassível sob o fogo da DCA, mesmo quando um dos
tanques de combustível é atingido. Em fotografias da época é possível ver um
rapaz de ombros largos que parece dez anos mais jovem que seu capitão. Como Saint-Exupéry,
ele nascera em Lyon e entrara na infantaria em 1932, após ter se graduado na
escola militar de Saint-Cyr. Em 1938, obteve o cargo de observador e navegador
na aeronáutica. Essa era a função desempenhada por ele no dia 23 de maio e
depois novamente em 6 de junho, uma segunda missão durante a qual Saint-Exupéry
manteve-se na altitude muito menos perigosa de 10 mil metros.
Dutertre
receava ter-se distraído de sua observação das posições inimigas devido ao
espetáculo da cidade em chamas. “Preocupações supérfluas pois, organizados como
numa loja de brinquedos, descobri com um frio no estômago, a 2 quilômetros na
nossa frente, centenas de tanques Panzer que atacavam em grupo. Estavam numa
formação cerrada, como uma manada num campo, e pareciam estar transbordando da
cidade no lado oeste. Meu instinto de conservação reagiu imediatamente: à direita!
gritei para o piloto. Tarde demais, era tarde demais. A 700 metros de altitude,
estávamos em cima desse ninho de vespas, não era preciso excitá-los para
provocar sua brutal reação. Atrás, o metralhador tinha perdido de vista os
caças alemães, encobertos pelas nuvens. Ele ainda não sabia que estava sendo ameaçado
por um perigo tão grande quanto o ataque dos Messerschmitt, pois era impossível
passar sem riscos pela vertical dos blindados em ação.”
Os
tiros de DCA começaram praticamente no mesmo instante, e Dutertre contou 13
segundos antes que uma poderosa explosão sacudisse o avião. Saint-Exupéry corrigiu
rapidamente o rumo e refugiou-se numa camada de nuvens que lhes ofereceu uma
trégua de 20 minutos, antes de escapar rumo a Orly. Na retaguarda, numa batalha
impiedosa enfrentavam-se os cinco Dewoitine da escolta e seis Messerchmitt 109.
Os aviões franceses não tinham nenhuma chance, e dois deles foram atingidos. Um
dos pilotos, Jean Schneider, era um grande amigo de Saint-Exupéry. O outro era
o chefe da esquadrilha, Joël Pape, que foi feito prisioneiro.
Schneider
fora recrutado como piloto de caça, embora fosse quatro anos mais velho que
Saint-Exupéry. Ele saltou de para-quedas e conseguiu escapar e chegar até as
linhas francesas, apesar de ter sofrido sérias queimaduras. Estava atormentado
pelos remorsos porque pensava não ter cumprido sua missão de proteção e achava
que Saint-Exupéry fora abatido pelo inimigo.
Antoine
também estava muito aflito, convencido de que Schneider fora morto ao
protegê-lo dos caças alemães; ficou muito feliz quando soube que ele escapara e
se encontrava no hospital americano de Neuilly, onde foi visitá-lo. Foi a
última vez que viu seu companheiro. Após ter fugido para chegar até as Forças
Livres francesas, Schneider encontrou a morte num avião da RAF, que se
espatifou no centro da França, em novembro de 1944.
De
acordo com as recordações de Jean Israël, as operações realizadas pelo 2/33 teriam
podido mudar completamente o curso da batalha da França se as informações
obtidas tivessem sido corretamente interpretadas. Uma informação da maior
importância foi levantada pelo observador Henry Chéry, em 12 de maio de 1940.
Ele detectou uma concentração de blindados nos Ardennes apenas algumas horas
antes da ofensiva alemã na fronteira
belga, ataque que se revelou decisivo.
Oficial
da artilharia destacado para a aeronáutica, Chéry apresentou seu relatório após
um voo em baixa altitude. Seus dados confirmavam o relatório apresentado na
véspera por René Gavoille, desdenhado pelos superiores por ser considerado uma
alucinação. Nas horas seguintes, diversas outras tripulações do 2/33
revezaram-se para confirmar a notícia, porém suas informações não conseguiram
convencer o alto comando de que estava jogando os regimentos de infantaria numa
armadilha.
As
observações levantadas pela companhia foram acolhidas com escárnio pelo alto
comando. A frustração sentida pelos homens do 2/33 foi expressa em termos
amargos por Jean Israël, comandante da esquadrilha de Saint-Exupéry: “...as
Ardennes eram, antes que o inimigo as atravessasse, é claro, impermeáveis às
divisões blindadas”. As duas esquadrilhas da unidade de reconhecimento foram as
primeiras a saber que a ofensiva era iminente. Quinze dias mais tarde, Saint-Exupéry
anunciava-lhes que a França perdera sua última séria chance de repelir o avanço
alemão. Em 31 de maio ele partiu em missão a elevada altitude, acima de
Abbeville, para além de Arras, onde estava se desenrolando a maior batalha de
blindados da campanha de 1940.
Naquele
momento ele ignorava que o comandante das operações francesas era Charles de
Gaulle, cujas teorias sobre um ataque concentrado de divisões mecanizadas
tinham sido rejeitadas pelo marechal Philippe Pétain e pela maioria do comando-em-chefe
antes da guerra. A batalha campal destinada a romper a cabeça de ponte alemã de
Abbeville durou três dias. Era a última esperança de Weygand de impedir o
avanço das forças alemãs rumo a Paris.
De
Gaulle não teve tempo de levar à prática o plano teórico elaborado por ele, e
perdeu 128 de seus 187 tanques. A última ofensiva malograva-se no momento em que
Saint-Exupéry decolava de Orly para fotografar o front. As fotos aéreas obtidas nessa missão foram descobertas por
um historiador local, Henri de Wailly. Infelizmente não eram suficientemente
nítidas para provar que o trabalho do 2/33 pesara na decisão do início da
retirada francesa rumo ao sul, no começo do mês de junho.
Enquanto
Saint-Exupéry retornava à base de Orly após um voo de 2h20, De Gaulle decidia,
de comum acordo com os outros chefes do estado-maior, que a infantaria escocesa
tomaria o lugar dos blindados franceses, para um último ataque. Os escoceses
também não conseguiram expulsar os alemães, e De Gaulle reagrupou as forças
restantes para iniciar a longa retirada que deu origem ao armistício de 22 de
junho de 1940.
Embora
Piloto de Guerra seja a reconstituição
precisa de uma única missão, Saint-Exupéry permitiu-se uma grande liberdade
literária, mesclando relatos de outras operações e acontecimentos. A mudança
mais evidente foi a de dar a impressão de que o voo de reconhecimento partira
de Orconte, que a unidade abandonara há muito tempo, enquanto os incidentes
durante a debandada ocorreram por ocasião do perigoso retorno à base de Orly.
Como
na maioria de suas obras, Saint-Exupéry dá poucas informações sobre a vida ou a
aparência física de seus heróis, embora utilize seus nomes verdadeiros; essa
regra torna ainda mais surpreendente uma exceção: as duas páginas reservadas ao
nariz do chefe da esquadrilha, Jean Israël. Futuro coronel e secretário da
Associação dos Amigos de Saint-Exupéry, criada após a guerra, Israël é descrito
no livro como um dos pilotos mais corajosos do grupo. Esse trecho originou um
curioso escândalo político durante os anos de Vichy.
Saint-Exupéry
insistia no fato de que o nariz de Israël tornava-se vermelho “como uma
lanterna” antes de uma intervenção perigosa. Sua intenção era ressaltar a
origem judia do companheiro, transmitindo assim, de seu refúgio de Nova York,
uma mensagem de solidariedade a seus amigos judeus na França. Mas havia um
toque de malícia na longa referência ao nariz de Israël numa época em que Vichy
incendiava o ódio racial por meio de uma propaganda grosseira, utilizando caricaturas
abomináveis, com particularidades físicas exageradas. Em 1942, os judeus
franceses tornaram-se vítimas de leis antissemitas cruéis, que abriram o
caminho para as deportações em massa para a Alemanha.
Na
verdade, o nariz descrito como enorme e vermelho por Saint- Exupéry era muito
menos espetacular. Fotos da época, mesmo de perfil, mostram um nariz bem
esculpido e de tamanho médio num rosto bochechudo e sorridente. Se ele
realmente avermelhava antes de uma missão, seria provavelmente por causa de uma
grave fratura sofrida pouco tempo antes num acidente aéreo.
Saint-Exupéry
exagerou sua descrição para causar um efeito político, porém as referências às
perseguições pétainistas passaram despercebidas quando as Éditions Gallimard publicaram
o livro na zona ocupada, em outubro de 1942, após ter obtido a autorização
alemã para publicar 2.100 exemplares. Quanto à aprovação de Vichy, foi assinada
pelo romancista Paul Morand, que desprezava os judeus.
Durante
uma ou duas semanas, nenhum jornal percebeu a ironia de Saint-Exupéry, e o
livro foi muito elogiado na publicação “vichysta” Les Nouveaux Temps, por outro escritor, Pierre Mac Orlan. Em
janeiro de 1943 ocorreu uma brusca reviravolta. De seus escritórios
parisienses, o jornal colaboracionista Je
Suis Partout atacou o autor de Piloto
de Guerra com um artigo virulento, assinado P.A. Cousteau, que o acusava de
transformar Israël no “tipo mais surpreendente, mais soberbo, mais simpático, o
preferido dentre todos”.
“Um
homem que baba de admiração diante do maravilhoso colega Israël e que se
orgulha de ser amigo de Léon Werth só pode achar legítimo o sacrifício da
França”, continuava o artigo, referindo-se à acusação de Vichy de que os judeus
tinham iniciado a guerra para seu próprio proveito. “Quando os judeus querem
que você acredite em alguma coisa, não adianta recusar.”
O
artigo manifestava seu espanto pelo fato de o livro não trazer o nihil obstat de Georges Mandei e Léon Blum,
os dois dirigentes judeus presos pelo regime de Vichy, acusados de terem
preparado a derrota francesa por negligência ou interesse pessoal. Outros jornais
antissemitas uniram-se à condenação e os alemães anularam a autorização de
venda em 11 de janeiro de 1943. Em poucas horas todos os exemplares foram
retirados das livrarias. Os ataques contra Saint-Exupéry continuaram e o
exemplo de Je Suis Partout foi
seguido pelos lamacentos jornais pró-nazistas Le Cahier Jaune, Au Pilori e Cri du Peuple. P.A. Cousteau continuou
atacando e, em 15 de janeiro, escreveu o seguinte: “O senhor de Saint-Exupéry
sempre gostou dos judeus, com uma espécie de vaidade pueril, com ostentação, um
pouco como esses conscritos que se sentem tão orgulhosos da doença transmitida
por uma Aspásia da rua e que insistem em mostrar suas consequências a todo o
mundo. O senhor de Saint-Exupéry era assim antes da guerra. Após a derrota ele
permanece fiel a seus amores, continua sendo o judeu blenorrágico fanfarrão,
ele não é um convertido...”
O
patriarca, cujo desprezo pela aceitação cega do dever por sua polícia é um dos
temas principais de Cidadela, zomba
de seus agentes ao declarar que existe uma seita ainda mais perigosa, que pode
ser reconhecida por uma pinta na têmpora esquerda. Por meio de outros exemplos,
ele utiliza a lógica dos Estados totalitários quando diz: “No fim, como vamos
de uma seita para outra, condeno a seita da humanidade inteira, porque
evidentemente ela é fonte de crime, rapto, corrupção, gula e indecência”.
Decide que também pode começar uma depuração no corpo de guardas, pois seus homens
também são servidores do reino. Conclui pedindo ao chefe de polícia que prenda
a si mesmo.
Piloto de Guerra marcou uma virada
importante na carreira literária de Saint-Exupéry. O tom sóbrio e descritivo
dos combates e reminiscências da infância dá lugar, no final do relato, a uma
longa reflexão filosófica sobre a condição humana, um prenúncio de Cidadela. O vínculo entre as cenas de
ação e os grandes princípios humanistas não foi bem-sucedido, e Saint-Exupéry
foi o primeiro a admiti-lo. Alguns de seus amigos pilotos do 2/33 ficaram decepcionados
com o fato de o livro não ter atingido a perfeição de Voo Noturno e de Terra dos Homens. Quando Saint-Exupéry
reintegrou-se à sua unidade em abril de 1943, após o retorno dos Estados
Unidos, respondeu às críticas explicando que os prazos de entrega do manuscrito
ao editor não lhe tinham permitido polir as ideias. “Minha alquimia não teve
tempo de funcionar”, esclareceu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário