sexta-feira, 23 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 59


Piloto de Guerra

            A missão realizada por Saint-Exupéry sobre a cidade de Arras em 23 de maio de 1940 foi um dos mais perigosos entre os 108 voos de reconhecimento realizados pelo 2/33 até aquele momento. Em Piloto de Guerra, Saint-Exupéry sugere que a ele tinha sido confiada missão sobretudo honorífica e não uma intervenção de grande amplitude. De fato, era a última chance de tentar descobrir uma brecha nas linhas alemãs. No momento em que os Panzer se dirigiam para a Mancha, o general Maxime Weygand decidia resistir no Somme e exigia a destruição de diversas cabeças de pontes inimigas em Pas-de-Calais.

           
A expedição, que durou lh 40, dependia das excepcionais qualidades do Bloch 174 para ser bem-sucedida. Uma rede de informações inadequada e um serviço de comunicações obsoleto tinham minado o trabalho e a moral do exército, e o novo aparelho foi saudado como uma importante arma de reconhecimento. Originalmente concebido como bombardeiro, sua velocidade de 400 quilômetros por hora prometia dar-lhe certa vantagem sobre os caças alemães.

            Os primeiros aparelhos, com seus caraterísticos estabilizadores duplos, foram entregues ao 2/33 no final do inverno de 1939. Saint- Exupéry realizou o voo inaugural de reconhecimento em 29 de março, sobre Verdun e Bastogne, na Bélgica, a uma altitude de 9.000 metros. O painel de bordo, equipado com 103 quadrantes, manómetros e controles intrigou enormemente o piloto, perto dos dois ou três instrumentos rudimentares de que dispunham os aviões utilizados por ele na África ou na América do Sul.

            Saint-Exupéry fez duas outras expedições nos três dias seguintes e depois permaneceu no solo até a missão sobre Arras em 23 de maio. Durante esse intervalo, foi a Paris para realizar um exame médico e ao mesmo tempo fez abortar uma conspiração tramada por seus amigos para conseguir sua transferência para o serviço de propaganda ou de pesquisa científica, por evidentes razões de segurança. Ele estava em Paris quando a “guerra louca” acabou, em 10 de maio, e em vão tentou persuadir o primeiro-ministro Paul Reynaud a enviá-lo como delegado aos Estados Unidos para fazer campanha a favor da intervenção americana. René de Chambrun, genro de Pierre Lavai, foi designado em seu lugar.

            Saint-Exupéry não teria sido autorizado a retomar o serviço ativo se não tivesse mentido sobre seu verdadeiro estado de saúde. Seus antigos ferimentos causavam-lhe terríveis acessos de febre durante o voo, mas sua determinação de pilotar o fazia guardar silêncio sobre esses sofrimentos, mesmo quando sua temperatura atingia 41 graus e ele ficava paralisado pelo reumatismo. Para acabar com as suspeitas dos médicos, ele afirmou ter contraído malária na África, e a verdade só se tornou conhecida após sua morte, com a publicação de cartas pessoais.

           
Em Piloto de Guerra não existe qualquer referência a problemas físicos, com exceção de algumas alusões à sua necessidade de oxigênio em altitude elevada, embora isso não tenha ocorrido numa grande parte do voo que partiu de Orly. O diário de bordo do 2/33 indica que a operação foi realizada num voo rasante entre 50 e 300 metros do solo, ao alcance de um tiro de fuzil. O Bloch 174 não tinha a vantagem da altitude, pois as nuvens estavam baixas e condenavam o aparelho a ficar à mercê da Luftwaffe. Saint-Exupéry dependia da velocidade da máquina e da proteção de uma excepcional escolta de cinco caças Dewoitine. Em Piloto de Guerra escreveu que pensava estar sendo protegido por uma esquadrilha de nove aviões, só que quatro tinham sido transferidos para outra base, à sua revelia.

            Ao contrário dos aparelhos de reconhecimento construídos posteriormente, como por exemplo o P-38, de apenas um lugar, no qual encontrou a morte, o Bloch era armado e servido por uma tripulação de três homens. A presença do metralhador, na parte de trás da cabine, poderia parecer supérflua devido à velocidade do Bloch e a sua capacidade de voar a uma altitude elevada. Mas em 22 de maio dois aviões do 2/33 tinham sido abatidos por aviões de caça durante uma operação no mesmo setor. Um dos pilotos morreu e o segundo, Jean Israël, foi capturado, tendo passado os cinco anos seguintes num campo de prisioneiros, onde seu tesouro mais precioso foi um exemplar de Piloto de Guerra, introduzido clandestinamente no campo.

            O tenente Jean Dutertre, observador-navegador que acompanhava Saint-Exupéry, redigiu o relatório oficial do voo de 23 de maio. Suas anotações lacônicas formam a trama técnica do livro. Saint- Exupéry não pinta nenhum retrato de Dutertre, apenas algumas réplicas permitem imaginá-lo como um soldado sólido e imperturbável, que permanece impassível sob o fogo da DCA, mesmo quando um dos tanques de combustível é atingido. Em fotografias da época é possível ver um rapaz de ombros largos que parece dez anos mais jovem que seu capitão. Como Saint-Exupéry, ele nascera em Lyon e entrara na infantaria em 1932, após ter se graduado na escola militar de Saint-Cyr. Em 1938, obteve o cargo de observador e navegador na aeronáutica. Essa era a função desempenhada por ele no dia 23 de maio e depois novamente em 6 de junho, uma segunda missão durante a qual Saint-Exupéry manteve-se na altitude muito menos perigosa de 10 mil metros.

           
Em 1976, a revista Icare pediu que Dutertre desse a sua versão do voo. Ele relatou que Saint-Exupéry manteve-se “magnificamente” na rota, apesar da má visibilidade e do ataque de uma esquadrilha de caças alemães, quando eles estavam se aproximando de Arras. “De repente comecei a enxergar flores, fogos que pareciam gigantescos, fumaças que se confundiam com as nuvens baixas”, acrescenta Dutertre. “A cidade está em chamas, na minha frente, mas me sinto mais tranquilo. E Arras, a metade da missão foi cumprida.”

            Dutertre receava ter-se distraído de sua observação das posições inimigas devido ao espetáculo da cidade em chamas. “Preocupações supérfluas pois, organizados como numa loja de brinquedos, descobri com um frio no estômago, a 2 quilômetros na nossa frente, centenas de tanques Panzer que atacavam em grupo. Estavam numa formação cerrada, como uma manada num campo, e pareciam estar transbordando da cidade no lado oeste. Meu instinto de conservação reagiu imediatamente: à direita! gritei para o piloto. Tarde demais, era tarde demais. A 700 metros de altitude, estávamos em cima desse ninho de vespas, não era preciso excitá-los para provocar sua brutal reação. Atrás, o metralhador tinha perdido de vista os caças alemães, encobertos pelas nuvens. Ele ainda não sabia que estava sendo ameaçado por um perigo tão grande quanto o ataque dos Messerschmitt, pois era impossível passar sem riscos pela vertical dos blindados em ação.”

            Os tiros de DCA começaram praticamente no mesmo instante, e Dutertre contou 13 segundos antes que uma poderosa explosão sacudisse o avião. Saint-Exupéry corrigiu rapidamente o rumo e refugiou-se numa camada de nuvens que lhes ofereceu uma trégua de 20 minutos, antes de escapar rumo a Orly. Na retaguarda, numa batalha impiedosa enfrentavam-se os cinco Dewoitine da escolta e seis Messerchmitt 109. Os aviões franceses não tinham nenhuma chance, e dois deles foram atingidos. Um dos pilotos, Jean Schneider, era um grande amigo de Saint-Exupéry. O outro era o chefe da esquadrilha, Joël Pape, que foi feito prisioneiro.

            Schneider fora recrutado como piloto de caça, embora fosse quatro anos mais velho que Saint-Exupéry. Ele saltou de para-quedas e conseguiu escapar e chegar até as linhas francesas, apesar de ter sofrido sérias queimaduras. Estava atormentado pelos remorsos porque pensava não ter cumprido sua missão de proteção e achava que Saint-Exupéry fora abatido pelo inimigo.

            Antoine também estava muito aflito, convencido de que Schneider fora morto ao protegê-lo dos caças alemães; ficou muito feliz quando soube que ele escapara e se encontrava no hospital americano de Neuilly, onde foi visitá-lo. Foi a última vez que viu seu companheiro. Após ter fugido para chegar até as Forças Livres francesas, Schneider encontrou a morte num avião da RAF, que se espatifou no centro da França, em novembro de 1944.

            De acordo com as recordações de Jean Israël, as operações realizadas pelo 2/33 teriam podido mudar completamente o curso da batalha da França se as informações obtidas tivessem sido corretamente interpretadas. Uma informação da maior importância foi levantada pelo observador Henry Chéry, em 12 de maio de 1940. Ele detectou uma concentração de blindados nos Ardennes apenas algumas horas antes da ofensiva alemã na fronteira belga, ataque que se revelou decisivo.

            Oficial da artilharia destacado para a aeronáutica, Chéry apresentou seu relatório após um voo em baixa altitude. Seus dados confirmavam o relatório apresentado na véspera por René Gavoille, desdenhado pelos superiores por ser considerado uma alucinação. Nas horas seguintes, diversas outras tripulações do 2/33 revezaram-se para confirmar a notícia, porém suas informações não conseguiram convencer o alto comando de que estava jogando os regimentos de infantaria numa armadilha.


            As observações levantadas pela companhia foram acolhidas com escárnio pelo alto comando. A frustração sentida pelos homens do 2/33 foi expressa em termos amargos por Jean Israël, comandante da esquadrilha de Saint-Exupéry: “...as Ardennes eram, antes que o inimigo as atravessasse, é claro, impermeáveis às divisões blindadas”. As duas esquadrilhas da unidade de reconhecimento foram as primeiras a saber que a ofensiva era iminente. Quinze dias mais tarde, Saint-Exupéry anunciava-lhes que a França perdera sua última séria chance de repelir o avanço alemão. Em 31 de maio ele partiu em missão a elevada altitude, acima de Abbeville, para além de Arras, onde estava se desenrolando a maior batalha de blindados da campanha de 1940.

            Naquele momento ele ignorava que o comandante das operações francesas era Charles de Gaulle, cujas teorias sobre um ataque concentrado de divisões mecanizadas tinham sido rejeitadas pelo marechal Philippe Pétain e pela maioria do comando-em-chefe antes da guerra. A batalha campal destinada a romper a cabeça de ponte alemã de Abbeville durou três dias. Era a última esperança de Weygand de impedir o avanço das forças alemãs rumo a Paris.

            De Gaulle não teve tempo de levar à prática o plano teórico elaborado por ele, e perdeu 128 de seus 187 tanques. A última ofensiva malograva-se no momento em que Saint-Exupéry decolava de Orly para fotografar o front. As fotos aéreas obtidas nessa missão foram descobertas por um historiador local, Henri de Wailly. Infelizmente não eram suficientemente nítidas para provar que o trabalho do 2/33 pesara na decisão do início da retirada francesa rumo ao sul, no começo do mês de junho.

            Enquanto Saint-Exupéry retornava à base de Orly após um voo de 2h20, De Gaulle decidia, de comum acordo com os outros chefes do estado-maior, que a infantaria escocesa tomaria o lugar dos blindados franceses, para um último ataque. Os escoceses também não conseguiram expulsar os alemães, e De Gaulle reagrupou as forças restantes para iniciar a longa retirada que deu origem ao armistício de 22 de junho de 1940.

            Embora Piloto de Guerra seja a reconstituição precisa de uma única missão, Saint-Exupéry permitiu-se uma grande liberdade literária, mesclando relatos de outras operações e acontecimentos. A mudança mais evidente foi a de dar a impressão de que o voo de reconhecimento partira de Orconte, que a unidade abandonara há muito tempo, enquanto os incidentes durante a debandada ocorreram por ocasião do perigoso retorno à base de Orly.

            Como na maioria de suas obras, Saint-Exupéry dá poucas informações sobre a vida ou a aparência física de seus heróis, embora utilize seus nomes verdadeiros; essa regra torna ainda mais surpreendente uma exceção: as duas páginas reservadas ao nariz do chefe da esquadrilha, Jean Israël. Futuro coronel e secretário da Associação dos Amigos de Saint-Exupéry, criada após a guerra, Israël é descrito no livro como um dos pilotos mais corajosos do grupo. Esse trecho originou um curioso escândalo político durante os anos de Vichy.

            Saint-Exupéry insistia no fato de que o nariz de Israël tornava-se vermelho “como uma lanterna” antes de uma intervenção perigosa. Sua intenção era ressaltar a origem judia do companheiro, transmitindo assim, de seu refúgio de Nova York, uma mensagem de solidariedade a seus amigos judeus na França. Mas havia um toque de malícia na longa referência ao nariz de Israël numa época em que Vichy incendiava o ódio racial por meio de uma propaganda grosseira, utilizando caricaturas abomináveis, com particularidades físicas exageradas. Em 1942, os judeus franceses tornaram-se vítimas de leis antissemitas cruéis, que abriram o caminho para as deportações em massa para a Alemanha.

            Na verdade, o nariz descrito como enorme e vermelho por Saint- Exupéry era muito menos espetacular. Fotos da época, mesmo de perfil, mostram um nariz bem esculpido e de tamanho médio num rosto bochechudo e sorridente. Se ele realmente avermelhava antes de uma missão, seria provavelmente por causa de uma grave fratura sofrida pouco tempo antes num acidente aéreo.

            Saint-Exupéry exagerou sua descrição para causar um efeito político, porém as referências às perseguições pétainistas passaram despercebidas quando as Éditions Gallimard publicaram o livro na zona ocupada, em outubro de 1942, após ter obtido a autorização alemã para publicar 2.100 exemplares. Quanto à aprovação de Vichy, foi assinada pelo romancista Paul Morand, que desprezava os judeus.

            Durante uma ou duas semanas, nenhum jornal percebeu a ironia de Saint-Exupéry, e o livro foi muito elogiado na publicação “vichysta” Les Nouveaux Temps, por outro escritor, Pierre Mac Orlan. Em janeiro de 1943 ocorreu uma brusca reviravolta. De seus escritórios parisienses, o jornal colaboracionista Je Suis Partout atacou o autor de Piloto de Guerra com um artigo virulento, assinado P.A. Cousteau, que o acusava de transformar Israël no “tipo mais surpreendente, mais soberbo, mais simpático, o preferido dentre todos”.

            “Um homem que baba de admiração diante do maravilhoso colega Israël e que se orgulha de ser amigo de Léon Werth só pode achar legítimo o sacrifício da França”, continuava o artigo, referindo-se à acusação de Vichy de que os judeus tinham iniciado a guerra para seu próprio proveito. “Quando os judeus querem que você acredite em alguma coisa, não adianta recusar.”

            O artigo manifestava seu espanto pelo fato de o livro não trazer o nihil obstat de Georges Mandei e Léon Blum, os dois dirigentes judeus presos pelo regime de Vichy, acusados de terem preparado a derrota francesa por negligência ou interesse pessoal. Outros jornais antissemitas uniram-se à condenação e os alemães anularam a autorização de venda em 11 de janeiro de 1943. Em poucas horas todos os exemplares foram retirados das livrarias. Os ataques contra Saint-Exupéry continuaram e o exemplo de Je Suis Partout foi seguido pelos lamacentos jornais pró-nazistas Le Cahier Jaune, Au Pilori e Cri du Peuple. P.A. Cousteau continuou atacando e, em 15 de janeiro, escreveu o seguinte: “O senhor de Saint-Exupéry sempre gostou dos judeus, com uma espécie de vaidade pueril, com ostentação, um pouco como esses conscritos que se sentem tão orgulhosos da doença transmitida por uma Aspásia da rua e que insistem em mostrar suas consequências a todo o mundo. O senhor de Saint-Exupéry era assim antes da guerra. Após a derrota ele permanece fiel a seus amores, continua sendo o judeu blenorrágico fanfarrão, ele não é um convertido...”

           
Em Cidadela, Saint-Exupéry também aborda a discriminação racial quando os gendarmes do chefe berbere afirmam ter descoberto uma seita responsável pela decadência do império. Como o regime de Vichy, ilustram suas suspeitas por coincidências, que vão desde a feiura até a corrupção de alguns membros da seita.

            O patriarca, cujo desprezo pela aceitação cega do dever por sua polícia é um dos temas principais de Cidadela, zomba de seus agentes ao declarar que existe uma seita ainda mais perigosa, que pode ser reconhecida por uma pinta na têmpora esquerda. Por meio de outros exemplos, ele utiliza a lógica dos Estados totalitários quando diz: “No fim, como vamos de uma seita para outra, condeno a seita da humanidade inteira, porque evidentemente ela é fonte de crime, rapto, corrupção, gula e indecência”. Decide que também pode começar uma depuração no corpo de guardas, pois seus homens também são servidores do reino. Conclui pedindo ao chefe de polícia que prenda a si mesmo.


            Piloto de Guerra marcou uma virada importante na carreira literária de Saint-Exupéry. O tom sóbrio e descritivo dos combates e reminiscências da infância dá lugar, no final do relato, a uma longa reflexão filosófica sobre a condição humana, um prenúncio de Cidadela. O vínculo entre as cenas de ação e os grandes princípios humanistas não foi bem-sucedido, e Saint-Exupéry foi o primeiro a admiti-lo. Alguns de seus amigos pilotos do 2/33 ficaram decepcionados com o fato de o livro não ter atingido a perfeição de Voo Noturno e de Terra dos Homens. Quando Saint-Exupéry reintegrou-se à sua unidade em abril de 1943, após o retorno dos Estados Unidos, respondeu às críticas explicando que os prazos de entrega do manuscrito ao editor não lhe tinham permitido polir as ideias. “Minha alquimia não teve tempo de funcionar”, esclareceu.

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