quinta-feira, 8 de junho de 2017

TERRA DOS HOMENS - 8

         De repente ele me bateu no ombro, para mostrar um papel onde li: “Tudo bem, estou recebendo uma mensagem magnífica...” Esperei, o coração pulando, que ele acabasse de transcrever as cinco ou seis palavras que nos salvariam. Enfim, ele recebeu a mensagem, aquele presente do céu. Era de Casablanca, posto que havíamos deixado na noite da véspera. Retardada na transmissão, aquela mensagem nos chegava de repente, a dois mil quilômetros de distância, entre as nuvens e as brumas, perdidos no mar. Era assinada pelo representante do Estado, no aeroporto de Casablanca. Li: "Sr. Saint- Exupéry, vejo-me obrigado a requerer a Paris que lhe aplique penalidades. O senhor fez a curva demasiado perto dos hangares, na partida de Casablanca.” Era verdade que eu fizera a curva muito próximo aos hangares. Era verdade também que aquele homem cumpria seu dever zangando-se. Eu teria recebido aquela censura com humildade no escritório do aeroporto. Mas nos chegava ali, quando não nos devia chegar... E destoava entre as estrelas tão raras, e o leito de brumas, e o gosto ameaçador do mar. Estávamos em luta pelo nosso destino, pelo nosso correio, pelo nosso barco; em luta para dirigir no sentido de nossa própria vida — e aquele homenzinho vinha desabafar sobre nós seu pequeno rancor. Entretanto, longe de ficarmos irritados, Néri e eu sentimos uma brusca e enorme alegria. Ali nós éramos os senhores — eis o que aquilo nos fazia descobrir. Então aquele cabo não havia notado em nossas mangas que já éramos capitães? Ele nos vinha perturbar em nosso sonho, quando, muito gravemente, viajávamos entre a Grande Ursa e o Sagitário; quando o único assunto que nos podia preocupar pessoalmente era aquela traição da Lua!

          O dever imediato, o único dever do planeta de onde aquele homem se manifestava era o de fornecer cifras exatas para nossos cálculos entre os astros. E essas cifras eram falsas. Quanto ao resto, provisoriamente, tudo o que aquele planeta devia fazer era calar-se. E Néri me escreveu: "Em lugar de se divertir com tolices, eles fariam melhor orientando-nos para alguma parte.” Na palavra "eles” Néri resumia todos os povos do globo, com seus parlamentos, seus senados, suas marinhas, seus exércitos e seus imperadores. E, relendo aquela mensagem de um insensato que pretendia ter alguma coisa a ver conosco, apontamos a proa para Mercúrio...

          Fomos salvos pelo mais estranho dos acasos: veio a hora em que, sacrificando a esperança de encontrar Cisneros e virando perpendicularmente na direção da costa, resolvi manter a mesma direção até a pane por falta de gasolina. Assim eu me reservava alguma chance de não cair no mar. Desgraçadamente, aqueles faróis ilusórios nos haviam conduzido Deus sabe aonde. Desgraçadamente, a bruma espessa em que seriamos obrigados a mergulhar em plena noite deixava-nos poucas probabilidades de tocar o solo sem desastre. Mas não havia alternativa.

          A situação era tão clara que dei de ombros, melancolicamente, quando Néri me passou uma mensagem que nos teria salvo uma hora mais cedo: “Cisneros manda indicações. Cisneros diz: 216, provavelmente...” Cisneros não estava mais perdida nas trevas: Cisneros manifestava-se ali, tangível, à nossa esquerda. Sim, mas a que distância? Tivemos, Néri e eu, uma rápida conversa. Estávamos de acordo. Era demasiado tarde. Correndo para Cisneros, aumentaríamos o risco de perder a costa. E Néri mandou a resposta: ‘Tendo gasolina apenas para uma hora, conservaremos a proa para 93."

          Agora, um a um, despertavam os postos de escala. Ao nosso diálogo misturavam-se as vozes de Agadir, de Casablanca, de Dacar. Os postos de rádio de todas essas cidades haviam alertado os aeroportos. Os chefes dos aeroportos haviam alertado os camaradas. E pouco a pouco eles se reuniam em tomo de nós como em tomo do leito de um doente. Ternura inútil, mas ternura. Conselhos inúteis, mas amigos.

          E bruscamente surgiu Toulouse, Toulouse, ponto de partida, perdida lá embaixo, a quatro mil quilômetros de distância. Toulouse instalou-se de repente em nosso receptor e sem preâmbulos perguntou: "O aparelho de vocês não é o F...?" (Esqueci as indicações da matricula.)

          —Sim.

          — Então ainda têm duas horas de gasolina. O tanque desse aparelho não é um tanque standard. Voem para Cisneros.

         Assim, as necessidades que um oficio impõe transformam e enriquecem o mundo. Não é preciso uma noite como aquela para que o piloto de linha descubra um sentido novo nos velhos espetáculos: a paisagem monótona, que fatiga o passageiro, é bem diferente para a tripulação. A massa nebulosa que fecha o horizonte cessa de ser, para o piloto, um enfeite: ela interessa os seus próprios músculos, ela lhe propõe problemas. Desde logo ele a considera, ele a mede, e a ela está ligado por uma linguagem verdadeira. Eis um cume, ainda longe: que face lhe mostrará? Ao luar ele será um sinal, uma indicação cômoda. Mas se o piloto faz voo cego, corrige dificilmente seu deslocamento e duvida de sua posição, aquele pico se transformará em explosivo e encherá com sua ameaça a noite inteira, tal como a mina submarina, levada ao sabor das correntes, faz perigoso todo o mar.

         Assim variam também os oceanos. Para os simples viajantes, a tempestade permanece invisível: vistas de tão alto, as ondas não oferecem relevo e as massas de nuvens parecem imóveis. Só aparecem as grandes palmas brancas, marcadas de frisos e nervuras como se estivessem presas no gelo. Mas o piloto sabe que ali é impossível qualquer amerissagem. Aquelas palmas são, para ele, grandes flores venenosas.


          E mesmo se a viagem é uma viagem feliz, o piloto que navega em qualquer lugar, no seu trecho de linha, não assiste a um simples espetáculo. As cores do céu e da terra, os traços do vento no mar, as nuvens douradas do crepúsculo não o convidam a devanear, mas a refletir. Como o camponês que faz uma volta pelos seus domínios e prevê, por mil sinais, a marcha da primavera, a ameaça do gelo, a vinda da chuva, o piloto de linha decifra também os sinais de neve, os sinais de bruma, os sinais de noite feliz. A máquina, que a princípio parecia afastá-lo dos grandes problemas naturais, submete-o a eles com mais rigor. Só, no meio do vasto tribunal que um céu tempestuoso forma, o piloto disputa seu aparelho a três divindades elementares — a montanha, a tempestade, o mar.


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