sábado, 17 de junho de 2017

PILOTO DE GUERRA - 9

CAPÍTULO VI


            — Capitão... A bússola!

            Exato. Inclinei à esquerda. Não foi por acaso... E a cidade de Albert que me repele. Eu a adivinho muito longe, na frente. Mas ela já pesa contra meu corpo todo o seu peso de “interdição a priori”. Que memória se dissimula então na espessura dos membros! Meu corpo se lembra das quedas sofridas, das fraturas de crânio, dos comas viscosos como xarope, das noites de hospital. Meu corpo teme os golpes. Procura evitar Albert. Quando não o vigio, ele inclina à esquerda. Puxa para a esquerda, à maneira de um velho cavalo que desconfiasse, por toda a vida, do obstáculo que uma vez o apavorou. E se trata do meu corpo mesmo... Não do meu espírito... É quando estou distraído que meu corpo aproveita, sorrateiramente, e escamoteia Albert.

            Porque não sinto nada que seja penoso.

            Já não quero perder a missão. Acreditei, há pouco, ter tido esse desejo. Eu pensava: "Os laringofones vão quebrar. Estou com sono. Vou adormecer”. Criava uma imagem maravilhosa desse leito de preguiça. Mas eu sabia, também, no fundo, que não há nada a esperar de uma missão fracassada, senão uma espécie de desconforto ácido. É como se uma mutação necessária malograsse.

            Isso me lembra do colégio... Quando eu era pequeno...

            — Capitão!

            — Quê!

            — Nada... Pensei ter visto...

            Não gosto muito do que ele pensou ter visto.

            Sim... Quando somos pequenos, no colégio, levantamos muito cedo. A gente se levanta às seis horas da manhã. Faz filo. Esfregamos os olhos, e sofremos por antecipação pela triste aula de gramática. E por isso que sonhamos em ficar doente para acordar na enfermaria, onde as freiras de coifa branca nos trazem chás açucarados na cama. A gente cria mil ilusões com esse paraíso. Então, é claro, se estivesse resfriado, eu tossia um pouco mais do que o necessário. E, da enfermaria, onde acordava, ouvia o sino bater para os outros. Se eu fingisse um pouco demais, aquele sino me punia: ele me transformava em fantasma. Soava, fora, horas verdadeiras, as da austeridade das aulas, as do tumulto dos recreios, as do calor do refeitório. Fabricava para os vivos, lá fora, uma existência densa, rica de misérias, impaciências, júbilos, lamentações. Eu ficava sumido, esquecido, enjoado com os chás insípidos, da cama úmida e das horas sem rosto. Não há nada a esperar de uma missão fracassada.



CAPÍTULO VII

             Decerto, às vezes, como hoje, a missão não consegue satisfazer. É tão evidente que estamos jogando um jogo que imita a guerra. Brincamos de mocinho e bandido. Observamos corretamente a moral de nossos livros de história e as regras de nossos manuais. Assim, andei esta noite de carro, pelo terreno. E a sentinela, segundo a ordem, cruzou a baioneta diante desse carro que poderia muito bem ser um tanque. Nós brincamos de cruzar a baioneta diante dos tanques.

            Como nos exaltaríamos com essas charadas um pouco cruéis, nas quais temos claramente um papel de figurantes, quando nos pedem para aguentar até a morte? É sério demais, a morte, para uma charada.

            Quem se equiparia com exaltação? Ninguém. Nem Hochedé, que é uma espécie de santo, tendo atingido esse dom maior permanente que é sem dúvida o acabamento do homem, o próprio Hochedé refugiou-se no silêncio. Os camaradas que se equipam se calam, então, de cara fechada, e não é por pudor de herói. Essa cara fechada não mascara nenhuma exaltação. Diz o que diz. E eu a reconheço. E a cara fechada do gerente que não entende nada das ordens que lhe ditou um patrão ausente. E que, no entanto, permanece fiel: todos os camaradas sonham com seu quarto calmo, mas não há, entre nós, um só que escolhesse verdadeiramente ir dormir.

            Porque o importante não é exaltar-se. Não há, na derrota, nenhuma esperança de exaltação. O importante é equipar-se, subir a bordo, decolar. O que pensamos de nós mesmos não tem nenhuma importância. E a criança que se exaltasse à ideia das aulas de gramática pareceria pretenciosa e suspeita. O importante é gerir um objetivo que não se mostra na hora. Esse objetivo não é para a inteligência, mas para o Espirito. O Espirito sabe amar, mas está dormindo. Sei no que consiste a tentação tanto quanto um padre da Igreja. Ser tentado, é ser tentado quando o Espirito dorme, a ceder às razões da inteligência.

            De que serve engajar minha vida nesse desmoronamento de montanha? Ignoro-o. Repetiram-me cem vezes: "Deixe-se ser nomeado aqui ou ali. Ali é seu lugar. Você será mais útil do que numa esquadrilha. Pilotos a gente pode formar aos milhares”.* A demonstração era peremptória. Todas as demonstrações são peremptórias. Minha inteligência aprovava, mas meu instinto prevalecia sobre minha inteligência.

            Por que esse raciocínio me parecia ilusório enquanto eu nada tinha a objetar? Eu pensava: "Os intelectuais se mantêm na reserva, como vidros de conserva nas prateleiras da Propaganda para serem comidos depois da guerra...”. Não era uma resposta!

            Hoje, ainda, como os camaradas, decolei contra todos os argumentos, todas as evidências, todas as reações do momento. Chegará a hora em que saberei que tinha razão contra minha razão. Eu me prometi, se eu viver, fazer esse passeio noturno através da minha vila. Então, talvez, eu mesmo me habitue, enfim. E verei.

            Talvez nada tenha a dizer sobre o que eu vir. Quando uma mulher me parece bonita, eu não tenho nada a dizer a respeito. Eu a olho sorrir, simplesmente. Os intelectuais desmontam o rosto para explicar os pedaços, mas não veem mais o sorriso.

            Conhecer não é desmontar nem explicar. É chegar à visão. Mas para ver, convém primeiro participar. É uma dura aprendizagem...

            Durante todo o dia, minha vila esteve invisível para mim. Tratava-se, antes da missão, de paredes de estuque e de camponeses mais ou menos sujos. Trata-se agora de um pouco de cascalho a dez quilômetros abaixo de mim. Eis a minha vila.

            Mas, essa noite, talvez, um cão de guarda desperte e ladre. Eu sempre experimentei a magia de uma ddadezinha que sonha alto, pela voz de um único cão de guarda na noite clara.

            Não tenho nenhuma esperança de me fazer compreender, o que me é absolutamente indiferente. Que se mostre, simplesmente, a mim, atrás das portas fechadas sobre provisões de grãos, sobre o gado, os costumes, minha vila bem acomodada para dormir!

            Os camponeses, no retomo dos campos, tendo servido a refeição, posto as crianças para dormir e assoprado o lampião, se fundirão em seu silêncio. E nada mais haverá senão, sob os belos lençóis engomados do campo, os lentos movimentos de respiração, como de um resto de marulho, depois do temporal, sobre o mar.

            Deus suspende o uso das riquezas durante o balanço noturno. A herança reservada me aparecerá, assim, mais claramente, quando os homens repousarem, com as mãos abertas pelo jogo do sono inflexível que relaxa os dedos até o amanhecer.

            Então, talvez eu contemple o que não tem nome. Terei andado como um cego cujo tato conduziu ao fogo. Ele não saberia descrevê-lo e, no entanto, o terá encontrado. Assim, talvez, mostre-se o que convém proteger, o que não se vê, mas dura, à maneira de uma brasa, sob a cinza das noites de vila.

            Eu nada tinha a esperar de uma missão fracassada. Para compreender uma simples vila, é preciso primeiro...

            — Capitão!

            — Sim?

            — Seis caças, seis, na frente, à esquerda!

            Isso soou como um trovão. E preciso... Precisa... Eu gostaria: entretanto, de ser pago a tempo. Gostaria de ter direito ao amor. Gostaria de saber por quem vou morrer...

            O autor se refere às várias tentativas que fizeram para dissuadido de participar em esquadrilhas, justamente por já estar com mais de quarenta anos e ter muitas sequelas de seus acidentes anteriores.

            (N.T.)


Nenhum comentário:

Postar um comentário