domingo, 18 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 54


            Em Nova York, as semanas de inércia forçada levaram Saint- Exupéry a trabalhar seriamente no novo livro. Incapaz de escrever outro romance após a crítica desfavorável de alguns dos colegas a Voo Noturno, estava pensando há algum tempo em reunir num mesmo volume os artigos dispersos publicados em diversos jornais e revistas. Em 1945, André Gide reivindicou ter-lhe dado a ideia de Terra dos Homens.

            Gide sugerira que Saint-Exupéry reunisse “em feixe ou ramo” textos sobre a aviação, seguindo o modelo de Miroir de la Mer, de Conrad. Antoine começou imediatamente a ler essa coletânea de histórias vividas nos oceanos. Depois mostrou uma seleção de seus próprios textos a Gide, que declarou que eles “ultrapassavam seus sonhos e esperanças”. A influência de Gide sobre Saint-Exupéry existia desde meados dos anos 20, quando desempenhara o papel de seu padrinho na editora Gallimard. Da mesma forma que Saint-Exupéry fora adotado pela família Werth, o jovem autor e sua família deram grandes provas de amizade a Gide. No entanto, o contato deste com Saint-Exupéry sempre se baseou fundamentalmente no respeito profissional.

            Além de seu vínculo com Yvonne de Lestrange, anterior à época em que Saint-Exupéry foi estudar em Paris, Gide apreciava muito a companhia de Marie de Saint-Exupéry e morou perto dela na mesma pequena aldeia provençal de Cabris, durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1943, após regressar da Argélia, onde tinha se refugiado, Gide jantava frequentemente com Saint-Exupéry, que voltara dos Estados Unidos, tentando convertê-lo ao gaullismo. No entanto, os abundantes diários publicados por Gide oferecem pouca informação sobre a extensão de sua influência em matéria de estilo literário ou de ideias filosóficas. Sem o admitir abertamente, é possível que Gide tenha ficado um pouco impressionado pelo jovem escritor, audacioso e viril, e além disso proveniente de um ambiente aristocrático.

            Na admiração de Gide por Saint-Exupéry, trinta anos mais moço que ele, encontramos o mesmo fervor que sentiu pela figura exaltada e aventureira de André Malraux. Em sua amizade com esses escritores, que considerava as mais brilhantes inteligências do século, entrava um pouco de admiração pelo fato de os mesmos serem homens de ação. Apesar dos elogios dedicados por Gide a Saint-Exupéry após sua morte, suas relações não eram simples, e nelas faltava a tolerância às ideias contrárias que caracterizava o relacionamento entre Antoine e Léon. Com frequência, Saint-Exupéry desconcertava-se com as mudanças de humor de Gide e sua personalidade complexa. Após a morte de Antoine, Gide admitiu que diversas vezes tinham entrado em divergência.

            “Sobre alguns pontos ou pessoas não podíamos nos entender”, escreveu Gide após a guerra. Ele sempre voltava à carga com a obstinação de uma criança teimosa. Depois telefonava: “Digam a Gide: receio tê-lo magoado”.

            A ideia de Gide de publicar num só volume toda a coleção de artigos marcou o início de uma série de episódios cuja consequência foi a publicação do livro mais popular de Saint-Exupéry anterior à guerra. Após seu acidente na Guatemala, morou diversas semanas em Nova York num apartamento do East River, emprestado pelo coronel William Donovan, futuro chefe do serviço secreto durante a guerra, órgão que mais tarde se transformou na CIA.

            Entre dois períodos passados no hospital, onde os médicos consideraram seriamente a possibilidade de amputar sua mão, Saint- Exupéry mencionou seu projeto a diversas personalidades do mundo literário. Jean Prévost, redator-chefe do extinto Navire d’Argent, que se encontrava em Nova York em viagem de estudos, apresentou-o a um editor, Eugène Reynal, cujo novo sócio, Curtice Hitchcock, já encontrara Saint-Exupéry em Paris. Não se sabe exatamente em que momento o negócio foi fechado, pois o contrato foi assinado mais tarde, quando um agente literário entrou em contato com Saint-Exupéry em Paris, após seu regresso à França na primavera de 1938.

            Segundo Rainer Biemel, intermediário das negociações, a editora propôs ao autor um adiantamento de 5.000 dólares sobre a publicação, a maior quantia de dinheiro que recebera por um livro.

            Em março de 1938, Saint-Exupéry instalou-se num apartamento da rue Michel-Ange, no 16éme arrondissement, não muito afastado da sua antiga residência da Place Vauban. A rue Michel-Ange está situada perto do hipódromo de Auteuil, e Saint-Exupéry nunca morara tão longe do centro da capital. Geralmente comunicava-se com Consuelo por telefone, e ela encarou mal essa separação. Confiou a Suzanne Werth que há três anos vinha sofrendo com a iminência dessa ruptura, e descrevia como agonia seu desgosto amoroso, comparando-o a caranguejos que apertavam seu estômago. Ela pensava que Antoine a abandonara definitivamente para viver com outra mulher.

            Mesmo que o apartamento da rue Michel-Ange fosse um ninho de amor, ele conservava a marca excêntrica de Saint-Exupéry. Como os domicílios anteriores, estava aberto a uma multidão de amigos e conhecidos que eram acolhidos por Boris, o mordomo russo. Este antigo general do exército do czar, de rosto lúgubre, já presidia os destinos domésticos nas residências dissociadas da Place Vauban.

            Rainer Biemel, o agente literário, percebeu que não seria fácil falar de negócios no chamado quartel-general de Terra dos Homens. Quando compareceu à rue Michel-Ange para ler a Saint-Exupéry os termos do contrato, foi testemunha da cerimônia cotidiana na qual Boris servia ao patrão uma colherada de azeite de oliva, para curar sua doença do fígado.

            Ao ver a careta que Saint-Exupéry fazia ao engolir o remédio, Biemel informou-lhe que poderia comprar cubos de azeite de oliva congelados num restaurante de Marselha. Essa sugestão foi adotada por Antoine e seus amigos passaram a protestar com frequência, pois sua geladeira ficava repleta de cubos de azeite de oliva quando o autor os visitava. Tendo solucionado a questão da difícil digestão do autor, Biemel teve de assistir à demonstração de sua última aquisição, uma caneta-tinteiro de cartuchos que evitava, nas viagens aéreas, os problemas de vazamento das canetas tradicionais. Quando essa distração terminou, ele conseguiu persuadir Saint-Exupéry a combinar um encontro com o representante americano da editora de Nova York.

André Gide, (1869 - 1951), grande amigo de Saint-Exupéry, 
escritor, poeta, ensaísta, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1947

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