quinta-feira, 15 de junho de 2017

VOO NOTURNO - 9

CAPITULO VII

            Uma hora mais tarde, o radiotelegrafista do correio da Patagônia sentiu ser erguido suavemente, como se o tivessem puxado pelas costas. Ele olhou ao redor: nuvens pesadas obscureciam as estrelas. Inclinou-se em direção à terra: buscava as luzes das cidades, semelhantes às dos vaga-lumes escondidos na mata. Mas nada brilhava nessa mata escura.

            Antevendo uma noite difícil, ficou aborrecido: idas, vindas, territórios ganhos que era preciso devolver. Ele não compreendia a tática do piloto, parecia-lhe que iria chocar-se com a espessura da noite, como se ela fosse um muro.

            Percebia agora, diante deles, um reflexo imperceptível na linha do horizonte: o clarão de uma forja. O radiotelegrafista tocou as costas de Fabien, mas ele não se mexeu.

            Os primeiros redemoinhos da tempestade distante atacavam o avião. Levemente levantadas, as massas metálicas pesavam o corpo do telegrafista; em seguida, pareciam evaporar-se, fundir-se e, durante alguns segundos, ele flutua sozinho na noite. Então, com ambas as mãos, agarrou-se às longarinas de aço.

            E como não via nada mais no mundo além da lâmpada vermelha da carlinga, estremeceu por sentir-se descendo no coração da noite, sem socorro, sem a mera proteção de uma lâmpada de mineiro. Não ousou incomodar o piloto para saber o que ele decidira e, com as mãos fechadas sobre o aço, observou aquela nuca sombria.

            Somente a cabeça e os ombros imóveis emergiram daquela fraca claridade. Aquele corpo não era nada além de uma massa sombria, um pouco inclinado para a esquerda, com a face voltada para a tempestade, lavada, sem dúvida, por cada clarão. Mas o radiotelegrafista não via nada daquela face. Todos os sentimentos que ali se aglomeravam para enfrentar uma tempestade: aquela expressão facial, aquela vontade, aquela cólera, tudo o que de essencial se intercambiava entre aquele rosto pálido e os breves clarões que surgiam nas proximidades permanecia impenetrável para ele.

            No entanto, o radiotelegrafista imaginava a potência reunida na imobilidade daquele vulto e gostava dela. Ela certamente o conduzia em direção à tempestade, mas também o protegia. Sem dúvida, aquelas mãos, fechadas sobre os comandos, já pesavam sobre a tempestade, como sobre o dorso de um animal, mas os ombros cheios de força permaneciam imóveis: neles se sentia uma profunda reserva.

            O radiotelegrafista pensou que, depois de tudo, o piloto era o responsável. E agora ele saboreava, arrastado na garupa em direção ao incêndio, o que aquela forma sombria, diante dele, expressava de material e de força, o que ela representava de duradouro.

            A esquerda, fraco como um farol em eclipse, um novo fogo apareceu.

            O radiotelegrafista esboçou um gesto para tocar no ombro de Fabien, a fim de preveni-lo, mas ele o viu virar lentamente a cabeça e manter o rosto, por alguns segundos, diante desse novo inimigo para, em seguida, retornar à sua posição inicial. Os ombros sempre imóveis, a nuca apoiada sobre o couro.



CAPÍTULO VIII

            Rivière havia saído para caminhar um pouco a fim de enganar o mal-estar que voltara a sentir. E ele, que não vivia senão para a ação, uma ação dramática, sentia de forma estranha o drama se modificar, tornar-se pessoal. Pensou que, ao redor dos coretos, os pequenos burgueses das cidadezinhas viviam uma vida aparentemente silenciosa, mas, por vezes, também carregada de dramas: doença, amor, lutos, e talvez... seu próprio mal lhes ensinava muitas coisas: “Isto abre certas janelas”, refletiu.

            Em seguida, por volta das onze horas da noite, respirando melhor, encaminhou-se para o escritório. Lentamente, percebeu o jeito das pessoas, da multidão que se agrupava diante da entrada dos cinemas. Ergueu os olhos em direção às estrelas, que iluminavam o caminho estreito, quase apagadas pelos anúncios luminosos, e pensou: “Esta noite, com meus dois correios em pleno voo, sou responsável por um céu inteiro. Aquela estrela representa um sinal que me procura nesta multidão, e que me encontra: é por esse motivo que me sinto um pouco estrangeiro, um pouco solitário”.

             Uma frase musical lhe veio à mente: algumas notas de uma sonata que ele escutara na véspera com alguns amigos. Os amigos não compreenderam: “Esta arte aborrece a nós e a você, mas você não quer confessar”.

            — Talvez... - respondeu.

            Como havia se sentido solitário, mais rapidamente descobrira a riqueza de tal solidão. A mensagem da música vinha até ele, e somente a ele entre os medíocres, com a suavidade de um segredo. Como um sinal da estrela. Falavam-lhe, por cima de tantos ombros, com uma linguagem que apenas ele entendia.

            No passeio esbarravam-no; ainda pensou: “Não vou me zangar. Pareço-me com o pai de uma criança doente, que caminha na multidão a passos curtos, que carrega dentro de si o grande silêncio da sua casa”.

            Ergueu os olhos para os homens. Tentou perceber entre os que caminhavam lentamente a sua invenção ou o seu amor, e imaginou o isolamento dos guardiões dos faróis.

            O silêncio dos escritórios lhe agradou. Atravessou-os, lentamente, um após o outro, enquanto seus passos ressoavam solitários. As máquinas de escrever dormiam sob as capas. Os grandes armários fechados guardavam os dossiês em ordem. Dez anos de experiência e de trabalho. Imaginou que estava visitando os cofres de um banco; ali onde se concentram as riquezas. Pensava que cada um daqueles registros continha algo melhor que o ouro: uma força viva, porém adormecida, como o ouro dos bancos.

            Em algum lugar, encontraria o único secretário de vigília. Um homem trabalhava em um local para que a vida continuasse, para que a vontade fosse contínua e, dessa forma, de escala em escala, de Toulouse a Buenos Aires, nunca se rompesse a cadeia.

             “Esse homem desconhece sua grandeza.”

            Os correios lutavam em algum lugar. O voo noturno resistia como uma doença: era preciso velar. Era necessário dar assistência a esses homens que, com as mãos e os joelhos, peito contra peito, enfrentavam as sombras e não conheciam, absolutamente, nada além das coisas movediças, invisíveis, das quais era preciso, com a força de braços cegos, livrarem-se como de um mar. Que terríveis confissões, por vezes: “Iluminei minhas mãos para vê-las”. A suavidade das mãos revelada apenas naquele banho vermelho de fotógrafo. E o que resta do mundo e o que é preciso salvar.

            Rivière empurrou a porta do escritório da área de exploração. Uma única lâmpada estava acesa, e, em um canto, criava uma praia iluminada. O bater de uma única máquina de datilografar dava sentido ao silêncio, sem preenchê-lo, entretanto.

            As vezes o telefone tocava e o secretário de guarda se levantava e caminhava em direção àquela chamada repetida, obstinada e triste. Ele retirava o telefone do gancho e a angústia invisível se acalmava: iniciava-se uma conversa muito tranquila. Depois, impassível, o homem retornava à sua mesa com a face fechada pela solidão e pelo sono, sobre um segredo indecifrável. Que ameaça carregava aquela chamada que chegava à noite, lá de fora, quando dois correios estavam em pleno voo? Rivière pensava nos telegramas que chegavam às famílias, acomodadas em torno das lamparinas noturnas e, em seguida, na desgraça que, por alguns segundos quase eternos, permanecia em segredo na expressão do pai. Onda a princípio sem forças, tão longe do grito lançado, tão calma! E, a cada vez, Rivière escutava seu frágil eco no discreto soar do telefone. E, cada vez, os movimentos do homem, que a solidão tornava lento como um nadador entre duas águas, voltando da escuridão para a luz, como um mergulhador que chega à superfície, parecia carregado de segredos.

            — Fique aí, eu atendo.

            Rivière tirou o telefone do gancho, recebendo o zumbido do mundo.

            — Aqui fala Rivière.

            Um fraco tumulto, depois uma voz:

            — Vou passá-lo para o posto de rádio.

            Um novo tumulto, o das fichas na central telefônica, depois outra voz:

            — Aqui é do posto de rádio. Vamos passar os telegramas.

            Rivière anotava-os e assentia com a cabeça:

            — Está bem... está bem...

            Nada importante. Mensagens regulares de serviço. O Rio de Janeiro pedia uma informação. Montevidéu falava do tempo e Mendoza de material. Eram os ruídos familiares da casa.

            — E os correios?

            — O tempo está tempestuoso, não conseguimos ouvir os aviões.

            — Está bem.

            Rivière pensou que a noite estava tão clara que as estrelas brilhavam, mas os radiotelegrafistas descobriram nela o sopro de tempestades longínquas.

            — Até logo.

            Enquanto Rivière se levantava, o secretário o abordou:

            — As notas de serviço para assinar, senhor...

            — Está bem.


            Rivière descobria dentro de si uma grande amizade por aquele homem, que também carregava o peso da noite. “Um colega de combate”, pensava. “Ele nunca saberá o quanto essa vigília nos uniu.”


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