CAPÍTULO III
—
Deixe-me dormir...
—
É incrível! Levante-se. A criança sufoca.
Arrancada
de seu sono, correu para a cama. A criança dormia, brilhando de febre, com a
respiração curta, porém calma. Numa semiconsciência, Geneviève imaginava o
rápido resfolegar dos rebocadores. "Que trabalho!" E há três dias
aquilo durava! Permaneceu inclinada sobre o doente, incapaz de pensar em coisa
alguma.
—
Por que me disse que ele estava sufocando? Por que me assustou?...
Seu
coração batia ainda aos saltos. Herlin respondeu:
—
Pensei.
Geneviève
sabia que ele estava mentindo. Possuído por uma angústia qualquer e incapaz de
sofrer sozinho, queria que alguém a partilhasse. Quando sofria, era-lhe
insuportável a paz do mundo. E, no entanto, após três noites de vigília, ela
bem que necessitava de uma hora de repouso. Já nem sabia mais onde se
encontrava.
Perdoava
essas mil artimanhas porque as palavras... Que importa? E ridícula essa
contabilidade do sono!
Disse
apenas: "Você não está sendo razoável"; depois, para acalmá-lo: “Você
é uma criança..."
Sem
transição, perguntou a hora à enfermeira.
—Duas
e vinte.
—
Já?
Geneviève
repetia "duas e vinte...", como se fosse indispensável um gesto
urgente. Mas não. Bastava esperar, como numa viagem. Alisou os lençóis, arrumou
os frascos, mexeu na janela, criando uma ordem oculta e misteriosa.
—
A senhora devia dormir um pouco—dizia a enfermeira.
Seguia-se
o silêncio e novamente a opressão, como numa viagem em que a paisagem corre
invisível
—
Essa criança que vimos crescer, que amamos... — exclamou Herlin. Desejava que
Geneviève se condoesse dela. Aquele papel de pai infeliz...
—
Movimente-se, meu caro, faça alguma coisa — aconselhava brandamente Geneviève.
— Você tem um encontro de negócios; vá!
Empurrava-o
pelos ombros, mas ele cultivava sua dor:
—
Como quer que eu saia num momento como este?
“Num
momento como este", dizia Geneviève consigo, porém... mais do que nunca
isso era preciso. Experimentava uma estranha necessidade de ordem. O vaso fora
do lugar, o sobretudo de Herlin jogado sobre um móvel, o pó sobre o consolo,
era... eram passos ganhos pelo inimigo, indícios de uma obscura derrota. Lutava
agora contra ela. 0 ouro dos enfeites e os móveis arrumados são realidades
superficialmente claras. Para Geneviève, tudo quanto é vigoroso, nítido,
brilhante parecia uma proteção contra a morte, que é obscura.
O
médico dizia: “Isso passará: a criança é forte." Sem dúvida, pois, quando
dormia, aferrava-se à vida com seus dois pequenos punhos fechados. Era tão
bela. Era tão forte!
— A senhora devia sair um pouco, passear —
dizia a enfermeira. — Eu irei depois; do contrário, não resistiremos.
Estranho
espetáculo: duas mulheres a se esgotarem em tomo de uma criança que, de pálpebras
cerradas e respiração apressada, as conduzia ao fim do mundo.
Geneviève
saía para afastar-se de Herlin, enquanto ele continuava falando: "O meu
dever mais elementar... Seu orgulho...” Ela nada compreendia dessas frases,
porque tinha sono, mas determinadas palavras, como "orgulho”, surpreendiam-na
de passagem. Por que orgulho? O que significaria isso numa hora dessas?
O
médico sentia-se surpreso com essa jovem senhora que não chorava, não
pronunciava uma palavra inútil e ajudava-o como uma enfermeira eficiente. Tinha
admiração por aquela serva da vida. Para ela, os momentos da visita eram os
melhores do dia, não porque o médico a consolasse, pois ele nada dizia, mas
porque diante dele o corpo da criança ficava exatamente localizado. Porque se
esclarecia tudo o que é grave, obscuro e doentio. Que proteção nessa luta
contra a sombra! E aquela operação da antevéspera... Herlin lamentava-se na
sala. Ela ficara. O cirurgião, de uniforme branco, entrava no aposento, com a
força tranquila da hiz. O interno e ele começaram um combate rápido, palavras
nuas, ordens: clorofórmio, depois aperte, depois iodo, palavras ditas em voz
baixa e despidas de emoção. E, de súbito, como Bemis dentro de seu avião,
Geneviève teve a revelação de uma infalível estratégia: íamos vencer.
—
Como pôde assistir a essa cena — perguntava Herlin —; então você é uma mãe sem
alma?
Certa
manhã, deslizou suavemente ao longo da poltrona, na presença do médico,
desfalecida. Quando voltou a si, ele não lhe falou de coragem ou esperança, nem
exprimiu piedade alguma; olhou-a seriamente e disse-lhe apenas: "A senhora
está muito cansada; não é nada grave. Ordeno-lhe que dê um passeio esta tarde.
Não vá ao teatro, pois as pessoas não são inteligentes o suficiente para
compreenderem isso, mas faça alguma coisa parecida.”
E
pensava:
"Eis
o que vi de mais autêntico no mundo.”
A
frescura do bulevar surpreendeu-a. Caminhava e experimentava uma grande
tranquilidade, lembrando-se da infância. Árvores, planícies. Coisas simples. Um
dia, muito mais tarde, veio-lhe aquela criança que era algo de incompreensível
e ao mesmo tempo algo de mais simples ainda. Uma evidência mais forte que as
outras. Dera uma assistência superficial àquela criança, entre as outras coisas
vivas. Para traduzir o que experimentara logo em seguida, as palavras eram
impotentes. Sentira-se... sim, era isto: sentira-se inteligente. Segura de si
mesma, ligada a tudo, fazendo parte de um grande concerto. À tarde, pediu que a
levassem à janela. As árvores viviam, erguiam-se, sugavam uma primavera do
solo: sentia-se igual a elas. A seu lado, o filho respirava fracamente; era o
motor do mundo que sua débil respiração animava.
Mas
quanta confusão depois de três dias. O gesto mais insignificante — abrir uma
janela, fechá-la — transbordava de consequências. Não sabia mais que gesto
fazer. Tocava nos frascos, nos lençóis, na criança, desconhecendo o alcance de
cada gesto naquele mundo obscuro.
Passava
agora em frente a um antiquário. Geneviève pensava sempre nos enfeites de sua
sala como em ciladas para o soL Agradava-lhe tudo o que retém a luz, tudo o que
emerge, à superfície, bem iluminado. Parou para saborear num cristal um sorriso
silencioso: o mesmo que brilha nos bons vinhos velhos. Confundia, em sua
consciência fatigada, luz, saúde, certeza de viver; desejou, então, para o
quarto do menino que lhe fugia, aquele reflexo fixo como um prego de ouro.
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