sexta-feira, 16 de junho de 2017

CORREIO SUL - 9

CAPÍTULO III


            — Deixe-me dormir...

            — É incrível! Levante-se. A criança sufoca.

            Arrancada de seu sono, correu para a cama. A criança dormia, brilhando de febre, com a respiração curta, porém calma. Numa semiconsciência, Geneviève imaginava o rápido resfolegar dos rebocadores. "Que trabalho!" E há três dias aquilo durava! Permaneceu inclinada sobre o doente, incapaz de pensar em coisa alguma.

            — Por que me disse que ele estava sufocando? Por que me assustou?...

            Seu coração batia ainda aos saltos. Herlin respondeu:

            — Pensei.

            Geneviève sabia que ele estava mentindo. Possuído por uma angústia qualquer e incapaz de sofrer sozinho, queria que alguém a partilhasse. Quando sofria, era-lhe insuportável a paz do mundo. E, no entanto, após três noites de vigília, ela bem que necessitava de uma hora de repouso. Já nem sabia mais onde se encontrava.

            Perdoava essas mil artimanhas porque as palavras... Que importa? E ridícula essa contabilidade do sono!

            Disse apenas: "Você não está sendo razoável"; depois, para acalmá-lo: “Você é uma criança..."

            Sem transição, perguntou a hora à enfermeira.

            —Duas e vinte.

            — Já?

            Geneviève repetia "duas e vinte...", como se fosse indispensável um gesto urgente. Mas não. Bastava esperar, como numa viagem. Alisou os lençóis, arrumou os frascos, mexeu na janela, criando uma ordem oculta e misteriosa.

            — A senhora devia dormir um pouco—dizia a enfermeira.

            Seguia-se o silêncio e novamente a opressão, como numa viagem em que a paisagem corre invisível

            — Essa criança que vimos crescer, que amamos... — exclamou Herlin. Desejava que Geneviève se condoesse dela. Aquele papel de pai infeliz...

            — Movimente-se, meu caro, faça alguma coisa — aconselhava brandamente Geneviève. — Você tem um encontro de negócios; vá!

            Empurrava-o pelos ombros, mas ele cultivava sua dor:

            — Como quer que eu saia num momento como este?

            “Num momento como este", dizia Geneviève consigo, porém... mais do que nunca isso era preciso. Experimentava uma estranha necessidade de ordem. O vaso fora do lugar, o sobretudo de Herlin jogado sobre um móvel, o pó sobre o consolo, era... eram passos ganhos pelo inimigo, indícios de uma obscura derrota. Lutava agora contra ela. 0 ouro dos enfeites e os móveis arrumados são realidades superficialmente claras. Para Geneviève, tudo quanto é vigoroso, nítido, brilhante parecia uma proteção contra a morte, que é obscura.

            O médico dizia: “Isso passará: a criança é forte." Sem dúvida, pois, quando dormia, aferrava-se à vida com seus dois pequenos punhos fechados. Era tão bela. Era tão forte!

             — A senhora devia sair um pouco, passear — dizia a enfermeira. — Eu irei depois; do contrário, não resistiremos.

            Estranho espetáculo: duas mulheres a se esgotarem em tomo de uma criança que, de pálpebras cerradas e respiração apressada, as conduzia ao fim do mundo.

            Geneviève saía para afastar-se de Herlin, enquanto ele continuava falando: "O meu dever mais elementar... Seu orgulho...” Ela nada compreendia dessas frases, porque tinha sono, mas determinadas palavras, como "orgulho”, surpreendiam-na de passagem. Por que orgulho? O que significaria isso numa hora dessas?

            O médico sentia-se surpreso com essa jovem senhora que não chorava, não pronunciava uma palavra inútil e ajudava-o como uma enfermeira eficiente. Tinha admiração por aquela serva da vida. Para ela, os momentos da visita eram os melhores do dia, não porque o médico a consolasse, pois ele nada dizia, mas porque diante dele o corpo da criança ficava exatamente localizado. Porque se esclarecia tudo o que é grave, obscuro e doentio. Que proteção nessa luta contra a sombra! E aquela operação da antevéspera... Herlin lamentava-se na sala. Ela ficara. O cirurgião, de uniforme branco, entrava no aposento, com a força tranquila da hiz. O interno e ele começaram um combate rápido, palavras nuas, ordens: clorofórmio, depois aperte, depois iodo, palavras ditas em voz baixa e despidas de emoção. E, de súbito, como Bemis dentro de seu avião, Geneviève teve a revelação de uma infalível estratégia: íamos vencer.

            — Como pôde assistir a essa cena — perguntava Herlin —; então você é uma mãe sem alma?

            Certa manhã, deslizou suavemente ao longo da poltrona, na presença do médico, desfalecida. Quando voltou a si, ele não lhe falou de coragem ou esperança, nem exprimiu piedade alguma; olhou-a seriamente e disse-lhe apenas: "A senhora está muito cansada; não é nada grave. Ordeno-lhe que dê um passeio esta tarde. Não vá ao teatro, pois as pessoas não são inteligentes o suficiente para compreenderem isso, mas faça alguma coisa parecida.”

            E pensava:

            "Eis o que vi de mais autêntico no mundo.”


            A frescura do bulevar surpreendeu-a. Caminhava e experimentava uma grande tranquilidade, lembrando-se da infância. Árvores, planícies. Coisas simples. Um dia, muito mais tarde, veio-lhe aquela criança que era algo de incompreensível e ao mesmo tempo algo de mais simples ainda. Uma evidência mais forte que as outras. Dera uma assistência superficial àquela criança, entre as outras coisas vivas. Para traduzir o que experimentara logo em seguida, as palavras eram impotentes. Sentira-se... sim, era isto: sentira-se inteligente. Segura de si mesma, ligada a tudo, fazendo parte de um grande concerto. À tarde, pediu que a levassem à janela. As árvores viviam, erguiam-se, sugavam uma primavera do solo: sentia-se igual a elas. A seu lado, o filho respirava fracamente; era o motor do mundo que sua débil respiração animava.

            Mas quanta confusão depois de três dias. O gesto mais insignificante — abrir uma janela, fechá-la — transbordava de consequências. Não sabia mais que gesto fazer. Tocava nos frascos, nos lençóis, na criança, desconhecendo o alcance de cada gesto naquele mundo obscuro.


            Passava agora em frente a um antiquário. Geneviève pensava sempre nos enfeites de sua sala como em ciladas para o soL Agradava-lhe tudo o que retém a luz, tudo o que emerge, à superfície, bem iluminado. Parou para saborear num cristal um sorriso silencioso: o mesmo que brilha nos bons vinhos velhos. Confundia, em sua consciência fatigada, luz, saúde, certeza de viver; desejou, então, para o quarto do menino que lhe fugia, aquele reflexo fixo como um prego de ouro.

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