segunda-feira, 19 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 55


            A preparação de Terra dos Homens foi o período mais delicado de toda a carreira literária de Saint-Exupéry. Não podia mais limitar-se a ser o piloto ou o jornalista que relatava suas aventuras da maneira mais espetacular possível. Escritor reconhecido, agora aspirava à perfeição. Longos debates com Werth sobre estilo, já que ambos partilhavam uma admiração sem limite pela precisão da prosa “gota de sangue” de Pascal, contribuíram para uma busca de excelência quase paralisadora. Saint-Exupéry hesitava em apresentar o manuscrito definitivo do novo livro, sabendo que os primeiros críticos eram parentes e amigos, aos quais ele passou anos tentando convencer das qualidades espirituais de sua escrita.

            No ano anterior, quando se comprometera a entregar ao Paris-Soir pelo menos oito artigos sobre a guerra na Espanha, em troca de um adiantamento de 80 mil francos, sua falta de confiança em si era evidente. Postergara diversas vezes a entrega, escrevendo e reescrevendo o texto. Três artigos foram publicados mais de dois meses após seu regresso da Espanha, depois de diversas promessas não cumpridas de prazo de entrega. Esses atrasos não eram causados pela preguiça, mas por um incurável perfeccionismo que o impedia de entregar o manuscrito antes de ter atingido o que ele chamava de excelência. No caso dos artigos para Paris-Soir, renunciou após ter entregue o quarto deles.

            Às 5 da manhã, na véspera da publicação do texto, apareceu no escritório de Hervé Mille, pediu para ver as provas sob o pretexto de fazer as últimas correções e rasgou-as sob o olhar estarrecido do redator-chefe. Para ter plena certeza de que o artigo nunca seria publicado, colocou os pedaços no bolso e saiu do lugar sem qualquer explicação.

            Se a ideia de uma crítica desfavorável a uma simples reportagem provocava tal apreensão, pode-se imaginar o efeito do projeto de publicação de um livro, que ele adiava constantemente. Durante todo o verão de 1938 procurou um lugar ideal para escrever, que lhe fizesse lembrar a doce euforia dos dias passados em Nice com Consuelo, antes de terminar Voo Noturno.

            Ganhou tempo indo para Provence visitar Gabrielle e sua mãe, prelúdio a outra peregrinação à Ville Saint-Jean, sua antiga escola de Friburgo, com a esperança de recriar a nostalgia evocada em Correio Sul dez anos antes. Num novo impulso otimista, chegou a fazer um cruzeiro no lago Léman, porém saiu do barco sem ter progredido muito e partiu em busca de outra fonte de inspiração.

            Uma breve visita ao castelo de Saint-Maurice-de-Rémens deprimiu-o ainda mais, e continuou seu caminho rumo ao sul para rever Moisy, a antiga governanta, em sua pequena casa na aldeia de Étoile.

        As semanas passadas nessas atividades contribuíram apenas com algumas palavras suplementares para o livro começado. Retomou finalmente o caminho da rue Michel-Ange, onde pôs mãos à obra, auxiliado pelo primo André de Fonscolombe, no terraço do apartamento debruçado sobre o Sena. Apesar do périplo de verão, Saint-Exupéry passou mais tempo reduzindo os textos antigos que escrevendo novos, e finalmente decidiu-se a dar o grande passo, entregando à Gallimard, no final de agosto, a parte essencial da coletânea.

            Para a edição americana resolveu confiar na opinião do tradutor, Lewis Galantière, que insistiu em reinserir textos que Saint-Exupéry suprimira na versão francesa. Galantière exigiu também textos suplementares destinados a esclarecer aos leitores americanos o contexto frequentemente insólito ou pouco familiar dos relatos. Como Saint-Exupéry obstinava-se em não aprender inglês, pretextando não querer prejudicar seu estilo pelo contato com expressões estrangeiras, estava menos preocupado com a crítica dos americanos do que com a de seus compatriotas. Inclusive deixou a decisão do título definitivo nas mãos dos editores americanos.

            No entanto, na edição francesa o título representava uma de suas maiores preocupações. Após uma longa e infrutífera reflexão, pediu que o primo André de Fonscolombe o ajudasse. “Você vai me encontrar um título e, se conseguir, eu te darei 100 francos”, teria dito ele, segundo Fonscolombe. “Datilografei para ele uma lista de vinte títulos, porém esqueci a maior parte de minhas sugestões”, acrescentou. “Ele se apossou de uma de minhas ideias, ‘Terra dos humanos’ e transformou-a imediatamente em Terra dos Homens. Ele era assim: sempre encontrava a palavra simples que mudava tudo. Nisto residia seu talento. Era instintivo. Graças às palavras e expressões que escolhia, escrevia com total precisão.”

            Fonscolombe recebeu seus 100 francos, mas no momento em que Saint-Exupéry escolhia o título, as provas do livro já estavam impressas com um título provisório: Étoiles par Grand Vent (“Estrelas ao grande vento”). Embora este último fosse mais poético, a escolha final refletia melhor as ideias humanistas essenciais do autor, expressas no encadeamento dos temas da obra.

            As histórias do deserto, dos voos de longa distância e das lutas contra os elementos não eram apenas aventuras maravilhosamente relatadas por Saint-Exupéry, mas serviam de pano de fundo para a mensagem de que a condição humana é uma busca eterna e sagrada do homem tentando se superar, num impulso de fraternidade.

             Terra dos Homens foi publicado em março de 1939; a Segunda Guerra Mundial, que eclodiu seis meses mais tarde, provou que a confiança do autor no nascimento de uma causa humana comum era uma ilusão. Comunicou esses sentimentos por carta a Consuelo, em 1943, após ter testemunhado brigas entre emigrados franceses em Nova York. “O mundo vai mal — completamente mal. E vou me sentir infeliz e sofrer porque não tenho uma verdade clara para oferecer aos homens. E eu, que amo tanto a verdade, sofrerei por ela mesma sem estar totalmente certo do que seja a minha verdade.”

            No entanto, a mensagem otimista de Terra dos Homens não se perderia. Saint-Exupéry ignorava que seu idealismo, mesmo baseado em certa ingenuidade, daria esperança a milhares de pessoas durante os mais sombrios dias da guerra e suas sinistras repercussões. E anos mais tarde, a lúcida utilização da língua, exemplo de sobriedade para criar o universo emocional, o cenário, os personagens e os acontecimentos, transformou Terra dos Homens numa obra-prima. As imagens frequentemente sublimes refletem o esforço intelectual dedicado por Saint-Exupéry à escrita como uma arte. É possível medir a evolução da obra rumo à perfeição comparando Terra dos Homens aos textos originais publicados em forma de artigos em diversos jornais e revistas nacionais. As mudanças realizadas na composição do livro mostram a ginástica mental de Saint-Exupéry enquanto corrigia seu material bruto para transformá-lo numa obra que, esperava com razão, resistisse à passagem do tempo. Para comparar as diferentes versões de alguns capítulos do livro, é fácil conseguir as edições do Paris-Soir, do Intransigeant ou de Marianne, onde foram publicadas pela primeira vez os relatos da libertação do escravo Bark, ou do encontro com as duas moças no solar deteriorado, no planalto argentino.

            O fascínio de Saint-Exupéry pela precisão da palavra adequada foi confirmado por diversos amigos, particularmente por aqueles que o ouviram, de bom grado ou à força, ler trechos inacabados, que seriam modificados na audição seguinte. Se a necessidade de dinheiro e os prazos imperativos não o tivessem obrigado a submeter seu trabalho ao julgamento do público, esse constante processo de autocrítica teria diminuído ainda mais uma produção literária já pouco abundante.

            Saint-Exupéry ficava tão atormentado com os detalhes quanto com a amplitude do campo de suas convicções pessoais. Georges Pélissier, que desempenhava a dupla tarefa de médico e crítico literário, foi uma das muitas pessoas consultadas antes da publicação de Terra dos Homens. Saint-Exupéry visitou-o de avião em Argel, pouco depois do Natal de 1938, sob o pretexto de uma discussão gramatical.

            Durante os quinze anos de amizade entre os dois, esta era a última fase do processo de criação muitas vezes observado por Pélissier. Saint-Exupéry geralmente produzia um primeiro jorro sem esforço, antes de empreender o longo e árduo caminho mediante o qual, segundo sua própria expressão, separava as pedras preciosas da ganga. “Sentia um respeito religioso pela pureza da língua”, escreveu Pélissier em 1951, ao recordar a reação do autor quando sua irmã Simone lhe telegrafara de Saigon para indicar-lhe maliciosamente o único erro gramatical presente em Terra dos Homens. Segundo Pélissier, ela deveria ter dado ao irmão o benefício da dúvida. “Tentei consolá-lo, mas foi em vão”, disse Pélissier. “Ele ficou inconsolável.”

            Mesmo após ter entregue o manuscrito à Gallimard, Saint-Exupéry continuou reexaminando grande parte do texto e forneceu ao Paris-Soir, no final do outono, outra versão de certos trechos, com sutis variantes. Como ainda estava precisando de dinheiro, propusera, como compensação pelas reportagens sobre a guerra da Espanha não entregues em 1937, outra série de artigos.

            Em outubro de 1938, redigiu três ensaios sobre as ameaças de guerra, que fizeram parte de uma coletânea publicada no Paris-Soir com textos de Colette e de Winston Churchill. Entre 8 e 15 de novembro, propôs outras seis matérias, cujos temas provinham de fatos analisados em Terra dos Homens e foram publicadas com o título geral de Aventuras e Escalas.

            Diversos trechos de Wind, Sand and Stars, que continha dois capítulos a mais do que a edição francesa, nunca foram publicados em Terra dos Homens porque o perfeccionismo de Saint-Exupéry levou-o a ultrapassar a data-limite prevista para sua publicação. A mais surpreendente omissão referente à aviação e a seu sangue frio é a luta contra o vento perto da costa da Patagônia, quando tentava aterrissar na pista de Trelew. O texto foi finalmente publicado na revista Marianne, duas semanas antes da declaração de guerra, em setembro de 1939. As últimas linhas horrorizavam pela referência a Guernica e Xangai; soavam como um terrível presságio da onda de horror que se abateria sobre a Europa. Ao relatar sua aventura na Patagônia, Saint-Exupéry também expunha seu pesar pelo fato de as produções cinematográficas serem responsáveis pela banalização das imagens de violência.

Pensava que certamente teria sido mais fácil comover o leitor ao falar de uma criança injustamente punida, que ao descrever a ferocidade do ciclone que quase derrubou seu avião no Atlântico sul. Mas, nas salas de cinema da época, os espectadores assistiam às atualidades das reportagens de guerra, na Espanha ou na China, sem se perturbar com sua selvageria. “Podemos admirar sem horror as espirais de fuligem e de cinzas que essas terras de vulcões espalham para o céu”, escreveu ele. “No entanto, ao mesmo tempo que o grão nos celeiros, que a herança das gerações, que os tesouros familiares, a carne das crianças queimadas, dilapidada em fumaça, é que engorda lentamente essa nuvem negra.”

Não poderia haver descrição mais terrível da guerra que estava por chegar. Mas, enquanto as nações caíam num torpor hipnótico diante da ascensão do nazismo, Saint-Exupéry acrescentava seu ponto de vista místico: “Porém o próprio drama físico só pode nos comover se nos for mostrado seu sentido espiritual”. A partir de 1939, e particularmente em Piloto de Guerra e Carta a um Refém, em que analisa o aspecto purificador da humilhação francesa, ele se atribui o dever de cumprir essa missão.


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