segunda-feira, 26 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 62


            Saint-Exupéry sofreu frequentes crises de melancolia pela morte de numerosos familiares e amigos. Tinha apenas três anos quando a lista trágica foi aberta com o falecimento do pai. Ficou muito longa em 1940, com os nomes dos dezessete tripulantes de seu esquadrão, desaparecidos durante a batalha da França. Por uma estranha coincidência, os padres que tinham desempenhado um papel decisivo na sua mocidade também morreram nessa época. O abade Launay, o primeiro a reconhecer seu talento literário, ficou doente no início da guerra em seu povoado natal, perto de Le Mans.

            O abade Sudour, padrinho de Saint-Exupéry na Aéropostale, morreu provavelmente do choque causado pela derrota. Desmaiou enquanto rezava missa em Notre-Dame, e pouco depois faleceu no hospital. E a sinistra lista parecia não se encerrar nunca. Saint-Exupéry estava em Lisboa, fazendo os preparativos para a viagem aos Estados Unidos, em Ia de dezembro de 1940, quando escreveu a Nelly de Vogüé para contar de sua tristeza ao saber da morte de Henri Guillaumet.

            Seu amigo estava pilotando um Farman de transporte e foi abatido por um caça italiano no Mediterrâneo, cerca de cinco meses após a rendição francesa. Naquele momento os italianos estavam em luta contra a marinha real britânica, e o avião francês foi confundido com um aparelho inglês. “Guillaumet morreu”, escreveu Saint-Exupéry. “Parece-me, esta noite, que não tenho mais amigos. Não choro por ele: nunca pude chorar pelos mortos. Mas vou demorar muito tempo para assumir seu desaparecimento e já estou cansado desse terrível trabalho.

          “Isto vai durar meses e meses: sentirei tanto a sua falta. Será que envelhecemos tão rapidamente assim? Sou o único que resta da equipe Casa-Dacar da velha época, da grande equipe dos Bréguet XIV, Collet, Reine, Lassalle, Beauregard, Mermoz, Étienne, Simon, Lécrivain, Ville, Verneilh, Riguelle, Pichodou e Guillaumet.

             “Todos os que passaram por lá estão mortos e não tenho mais ninguém para partilhar minhas recordações. Eis-me aqui, ancião desdentado e solitário, ruminando tudo isso para mim mesmo. E da América do Sul não sobrou nenhum, nenhum...”

            A carta encerrava-se com um pedido de socorro. Ele se perguntava se deveria abandonar seu projeto americano. “Há uma vida inteira a refazer”, acrescentava.

            Desde que saíra da casa da mãe em dezembro para regressar à África do Norte e tentar verificar pela última vez se o exército francês tinha a força e a vontade de continuar o combate, Saint-Exupéry fora invadido pelas dúvidas. Às vezes pensava em juntar-se à RAF, depois perguntava-se se não deveria retornar à França e ficar junto com a família e a esposa, pois as notícias recebidas de Consuelo limitavam-se a raros telegramas.

            Tomou finalmente uma decisão após receber um telegrama de seu editor americano, apressando-o a viajar para Nova York para continuar a promoção de Wind, Sand and Stars. Também lhe propunha que refletisse sobre a possibilidade de escrever um novo livro sobre a batalha da França. Saint-Exupéry não obteve autorização do governo fascista para atravessar a Espanha, onde seus artigos sobre a guerra civil não tinham sido esquecidos, e foi obrigado a navegar da África do Norte até Lisboa, de onde embarcou para os Estados Unidos com um certo número de exilados franceses. No momento em que o navio levantava âncora, o governo de Pétain acabara de excluir seu vice-presidente, Pierre Laval. Mas, ao desembarcar nos Estados Unidos, Saint-Exupéry manifestou reservas sobre a forma com que o novo governo analisava a derrota.

            Chegou a Nova York às vésperas do Ano-Novo, e confiou a um jornalista do New York Times que a responsabilidade pela derrota francesa cabia ao alto comando militar — que Pétain cuidadosamente evitara culpar, ocupado em denegrir os antigos primeiros-ministros Léon Blum e Édouard Daladier. Infelizmente, Saint-Exupéry eludiu as questões diretamente concernentes a Pétain, segundo a regra por ele adotada na maioria das entrevistas concedidas durante a guerra. As autoridades de Vichy interpretaram favoravelmente o seu silêncio, e um mês após sua chegada aos Estados Unidos foi nomeado membro do Conselho Nacional de Governo, organismo consultivo que incluía personalidades que mais tarde passaram a se opor ao regime.

            No dia da oficialização dessa nomeação, ele a recusou publicamente em uma declaração à imprensa americana, esclarecendo que não fora consultado previamente. Antoine não se considerava um político e tinha a intenção de utilizar sua influência apenas para promover os interesses franceses através de seus escritos.

            Apesar dessa recusa, e embora ele expressasse sua indignação contra os boatos que lhe atribuíam uma missão secreta por conta do governo de Vichy, os gaullistas influentes lançaram contra ele uma insidiosa campanha difamatória, que prosseguiu até sua morte.

            Desde o início, Saint-Exupéry sentiu-se magoado com a propaganda gaullista que insinuava que ele era covarde ou traidor. Mas, durante a maior parte de 1941, suas preocupações foram mais pessoais do que políticas, e abandonou sua ideia inicial de retornar à França após um mês. Estava sendo pressionado para terminar seu livro sobre o voo de Arras e precisava encontrar uma maneira de retirar Consuelo da França. Demorou cerca de um ano para levar os dois projetos a bom termo. Lewis Galantière, seu tradutor, foi quem melhor descreveu sua vida e estado de espírito durante o ano de 1941, no artigo publicado na Atlantic Monthly, em 1947. Galantière perguntava-se com certa preocupação se Saint-Exupéry seria capaz de adaptar-se a outro país que não fosse a França. “Nunca encontrei nenhum homem tão pouco feito para a neutralidade, a emigração, o exílio”, escreveu.

            Na verdade, Saint-Exupéry tentava esquecer que estava morando num país anglófono frequentando apenas exilados franceses ou francófonos — cujas convicções políticas representavam um leque completo do pensamento francês da época —, com exceção dos representantes oficiais de mais alto nível do pétainismo ou do gaullismo.

            Retomou facilmente seus hábitos parisienses após deixar o Ritz- Carlton, em fevereiro de 1941, instalando-se num apartamento com vista panorâmica no 27o andar do número 240 do Central Park South, onde seu vizinho era Maurice Maeterlinck. Passava as noites em longas discussões em restaurantes ou bares, fazendo truques de baralhos ou jogando xadrez.

            Retornou ao hábito de ligar para os amigos de madrugada, a fim de ler para eles o fruto de suas noites laboriosas, porém era inútil tocar sua campainha na parte da manhã, pois habitualmente passava o dia dormindo após ter trabalhado a noite inteira. Seus amigos tiveram de se prestar também a outra tarefa. Como ele se negava a falar inglês, telefonava no último minuto em busca de intérpretes voluntários para acompanhá-lo em suas expedições em busca de novos gadgets. Em companhia de Bernard Lamotte, um pintor que conhecia desde a época da Belas Artes e que mais tarde ilustrou Piloto de Guerra, Saint-Exupéry fez a mais importante de suas aquisições.

            Estavam procurando um órgão elétrico quando o olhar de Antoine caiu por acaso num gravador que registrava gravações em fitas. Enquanto o vendedor, perplexo, tentava compreender as palavras dos dois franceses, Saint-Exupéry tirou 2.700 dólares do bolso e pediu a Lamotte que providenciasse a entrega do aparelho em seu domicílio. A partir de então, começou a ditar seus livros à noite, enquanto sua secretária os datilografava durante o dia. A máquina permitia-lhe também revelar o lado infantil de seu caráter. Ele a utilizava para gravar canções, diminuindo a rotação da fita para deformar a voz e produzir um efeito cômico. Convencia os amigos a improvisarem qualquer coisa, pelo prazer de escutar maliciosamente essas gravações junto com outras pessoas.

            Galantière afirmava que, apesar de uma vida social ativa e de frequentes conferências sobre suas experiências de guerra, Saint-Exupéry nunca se sentiu feliz nos Estados Unidos. “Seu espírito estava sempre inquieto, torturado, e ele passava dias e noites discutindo os comunicados políticos e militares, ou estudando-os com físicos e engenheiros.” Ele estava ansioso por Consuelo e sofria problemas de saúde que atrasaram a conclusão de Piloto de Guerra, que os editores contavam publicar no primeiro aniversário do armistício. Em julho de 1941 o livro estava longe de ficar pronto, o que não impediu que o autor, com a recriminação de seu tradutor, entre outros, decidisse dar uma escapada até Hollywood para reencontrar o cineasta Jean Renoir.

            Eles tinham se conhecido ao dividir um camarote no navio que ia aos Estados Unidos, em dezembro, e Jean Renoir promete refletir sobre uma versão filmada de Terra dos Homens. Saint-Exupéry utilizou seu gravador para registrar as diversas cenas e uma descrição da forma em que achava que o projeto devia ser tratado.

            Sem o conhecimento de Galantière, que esperava a luz verde para começar a tradução do livro, Saint-Exupéry decidiu internar-se num hospital, e só em novembro de 1941 explicou a seu tradutor as razões do atraso no avanço do manuscrito. Informou-lhe que há três anos sofria de uma doença é explicada, cujas manifestações tinham se agravado desde sua chegada aos Estados Unidos. Às vezes tinha acessos de febre que atingiam mais de 41 graus. Um cirurgião de Hollywood diagnosticou sequelas de seu primeiro acidente de aviação, ocorrido em Le Bourget em 1923. Um foco permanente de infecção formara-se nas cicatrizes, e a convalescença, que era pelo menos tão dolorosa quanto a operação, como se queixava ele a Galantière, fora acompanhada de insuportáveis espasmos, de hemorragias e febre. “Por isso queira desculpar meu atraso no livro”, acrescentava Saint-Exupéry.

            Galantière estava acostumado com os pretextos dos escritores para desculpar os atrasos, e considerou a carta com certo ceticismo, como se pode ver numa posterior, na qual Saint-Exupéry se queixa de que seu tradutor parecia “acreditar que eu sofro dos mal-estares vagos de mocinhas neurastênicas”. Galantière explicou sua incredulidade no artigo publicado no Atlantic Monthly. Segundo ele, os editores tinham dado seis semanas para Saint-Exupéry instalar-se em Nova York. Durante esse período, Wind, Sand and Stars recebeu o National Book Award, durante um banquete para 1.500 pessoas. “Com tato, nós o fizemos entender que estava na hora de voltar ao trabalho”, relata Galantière. Como o tato não funcionou, o autor ouviu que era seu dever explicar a derrota aos americanos, que não acreditavam que a França tinha se defendido valentemente.

            A sugestão deixou Saint-Exupéry “totalmente furioso”, diz Galantière, porém ele escapou pela tangente afirmando que sua literatura era tratada como um produto comercial. Quando essa tempestade cessou, a doença interveio.


            Em novembro, a paciência dos editores, bem como seu tato e seu talento persuasivo, tinha diminuído consideravelmente. O armistício, tema essencial e origem da encomenda do livro, ocorrera há dezoito meses. Foi então que Saint-Exupéry anunciou que o manuscrito estava terminado.



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